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O IMAGINÁRIO DO RIO TIETÊ

V. 1 Imagens e símbolos do Tietê através dos tempos

V. 1.6 O rio da morte

Nos diários de navegação tieteana da época das Monções391 ficam evidentes as dificuldades causadas pelas quedas d´água, corredeiras, cachoeiras ou pântanos, doenças como febres e malária, animais peçonhentos e insetos392. A navegação do Tietê teve, portanto, seu imaginário associado a sofrimento e destrutividade. Pelas más condições de navegação, em 1726 foram registrados quase 200 acidentes graves393.

Porém, depois do declínio das Monções, e mais especificamente, com a proibição do esporte e do lazer devido à poluição e às terríveis enchentes, por exemplo a de 1929, o Tietê e suas águas assumiram uma nova representação muito mais destrutiva e mórbida no imaginário paulista. “(...) Com o tempo, assumiu um prestígio às avessas: adquiriu um nível de poluição alarmante e sua imagem ficou vinculada a algo de ruim e destrutivo394”. Mais ligado à poluição, à sujeira, à morte e às doenças, o rio foi sendo preterido e afastado dos interesses paulistanos. Da veneração anterior, sobreveio repúdio e descaso395.

390 SÃO PAULO (ESTADO) SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE, op. cit., 67.

391 Escrito pelo sargento-mor Teotônio José Duarte, o - Diário da Navegação do rio Tietê, rio Grande

Paraná e rio Gatemi em que se dá relação de todas as coisas mais notáveis destes rios, seus cursos, sua distância, e de todos os mais rios que se encontram, ilhas, perigos, e de tudo o acontecido neste diário pelo tempo de dois anos e dois meses. Que principia em 10 de março de 1769 - , constitui uma das mais extraordinárias narrativas da navegação fluvial no Brasil no século XVIII. A monção partiu de Araritaguaba, atual Porto Feliz (SP), às margens do Tietê. IN: Jonas Soares SOUZA, Miyoko MKINO, op. cit., p. 26.

392 SÃO PAULO (ESTADO) SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE, op. cit., p. 61.

393 http://www.sabesp.com.br/sabesp_ensina/intermediario/tiete/default.htm Acesso em : 20/12/04. 394 ________ O Livro do Rio Tietê, p. 10. O grifo é nosso.

395 “Do entroncamento rodoviário conhecido como Cebolão, na zona Oeste da capital, à barragem da

Penha, na zona Leste, o Tietê cumpre um percurso de 36 km através da metrópole paulistana. Nesse trecho, além de receber dejetos humanos e industriais, ele foi sistematicamente emporcalhado por detritos de todos os tipos, de peças de veículos, geladeiras inteiras e outros eletromésticos, passando por armários, malas e colchões, até pneus, animais mortos e corpos humanos em decomposição. O rio se tornou não só um canal de esgoto como também um depósito de lixo a céu aberto. Não é difícil imaginar o aspecto

Anos antes, em 10 de janeiro de 1940, tinha sido criada a primeira legislação específica no Brasil contra a poluição das águas, o decreto 10.890. Chegou mesmo a ser constituída uma Comissão de Investigação das Águas no Estado de São Paulo. Nada

disso impediu a morte do Tietê. (...) O Tietê, parte alegre da vida da cidade, foi

esquecido. (...) era um mundo morto, a não ser pela grande variedade de

microorganismos perigosos que proliferam nesse meio396.

Nos últimos cinco anos, os principais jornais de São Paulo realizaram diversos textos sobre o Tietê. Acreditamos que os mesmos são também uma expressão do imaginário simbólico social. Com relação à representação de morte e destrutividade, os termos e expressões mais encontrados foram: “rio morto”, “esquecido”, “imundo”, “mal cheiroso”, “oleoso”, “mundo morto de organismos que causam doença”, “lixo e esgoto” (doméstico e industrial), “enchentes”, “descaso”, “falta de zelo”, “cemitério”, “espuma tóxica”, dentre outros. São trezentos e cinqüenta quilômetros de morte. Oito mil toneladas de esgoto fétido por dia, e um índice zero de oxigênio por 60 anos. “O rio não tem vida. No lugar de peixes e plantas, tem lixo397”. Ao deixar a metrópole arrasta tal morbidez por duzentos e cinqüenta quilômetros, até a represa de Barra Bonita398.

Aos poucos, a cidade se volta para olhar o rio, tendo a chance de confrontar o resultado dos anos de descaso. O que se vê é “um caldo oleoso e denso”, garrafas de refrigerante vazias e sacos plásticos acumulando nas margens sem vegetação399. Além do esgoto, todo tipo de lixo pode ser encontrado: “desde rejeitos químicos até sofás, cadáveres, pedaços de corpo, sandálias de dedo e a incrível marca de 120 mil pneus400”. É impossível, também, não perceber o odor fétido, uma mistura de “esgoto e borracha queimada”. Embora o Tietê já tenha seu dia festivo (22/09 – Dia do Rio Tietê), ainda falta muito para que se torne uma festa401. (fig. 15)

396 http://riotiete.sites.uol.com.br/morte/morte.htm. Acesso em : 20/12/04.

