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CONSIDERAÇÕES FINAIS O RIO DA ALMA

(...) cada alma possui seu corpo particular, a parte

efêmera de sua existência – seu rio próprio.436

O estudo do simbolismo e do imaginário ligado ao rio ficaria incompleto sem a consideração do rio como metáfora da alma e da identidade de São Paulo. Para isso, colocamos a questão: como se deu o relacionamento entre ambos, rio e homem? O que denominamos crise ecológica também é uma crise cultural, abrangendo aspectos espirituais e psicológicos. Nesse contexto, é fundamental conhecer a história do objeto em questão, seus aspectos geográficos e sociais, bem como destacar diferentes olhares sobre sua identidade. Assim, entendemos ter sido de grande importância descrever a evolução do rio, bem como os diferentes posicionamentos assumidos pela população paulistana.

Como foi visto, um dos momentos mais traumáticos desta relação aconteceu na primeira metade do século XX. No entanto, os sinais e sintomas deste “caos planejado” já se faziam presentes desde a época da colonização, com o desrespeito pela cultura autóctone (as hierofanias do rio), sendo agudizados com a perda da ligação afetiva com o rio e cronificados com a estrutura física e urbana da metrópole.

Muitos dos principais problemas da metrópole mostram-se já no caminho do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Cumbica, Guarulhos. “Imagino um estrangeiro que, depois de desembarcar, vê as favelas, o mato e os cachorros mortos na pista ao longo de todo o trajeto até a cidade”, diz Campana. “A falta de zelo com o Rio Tietê e o cheiro de esgoto causam impressão muito mais forte do que qualquer símbolo”.437

436 CHEVALIER, op. cit., p. 781.

Em fins do século XX, com a mobilização da opinião pública, teve inicio o conjunto de obras para despoluir o Tietê. Na verdade, essas obras melhorarão em muito a qualidade das águas, mas sem a mudança de hábitos como o desperdício e o despejo de lixo nas ruas, nos córregos e rios, não acreditamos que a crise ecológica terá fim.

Em decorrência do crescimento das cidades e da poluição, as pessoas deixaram de olhar e de ter contato direto com os rios, principalmente com o Tietê, o maior do Estado de São Paulo. Pois, ninguém gosta de encarar a degradação e muito menos de assumir responsabilidades. Se um rio é como um espelho que reflete a nossa sociedade, o

Tietê mostra que não vamos bem.438

E se não assumirmos responsabilidades, conseqüentemente continuaremos a agredir? Para alguns, “A identidade do paulistano é não ter identidade439”. Como se isso fosse possível.

São Paulo é uma cidade que não fixa uma identidade, com uma cultura e uma paisagem muito pouco exibicionistas, e seus cidadãos já naturalizaram, em relação a ela, uma

prática de recíproco mau trato. (...) A poluição do seu principal rio, o Tietê, a

demolição de sua Igreja Matriz, a primeira Sé, ou a canalização de seu mais importante “monumento” histórico, o córrego do Ipiranga, são manifestações desse desapego.440

O nível de oxigênio na água tende a subir, poderemos até encontrar peixes no trecho que abastece a metrópole, porém a contaminação cultural e anímica que ocorreu não sofrerá grandes alterações, uma vez que tais medidas não atingem a subjetividade humana. Logicamente, ver o rio mais limpo afetará a todos nós psiquicamente, mas o corrente mau trato com que nos relacionamos com a natureza continuará existindo.

Têm-se a ilusão de que o rio mais limpo trará uma nova cultura empática ao rio. Isso até poderia acontecer, não fosse a própria estrutura urbana da cidade, que

438 http://www.rededasaguas.org.br/observando/historia.htm Acesso em 20/12/04

439 GARBIN, Luciana. Gostos e manias constroem alma paulistana. Folha de S. Paulo, 24/09/2000. 440 WISNIK, Guilherme. Análise: Temos motivos para comemorar? Folha de S. Paulo, 25/01/2003.

