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O IMAGINÁRIO DO RIO TIETÊ

V. 1 Imagens e símbolos do Tietê através dos tempos

V. 1.2 As entidades aquáticas

Sendo um elemento primordial da vida e imprescindível à sobrevivência, dentre outros aspectos, a água é reservatório de inúmeras divindades e entidades, malignas e benignas (veja item IV. 1.1.2). Com relação ao Tietê, não foi diferente. Em sua história constam as entidades indígenas, portuguesas e européias e africanas. Este tema vasto e pluralizado não será abordado aqui em todas as suas variações, mas segundo a proposta de identificar o simbolismo aquático religioso e psicodinâmico no imaginário tieteano. Vale dizer que um rio que possui entidades é um rio vivo e presente animicamente ao povo que com ele se relaciona. Se perguntarmos: ainda existem tais entidades no imaginário atual? Ou, para onde foram, psiquicamente, tais entidades? Temos então uma perspectiva interessante para a abordagem psicológica posterior.

Na documentação jesuítica da época encontramos referências a entidades ligadas à água e/ou ao rio, tais como: Tupã346, Ipupiara347/Mãe-d´água348, Boitatás349, e Boiúnas350/minhocão. No entanto, com o passar do tempo as mitologias ameríndias foram se misturando ao imaginário europeu, português e africano. Por fim, as entidades

346 Tupã vem do tupi tu'pã ou tu'pana 'gênio do trovão ou do rio', cultuado como uma divindade

suprema. HOUAISS – Fonte de datação desta palavra: Cartas do Brasil [1549-1567] e mais escritos do Pe. Manuel da Nóbrega (Opera Omnia). Com introdução e notas históricas de Serafim Leite S.I. Coimbra. Por ordem da Universidade, 1955.

347 “Ipupiara - monstro feroz, habitante das águas, ser imaginário dado como um homem marinho;

igpupiara, hipupiara, upupiara – etimologia: tupi ïpupi'ara 'monstro marinho'” HOUAISS – Fonte de datação desta palavra: Pe. José de Anchieta. Carta. [1560] [As passagens abonatórias das cartas de Anchieta foram transcritas da edição das Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil (= Monumenta Brasiliae I - III), preparada pelo Pe. Serafim Leite. Roma, 1956 - 1960; ver CartJes].

348 “Mãe-d'água - rubrica: etnografia. Regionalismo: Brasil. do sXVI ao XIX, mito ofídico das águas,

elemento cosmogônico das populações indígenas brasileiras, cuja crença ainda sobrevive em certas áreas; boiúna Obs.: cf. ipupiara; Rubrica: etnografia. Regionalismo: Brasil. da segunda metade do sXIX em diante, mito hídrico influenciado pela sereia européia, ser meio mulher, meio peixe, que habita rios e lagos; iara; Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. um dos epítetos de Iemanjá, cuja representação popular tb. é a da sereia européia.” Dicionário Houaiss

349 “Boitatá - mito indígena simbolizado por uma cobra de fogo ou de luz com dois grandes olhos, ou por

um touro que lança fogo pelas ventas [Mito etiológico tb. relacionado com a indicação de tesouros

ocultos, a proteção dos campos contra incêndios ou que é uma encarnação de alma penada. – etimologia:

tupi mbaeta'ta 'id.', formado de mba'e 'coisa' e ta'ta 'fogo', supondo-se interferência do tupi 'mboya 'cobra' sobre o 1º el. do voc.; f.hist. 1560 baê tatâ, 1706 baetatá, 1872 boitatá, 1876 mboitátá”. HOUAISS – Fonte de datação desta palavra: Pe. José de Anchieta. Carta. [1560] [As passagens abonatórias das cartas de Anchieta foram transcritas da edição das Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil (= Monumenta Brasiliae I - III), preparada pelo Pe. Serafim Leite. Roma, 1956 - 1960; ver CartJes]

350 “Boiúna - mito hídrico de origem ameríndia, simbolizado por enorme e voraz serpente escura,

capaz de tomar a forma de qualquer embarcação e, mais raramente, de uma mulher; mãe-d'água – etimologia: tupi mboy'una 'cobra preta', formado de 'mboya 'cobra' + 'una 'preto'”. HOUAISS – Fonte de datação desta palavra: Padre Fernão Cardim. Do Clima & terra do Brasil. [c1584] [Cita-se, nas transcrições, o número do fólio, que é seguido de v, quando se refere ao verso do fólio, do manuscrito CXVI /1-33 da Bibl. de Évora].

aquáticas foram sendo misturadas a ponto de não mais se poder diferenciá-las por completo. Haja visto as definições encontradas nos dicionários. Cascudo chega a afirmar, a este respeito, que é “impossível aceitar na íntegra toda documentação dos estudiosos351”.

Para Cascudo, os mitos verdadeiramente brasileiros em relação às entidades aquáticas, seriam os da Boiúna e dos Ipupiaras. “Além do Ipupiara, o índio brasileiro tem outra tradição assombrosa de monstro aquático: o ciclo da Cobra Grande, a Cobra Negra, a Boiúna das mil estórias amazônicas352”. Esta serpente colossal também habita o imaginário do Tietê.