397 MAGALHÃES, Rita. Presente para o Tietê: zero de oxigênio. Jornal da Tarde, 23/09/2002. 398 METADE dos rios tem excesso de poluentes. Folha de S. Paulo,22/07/2001.

399 UM RIO Tietê ainda muito longe de comemorações No dia do rio, viagem mostra que há uma série de

problemas sem solução. O Estado de S.Paulo, 23 de setembro de 2003.

400 MENCONI, Darlene. Piscinão de encrencas Laudo técnico aponta contaminação no aterro de

Carapicuíba e esquenta a polêmica sobre obra na calha do rio Tietê. Rev. Isto é, 28/01/2004.

401 UM RIO Tietê ainda muito longe de comemorações No dia do rio, viagem mostra que há uma série de

“Já vi de tudo. Bicho morto sempre tem. Mas o que mais me impressionou foi ver um bebê boiando, certa vez”. (...) “É chocante”, destaca. “Já vi ao longo dos 10 anos que trabalho no Tietê quatro corpos, além de bichos grandes mortos”. (...) Para crianças e moradores do entorno, o aprofundamento da calha do Tietê significou uma oportunidade de negócio. Meninos passam a tarde catando entulhos retirados do leito do rio e colocados nas margens. O produto ali recolhido é vendido do outro lado da Marginal. Os clientes são atraídos por uma placa, feita manualmente. “Já avisamos que isso aqui é perigoso. Eles podem cair no rio, se machucar com pregos ou qualquer coisa. Mas dizem: é com isso que consigo comprar comida”, relata Peres. 402

Nas comemorações dos 450 anos de São Paulo, alguns “corajosos” foram remar nas “águas fétidas” do Tietê. “Só o escafandro de um mergulhador, quem sabe, protegeria a pele contra as substâncias despejadas em certos trechos do rio, cujo leito alimenta a história da maior metrópole do País403”. Para aqueles que um dia competiram nas águas do rio, fica a tristeza e a agonia: “Foi muito triste, ninguém imaginava que um dia o rio acabaria desse jeito. Dá uma agonia muito grande olhar o rio hoje, morto e sujo, e lembrar dos momentos de glória da travessia. Ninguém acredita quando conto404”. Para as crianças que realizaram um passeio de barco no rio, a aflição com doenças e riscos é evidente: “Se eu morrer, pode ficar com meu videogame405”.

“O lixo é levado de um lado para outro, como se fosse poeira debaixo do tapete, em vez de ser tratado em aterros para resíduos industriais”, denuncia o ambientalista Leonardo Morelli, coordenador do Grito das Águas. Nos três milhões de metros cúbicos escavados do Tietê se achou de tudo. São milhares de sandálias Havaianas e de garrafas de refrigerante. Há tralhas de todo o tipo, desde móveis enjeitados até cadáveres e estimados 120 mil pneus, dos quais se pescaram 80 mil.406

402 UMA missão quase impossível: salvar o Tietê. Jornal da Tarde,2 de setembro de 2002.

403 MENCONI, Darlene. Piscinão de encrencas Laudo técnico aponta contaminação no aterro de

Carapicuíba e esquenta a polêmica sobre obra na calha do rio Tietê. Rev. Isto é, 28/01/2004. Acesso on line em 20/01/05.

404 MORI, Kiyomori. Rio Tietê teve prova de natação por duas décadas. Folha de S.Paulo, 09/12/2003. 405 BASTOS, Rosa. Excursão da escola pelo Rio Tietê: divididos em duas turmas, 130 alunos de 8 e 9

anos fizeram um passeio de barco. O Estado de S.Paulo, 10 de Novembro de 2004.

406 MENCONI, Darlene. As águas da morte. Rev. Isto é, 04/06/2003. Acesso on line em 20/01/05.

No processo de limpeza do Tietê, a lama tóxica que vem sendo retirada do fundo foi despejada sem qualquer tratamento na lagoa de Carapicuíba, o que trouxe um cenário absurdo de descaso ambiental.

“De longe, a água brilhava. Quando chegamos perto, vimos um cemitério. Os peixes mortos boiavam, os outros colocavam a boca para fora para respirar um pouco e depois mergulhavam fundo”, conta o falante Rodrigo. “Todo peixe vive na água, mas os daqui estão querendo sair”, resume Thiago, cujos olhos, com dez anos de vida, jamais tinham visto tamanha mortandade. Os garotos choraram de tristeza pelo destino do que gostariam que fosse o cartão-postal de sua cidade, um piscinão de entulho onde as crianças insistem em brincar e pescar, apesar do cheiro ácido de esgoto e da poeira que arranha os olhos e a garganta. 407