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O IMAGINÁRIO DO RIO TIETÊ

V. 1 Imagens e símbolos do Tietê através dos tempos

V. 1.1 A toponímia do rio

Passamos agora a uma aproximação do nosso objeto de estudo, via uma abordagem lingüística, iniciando por Benedito Prezia em seu estudo sobre os indígenas do planalto central331. Defendendo a idéia de que os nomes que os homens primitivos colocaram nos lugares são o ponto de partida para investigar a cultura, Prezia busca os “topônimos mais antigos”, dentre os quais encontram-se os hidrotopônimos. Posto que os jesuítas foram muito sucintos no registro da hidrotoponímia, resgata seu material de pesquisa também na documentação civil da época.

329 CAMPBELL, Joseph O Poder do Mito, p. 97. 330 Mello NÓBREGA, História do rio Tietê, p. 38.

De todos os topônimos, aqueles que contêm mais variações são os do rio Tietê. O historiador Mello Nóbrega, queo denominou “o mais velho de todos os paulistas332”, aponta que Plínio Ayrosa registrou mais de quinze denominações, dentre elas: Agembi, Aiembi, Anemby, Aniembi, Anhambi, Anhebi, Anhebu, Anhebig, Anhembu, Iniambi, Inhambi, Inhembi, Niembi333. Rio dos enambus, “rio das perdizes”, “rio das anhumas”, “rio dos veados”, “rio não liso, de altos e baixos”. Com os anos, tornou-se rio Tietê, o que, para alguns, deve-se à aves ferro-velho (Euphonia pectoralis) e tizio (Volatinia jacarina)334, as quais podiam ser avistadas em suas margens. Contudo, a palavra tietê, de origem tupi, tem também como etimologia: “segundo Nascentes, tupi tie'te, tupi ti'ye 'o pássaro' + tupi e'te 'verdadeiro, legítimo335”. Por adjetivação, surgiram: tieteano “próprio do ou relativo ao rio Tietê (SP) ou à área por onde ele corre336”; e tieteense “relativo a Tietê SP ou o que é seu natural ou habitante; etimologia: top. Tietê + -ense; segundo Nascentes “água verdadeira, água boa”, do tupi t- pref. de classe superior + ï ‘água’ + e’te “legítimo, verdadeiro”.

Curiosamente, uma tradução que passa despercebida por diversos toponomistas é destacada por Prezia, que faz referência ao prof. Aryon Rodrigues:

Isto mostra uma evolução toponímica, quando um vocábulo tupi, designando o nome específico do rio – Anhemby – foi substituído por outro vocábulo tupi – Tyetê –, cuja tradução é ‘mãe do rio’, numa referência aos transbordamentos deste rio, como vimos anteriormente.337

O antigo presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, e membro da Academia Paulista de Letras, Affonso A. de Freitas dá sua interpretação para

332 NÓBREGA, Mello. História do rio Tietê. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de

São Paulo 3a. Ed. 1981, p. I.

333 NÓBREGA, Mello. História do rio Tietê – 3ª. Ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da

Universidade de São Paulo, 1981, p. 62.

334 Dicionário Houaiss (versão eletrônica 1.0, em CD-ROM, - Dezembro de 2001 Copyright 2001

Instituto Antônio Houaiss Produzido e Distribuído por Editora Objetiva Ltda.

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Anhambi338 como “rio dos veados”, pela quantidade de animais que iam buscar alimento nos pastos das várzeas férteis devido às enchentes do rio. Este mesmo autor revela que Tietê, por ser um grande rio, tinha diversos nomes que variavam de acordo com a localidade339.

Piratininga340 (pira = “peixe”, tininga = “seco”). O VLB dá ao vocábulo tinîga sentido de “seca cousa como quer” (2:114), provavelmente no sentido de “qualquer coisa seca”. Teodoro Sampaio traduz como “o peixe a secar; o seca-peixe” referindo- se ao fato de se encontrarem peixes secos às suas margens, após as cheias (987:303).341

• Anhambi / Anhemby (Anhym = “anhima, inhuma,inhaúma, ave”; y = “rio”). Antigo nome do Tietê, como se vê na documentação quinhentista: “(...) diserão q he verdade q o gentio de mongi pelo rio abaixo de Anhembi” (...) Anchieta descreve essa ave na sua carta de maio de 1560. “Há outra [ave] que se chama anhima, de grande corpo; quando grita parece o zurrar dum burro; em cada asa tem como três pontas, e uma também na cabeça, iguais aos esporões dos galináceos, mas muito mais duros. Quando os cães a atacam, embora a grandeza do corpo a não impeça de voar, ela armando as asas, fere-os gravemente e os afugenta”.342