A serpente tieretense, conta-nos o soldado teuto, media nada menos de uma braça de diâmetro! (...) A minhocões imensos também se refere o bom Juzarte. Gravemente alude aos perigos do “passo de Pirataraca”, a jusante do salto de Avanhadava, “grande estirão de rio morto”, muito fundo e de águas negras, “muito fúnebre e triste de que os antigos temiam muito porque diziam que ali havia um grande bicho”.353

Sobre esta passagem, Helio Damante escreveu:

(...) o montro de Pirataraca, uma espécie de monstro de Loch Ness das águas do Tietê: o célebre minhocão, jacente no inconsciente coletivo e dele retirado para se fazer nos nossos dias, o nome popular do Elevado Costa e Silva, na capital do estado.354

A relação serpente – mulher já descrita por Eliade e Jung tem aqui mais uma evidência. “Cada igarapé, rio, lago, tem sua Mãe e esta só aparece como uma imensa serpente. Não tem piedade nem aplaca a fome. Mata e devora quem encontra355”. (fig. 11)

351 Tratados da terra e gente do Brasil, p. 89. Rio de Janeiro, 1925 IN: Luís da Câmara CASCUDO,

Geografia dos Mitos Brasileiros, p. 141.

352 Cf. Luís da Câmara CASCUDO, Geografia dos Mitos Brasileiros, p. 126.

353 Affonso de E. TAUNAY, História Geral das bandeiras paulistas, tomo 11, p. 181. 354 Helio DAMANTE, Folclore Brasileiro, p. 21.

As origens das mães-d´água certamente remontam às influências portuguesas e européias na mitologia ameríndia356. Taunay chega a citá-las na historiografia das bandeiras.

Para o lendário das monções concorreu Lacerda e Almeida com uma contribuição de relativa importância, embora curiosa. (...) Do proeiro e da tripuiacáo do seu canoão díz- nos que eram muito supersticiosos. O primeíro falava-llie constantemente na existência das mães d'água nos poços profundos dos ríos. Eram elas quem levantavam grandes ondas e faziam a muita bulha escutada da profundeza dos grandes caldeirões. Devia-se- lhes a morte de muitos homens. 357

Outra lenda, ligada à fúria das águas, relata que em alguns trechos de rios existiam mães-d´água encantadas que levantavam grandes ondas faziam muita bulha, matando alguns homens. Eram sempre descritas como monstros horríveis, que habitavam poços piscosos, neste caso os de Lençóis.358

Segundo Câmara Cascudo, a mãe d´água teria sido originada parte pela Cobra Grande, parte pela Ipupiara: “A Cobra Grande teria dado nascimento ao mito da Mãe d´Água brasileira (...) Temos positivamente que em 1630 era corrente chamar-se a uma cobra “Mãe d´Água359”; mais à frente, afirma: “O Ipupiara passou a Máe-d'Água360”. Em outros pontos do folclore paulista aparecem Mães d´Água prestativas e boas, que podem amar e levar a tesouros. Logo, esta figura se mostra por demasiado complexa para ser abordada neste estudo. O mesmo vale para as sereias e iaras. Quanto a esta, no entanto, achamos válido o relato Tupi, ainda que revele conteúdos europeus361.

Yara, a rainha das águas dos Tupi, era a mais formosa mulher da tribo. Também era muito amiga da natureza e gostava de passar os dias pelas areias brancas dos rios, a banhar-se nas suas águas. Numa tarde, enquanto se banhava no rio até tarde da noite,

356 Cf. CASCUDO, op. cit., pp. 125-140. 357 TAUNAY, op. cit., p. 181.

358 SÃO PAULO (ESTADO) SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE A Água no Olhar da História, p.

63.

359 Tratados da terra e gente do Brasil, p. 89. Rio de Janeiro, 1925 IN: CASCUDO, op. cit., p. 131. 360 Tratados da terra e gente do Brasil, p. 89. Rio de Janeiro, 1925 IN: CASCUDO, op. cit., p. 141. 361 Para mais informações a este respeito, ver: Tratados da terra e gente do Brasil, p. 89. Rio de Janeiro,

homens estranhos de barba, roupas pesadas, botas e chapéus a agrediram. Agredida, acabou por desmaiar. E, ainda assim, foi violentada e abusada. Por fim, atiraram-na no rio, onde o espírito das águas a transformou num ser duplo – metade humana, metade peixe. Seguiu vivendo nos rios, linda, mas letal.

Yara passou a entender os pássaros e a conversar com eles e com os peixes, como uma sereia, cujo canto atrai os homens de maneira irresistível. Ao verem a linda criatura, aproximam-se dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde nunca mais voltarão. 362

Esse círculo de imagens simbólicas, porém envolve não apenas uma figura, mas uma pluralidade de figuras de 'Grandes Mães’, as quais a humanidade se incumbiu de difundir através dos hábitos, rituais, mitos, religiões e fábulas, sob a forma de deusas e fadas, demônios femininos e ninfas, e de entidades graciosas ou malévolas. Todas são formas de manifestação de um só Grande Desconhecido, a "Grande Mãe", que é o aspecto central do Grande Feminino. 363