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O componente psicodinâmico do símbolo da água

O simbolismo da água

IV 1.1.3 Meio de purificação e regenerabilidade

IV. 1.2 O componente psicodinâmico do símbolo da água

Para entender a psicodinâmica do simbolismo da água na abordagem junguiana, é preciso considerar a água e o inconsciente, bem como a água como símbolo do arquétipo da Grande-Mãe. Como símbolo do inconsciente, a água pode representar tanto aspectos mais superficiais, relativos ao inconsciente pessoal – a sombra; como, se profundas ou demasiado grandes, do inconsciente coletivo. Já em relação ao arquétipo da Grande-Mãe, a água está ligada ao simbolismo da vida e da morte, ao útero, ao ventre e ao seio.

Uma vez que um símbolo que irrompeu na consciência não é compreendido, torna-se parte do inconsciente pessoal do individuo ou da comunidade. Para Jung, se a dissociação entre o ego e a psique for intensa, o próprio “mecanismo” de feedback psíquico irá tender a equilibrar esta separação. Isto pode aparecer em símbolos onde o ego é levado a buscar a água profunda de um vale, e lá, por exemplo, uma jóia preciosa; ou então, num levante de águas revoltas, numa grande chuva torrencial ou num afogamento, significando um estado de invasão do ego por parte do inconsciente.

Esta contaminação é que precisa ser purificada pelo crescimento de consciência proporcionado pelo processo analítico. E neste, o primeiro passo é o confronto com a sombra, onde residem tais poluentes. Para encontrar a sombra, é preciso descer à dimensão profunda do inconsciente, onde, não raro, deve-se travar uma batalha com um monstro, a fim de obter o “tesouro”, a purificação da “água da vida”.

Então, essas profundidades, em nivel de tão grande inconsciência que surge em nosso sonho, contêm ao mesmo tempo a chave para a individualidade, em outras palavras, para a cura. O significado de "totalidade" ou "total" é tornar sagrado ou curar. A descida à profundidade trará a cura. É o caminho para o encontro pleno, para o tesouro que a humanidade sempre buscou sofrendo, e que se esconde num lugar guardado por um perigo terrível. É o lugar da inconsciência primordial e, ao mesmo tempo, da cura e redenção, pois contém a jóia da inteireza. É a caverna onde mora o dragão do caos, e

também a cidade indestrutível, o círculo mágico ou temenos, o recinto sagrado onde todos os fragmentos separados da personalidade se encontram. 284

Em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo [1976]- Sobre o renascimento [1939;

1950], Jung relembra que “a consciência não produz sua própria energia285”, ela precisa da

integração da energia psíquica, ou libido, que se dá pela conscientização dos conteúdos arquetípicos, por meio dos símbolos. Logo, o ego que vivencia uma grande perda de energia psíquica necessita, muitas vezes, do contato com a “água da vida”.

No texto Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo286 [1934; 1954] 287, Jung advoga que o empobrecimento da dimensão simbólica na idade moderna pode levar a psique a produzir imagens que levam à água. A iconoclastia da Reforma haveria cindido as muralhas que protegiam as imagens sagradas cristãs e, desde então, o homem questiona a veracidade de suas imagens arquetípicas, baseando-se na razão para entendê-las.

Logo, o homem moderno, de deuses mortos, cuja vida não habita mais as igrejas, está como a alma que procura o pai perdido. A água aqui atua como uma condensação do espírito, um símbolo do inconsciente profundo, um porto-seguro para onde a consciência deve retornar para religar-se com a dimensão simbólica, espititual. Isso traria um novo significado e um novo fluir para a criatividade e a energia psíquica.

Para Jung, um dos significados da água para a psique seria o da “água misteriosa”, tocada pelo anjo (o vento, o pneuma), adquirindo então o poder curativo – milagre da vivificação da água, da piscina de Betesda. Psicologicamente, a água representa o espírito que se tornou inconsciente. Logo, ela pode proporcionar a cura, a “vida”. A descida ao vale das águas profundas, ou escuras, sempre precede uma subida, é indispensável para a ascensão, um grande crescimento da consciência.