“colocou” o Tietê numa área muito industrializada, intensamente poluidora do ar, com duas extensas marginais ali perpetuadas pelo sistema de ruas, avenidas e estradas da metrópole. Não se pode ignorar este fato. A cidade estará infinitamente “sufocando” o rio. “São Paulo cresceu pressionando o rio (Tietê), quando este é quem deveria orientar o crescimento da metrópole441”.

Sendivogius, o alquimista, afirmou: “A maior parte da alma” está fora do corpo. “Mens sana in corpore sano (o lema médico de Galeno, mente saudável em corpo sadio) refere-se hoje ao “corpo do mundo”; se não o mantivermos sadio, enlouqueceremos. O descaso pelo meio ambiente, o corpo do mundo, é só uma parcela de nossa “insanidade” pessoal. É preciso devolver a saúde ao corpo do mundo, pois nesse corpo também esta sua alma. Não acho que as disciplinas espirituais levem o mundo suficientemente em conta; vivem querendo transcendê-lo, ou seja, negá-lo com praticas espirituais. Por isso a terapia ainda é tão importante - se ela se esforçar e repensar suas bases -, porque está aqui na terra, na confusão da vida, e verdadeiramente preocupada com a alma.442

O rio da alma da cidade mostra violência, sujeira, alto custo de vida, poluição, trânsito, falta de atrativos e indignação com políticos. “Os paulistanos têm vivido cada vez mais fechados e conhecem a cidade mais pela televisão do que pelos olhos443”. Num plano profundo, o Tietê mostra o lado destrutivo, sombrio da cidade que, seguramente, ninguém quer ver. Será por isso que ficamos tanto tempo alienados da condição mórbida do rio? O Tietê morreu e não enlutamos. Nossa dissociação com o simbólico, com a alma do mundo, nos faz temer a finitude e incomprender a transcendência. Não soubemos lidar com a morte do rio e preferimos ignorá-la, o que provoca a agressão velada e a atuação inconsciente.

Buscamos uma visão integrada das duas dimensões – objetiva e subjetiva – para analisar a crise no rio. Sob este prisma, entendemos que a crise ressona numa dissociação interna, psíquica e espiritual do paulistano. E que uma não pode ser

441 Explica o superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), Ricardo Borsari.

NUNOMURA, Eduardo. Enchentes e falta d'água, a sina do paulistano: é difícil entender como pode haver racionamento, se tem chovido tanto na capital. O Estado de S.Paulo. 08/02/2004.

442 James HILLMAN, e Michael VENTURA, Cem Anos de Psicoterapia... e o mundo está cada vez pior,

p. 55.

trabalhada desprezando-se a outra, a exemplo daquilo que se vem fazendo. As estratégias governamentais e das ONG´s atuais não produzem um novo sentido para o símbolo do rio. Dessa forma, ele estará menos sujo, mas, para nós, continuará a ser o Tietê de sempre. Numa margem, a falácia redutivista; e na outra, a concretista. A busca da solução deste impasse pode estar na “terceira margem do rio”, na tensão, ou coexistência funcional dos contrários (Cassirer), no levantamento das máscaras do profano em busca do significado profundo dos sistemas símbólicos (Eliade), no diálogo consciente entre o ego e os símbolos aquetípicos (Jung). Essa é a proposta da Ecologia Arquetípica.

Isso talvez consagre um novo batismo, um novo jorro de “água da vida” que desperte a serpente de concreto aprisionada no viaduto e lhe confira paz. Em retorno, ela talvez nos dê mais vida, mais númen e restabeleça uma nova parentalidade com a Grande-Mãe, Patchamama, Anima Mundi.

Precisamos olhar as águas negras do estige Tietê e os olhos da Boiúna adormecida em busca de nossa verdadeira face, que se oculta atrás da máscara descartável e virtual do consumismo em moda. Identificados com a cara desta persona, não percebemos o que nos aprisiona e nos deprime na angústia e que nos faz eleger bodes expiatórios repetidamente. Até que encontramos um que não revidava: a Natureza. Será?