338 “Anhambi. S. m. Rio do veado, de Anhangá, veado e y, água, rio, com a permuta do grupo originário

nga por mb: denominação dada pêlos guaianás de Tibiriçá ao rio Tietê, em seu curso através das várzeas de Piratininga, pela grande quantidade de veados que afluíam àquele ponto em busca das pastarias gordas periodicamente fertilizadas pelas enchentes do rio. Aliás a abundância de veados em redor da cidade de São Paulo foi de todos os tempos: ainda em 1880 apareciam êles nas alturas de Vila Mariana, da Avenida, Paulista e nos pastos do Bexiga, hoje bairro da Bela Vista”. FREITAS, Affonso A. de. Vocabulário Nheengatu. p. 87 IN: Affonso A. de. FREITAS, Tradições e Reminiscências Paulistanas, p. 181.

339 “O nome do rio, em todo seu curso era — Tietê —, não obstando, entretanto, tal circunstância, que em

mais de um estirão tivesse ele denominação peculiar, como ainda hoje acontece em quase todos os cursos de água paulistas e no próprio Tietê, assinalando acidentes locais; se o seu nome regional em Piratininga era Anhambi, pela circunstância referida, já um pouco abaixo e antes de sua confluência com o Pinheiros chamava-se — rio da Emboaçava —, isto é, rio do vau, da passagem, originada na particularidade de existir ali, atravessando o álveo do rio, uma afloração de rocha permitindo o travessia do rio (emboaçava) quase a pé enxuto nas grandes estiagens, e seguro vau nos volumes normais da torrente”. FREITAS, Affonso A. de. Vocabulário Nheengatu. p. 87 IN: FREITAS, op. Cit., p. 181.

340 O nome Piratininga foi usado por Anchieta para designar o rio Tietê.

341 “Azevedo Marques acredita que o Piratininga era o mesmo rio Tamanduateí Um documento da época

confirma esta hipótese: ‘(...) o Senhor Martim Afonso de Sousa fez esmola à Companhia (...) de duas lleguoas de terra ao longo do Rio de Piratininga’ (Carta de doação da sesmar. Geraibatiba, 1560). Como a missão instalada às margens do rio Tamanduateí passou a ser chamada de Piratininga (ANCHIETA) é mais um argumento a favor desta hipótese”. IN: PREZIA, op. cit., p. 148

Sérgio Buarque de Hollanda, em Visão do Paraíso, revela as qualidades extraordinárias da ave anhuma343 (fig. 10) que abundava no Tietê e lhe conferiu seu nome primitivo. Para este autor, tais aves foram intensamente procuradas e abatidas por duas razões: (1) as famosas crenças indígenas a respeito das virtudes terapêuticas, de cura e purificação, do chifre que lhe sai do alto da cabeça – o “milagroso corno344”; e (2) a semelhança de tal fisionomia à do mitológico unicórnio europeu. Atualmente, praticamente extintas, permanecem apenas nas memórias dos livros e dicionários. 345

Por este topônimo estar relacionado a uma ave tão mágica e em adição às traduções de rio grande, e até “mãe do rio”, entendemos que o Tietê possuía grande importância no imaginário de seus primeiros habitantes. Um rio impetuoso e pleno de vida pela fertilidade que promovia nos seus cobiçados campos, talvez até divino como o chifre da anhuma. Sem dúvida, este rio possuía muitas qualidades extraordinárias que não passaram despercebidas pelos habitantes autóctones por séculos, e que tinham em adição uma relação também muito especial com o elemento água, tal como apresentamos nas mitologias descritas.

343 “À imagem do unicórnio, apresentado nos bestiários, tanto quanto a fênix, como símbolo de Jesus, não

se associaria a da anhuma apenas pela circunstância de serem ambos chifrudos, mas ainda pelo notável volume desta — a fêmea, dizia Piso, é maior do que um pavão ou cisne, e o macho tem duas vezes esse tamanho —, e também pelo grito estridente que Anchieta comparou ao zurrar de um burro e que, segundo Fernão Cardim, podia ser escutado à distância de meia légua e mais. A mesma estridência, sugerindo idênticas comparações, atribuiu-se ao brado ‘fierement espouantabale’ que Bruneto Latino, em seu ‘tesouro’ dá como próprio do unicórnio”. IN: HOLLANDA, Visão do Paraíso, p. 222.

344 Cf. HOLLANDA, Visão do Paraíso, p. 222. 345 Cf. HOLLANDA, Visão do Paraíso, p. 222.