Em se tratando do desencantamento da natureza e do empobrecimento dos símbolos, é preciso percorrer o caminho da água. Como apresenta Jung, este caminho sempre tende a descer e é preciso percorrê-lo em direção às águas do inconsciente, para resgatar o tesouro, “a preciosa herança do Pai”. Novamente, os perigos dessa descida podem ser simbolizados pelo dragão que guarda o poço onde jaz

284 JUNG, Fundamentos de Psicologia Analítica, par.270. 285 JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, par. 248. 286 JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, 2000.

uma pérola preciosa; pela entrega aos prazeres mundanos e pelo esquecimento da busca, dentre outros. Ainda em sonhos, o símbolo da água surge para um paciente numa série de episódios. Neste ponto, Jung ressalta que a “água é o símbolo mais comum do inconsciente”. 288

Detalhando a jornada de descida às águas do inconsciente, em resgate do espírito, do simbolismo perdido ou da natureza desencantada, Jung coloca que o primeiro estágio é o encontro com a sombra. E esta é a “primeira prova de coragem no caminho interior”, por sinal, “coisa de aprendiz”. Assim, a visão do espelho de água reflete nossa própria imagem, fielmente, ao contrário da persona que mostramos ao mundo. E tal imagem é desagradável, pois nos mostra aquilo que evitamos em nós mesmos e jaz em nosso inconsciente pessoal. Como o movimento da psique é em direção da totalidade, da individuação, os conteúdos esquecidos ou reprimidos do inconsciente pessoal (que constituem os complexos) deverão ser integrados à consciência. A sombra (e seus complexos) está viva e quer comparecer, sendo impossível apagá-la por meio da razão, pura e simplesmente. Integrar a sombra e encontrar a anima levam o ser rumo à superação dos opostos, à alteridade e à totalidade, à real democracia e à saúde ecológica. Portanto, ainda que perigoso e amedrontador, talvez percorrer este caminho revele-se uma das poucas opções à crise ecológica moderna (aprofundaremos esta discussão no último capítulo da dissertação).

Em continuação, por trás da imagem do espelho de água, existem ainda outros seres, representantes do ser mágico feminino, arquétipo da vida289, que Jung denominou anima. “Ela [a anima] é algo que vive por si mesma e que nos faz viver; é uma vida por detrás da consciência”.290 Ainda sobre esta, “tudo o que é tocado pela anima torna-se numinoso, isto é, incondicional, perigoso, tabu, mágico”. 291 Neste estágio de confronto com a anima é que Jung acredita residir a grande obra-prima do ego.

Além de representar o inconsciente, a água aparece também como símbolo da Grande-Mãe, ou do que denominaremos de Grande-Feminino. São atributos positivos do arquétipo materno: 288 Ibid., par. 40. 289 Ibid., par. 66. 290 Ibid., par. 57. 291 Ibid., par. 59.

(...) o ‘maternal’: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos.292

Quanto aos negativos, relacionaremos mais adiante. Por ora, colocamos ainda os três aspectos essenciais da mãe: “sua bondade nutritiva e dispensadora de cuidados, sua emocionalidade orgiástica e sua obscuridade subterrânea293”.

O significado maternal da água é um dos simbolismos mais claros da mitologia, como diziam os antigos: o mar – símbolo do nascimento. A vida vem da água, daí também os dois deuses que mais nos interessam, Cristo e Mitra; este último nasceu às margens de um rio, Cristo ‘renasce’ no rio Jordão. Além disso, nasceu da ‘contínua fonte do amor’, da Mãe de Deus, que a lenda pagão-cristã transformou em ninfa da fonte. A ‘fonte’ também existe no mitraísmo: uma dedicatória diz ‘Fonti perenni’. Uma inscrição de Apulum leva a dedicatória: ‘Fons aeternus’. Em persa, ardîçûra é a fonte com a água da vida. Ardîçûra-Anâhita é uma deusa da água e do amor (assim como Afrodite é a ‘nascida na espuma’). Nos Vedas as águas chamam-se mâtritamah = as mais maternais. Tudo o que é vivo emerge da água, como o Sol, e no fim do dia torna a nela submergir. Nascido das fontes, dos rios e dos mares, o homem na morte chega às águas do Estige, para iniciar a ‘viagem noturna pelo mar’. 294

Em resumo, Jung explora em várias de suas obras o simbolismo da água, “o símbolo mais comum do inconsciente295”. Este símbolo pode representar:

• O inconsciente em geral296;

• Uma grande proximidade com o inconsciente;

292 Ibid., par. 158. 293 Ibid., par. 158.

294 IDEM, Símbolos da Transformação, par. 319.

295 IDEM, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, par. 40. 296 JUNG, A Prática da Psicoterapia, par. 17.

• A proximidade com conteúdos sombrios, as “águas profundas”; • A “perda da alma” dos antigos, um abaissement du niveau mental; • O espírito que se tornou inconsciente297;

• O arquétipo materno298;

• Água em movimento pode significar o fluir da vida, ou o fluir da energia299;

297 JUNG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, par. 40. 298 Ibid., par.156.

Capítulo IV. 2