• Nenhum resultado encontrado

A álea como instrumento de identificação do negócio aleatório

CONTRATOS ALEATÓRIOS: CONCEITOS, ESPÉCIES E LIMITES

II.8. A álea como instrumento de identificação do negócio aleatório

Para a identificação do contrato aleatório é essencial que a álea, o lucro incerto, esteja presente.108 Mas apenas esse elemento não basta para a identificação do contrato como aleatório. Tome-se como exemplo, assim, o contrato de empreitada por preço global. Nessa modalidade contratual, o empreiteiro se obriga a entregar a obra por inteiro ainda que haja oscilação no preço dos materiais e produtos que devem ser empregados na obra e, nem por isso – embora, em função dessa oscilação, o lucro seja incerto – é aleatório o contrato de empreitada por preço global, na medida em que a sua causa,109 ou natureza, não é aleatória.

Faz-se necessário, assim, para facilitar a compreensão do negócio como aleatório, diferenciar a álea jurídica da econômica, conforme a lição de Vincenzo Roppo.110

Na álea jurídica, a incerteza é característica própria do negócio, somada à possibilidade de descumprimento contratual, de inadimplemento, considerando-se que a incerteza está ligada à causa do contrato. É certa, desse modo, no contrato aleatório, a probabilidade de perda. O risco é necessário.

Já a álea econômica, que toca a todos os contratos de execução diferida ou de duração, indistintamente, refere-se à habitual variação de valores das operações financeiras. No caso da empreitada por preço global, a álea econômica do contrato pode variar, mas a intenção das partes não é direcionada à possibilidade de incerteza, de lucro incerto. Por isso, não se trata de contrato aleatório.

108

Segundo Pompeo Polito, na obra La giurisprudenza sul Codice Civile, Livro IV, coordenado por Saverio Ruperto, p. 577, a propósito da identificação do contrato aleatório, “L‟incertezza deve caratterizzare il contratto fin dalla fondazione, sicché è da escludere l‟ipotesi del contratto aleatorio quando ciascuna delle parti all‟atto del perfezionamento del contratto ha avuto la possibilitá di valutare Il proprio rispettivo sacrifício e vantaggio”, o que, em tradução livre, significa “[a] incerteza deve caracterizar o contrato desde a fundação, desse modo é de excluir a hipótese do contrato aleatório quando quaisquer das partes no ato de aperfeiçoamento do contrato teve a possibilidade de avaliar o próprio sacrifício e vantagem”.

109 De acordo com a lição de Roberto Senise Lisboa, em Relação de Consumo e a Proteção Jurídica do

Consumidor, p. 30, “a causa determinante ou final, denominada simplesmente causa, é a razão em virtude da

qual as pessoas contraem obrigações. É a ideia filosoficamente correlata à de efeito”.

Assim, para identificar o contrato aleatório é preciso avaliar a causa que leva as partes a contratar.111 No contrato aleatório, a álea é juridicamente estabelecida pelas partes, “[...] o risco vem denominado álea jurídica no sentido que penetra na causa do contrato, caracterizando-o, nesse ponto, como contrato aleatório”.112 As partes contratam o risco necessário, sem equivalência entre as prestações, “não basta que a prestação de uma ou de ambas as partes seja indeterminada, no que diz respeito à sua existência ou quantidade (an ou quantum). Essa indeterminação deve, necessariamente, refletir-se na função ou causa concreta do negócio”.113

O risco integra o objeto da contratação entabulada entre as partes, que assumem a aleatoriedade da prestação como elemento essencial do contrato.

É certo que, no contrato aleatório, ao contratar, as partes optam pelo risco próprio deste tipo de contrato, que constitui a sua própria causa, ou seja, a incerteza sobre a prestação, além de correr o risco comum a todos os contratos, como a possibilidade de inadimplemento, exposição a oscilações de preços de insumos e matéria-prima, variação do valor da moeda, entre outros fatores ínsitos a qualquer tipo de contratação.

Nesse passo, parece-nos acertada a lição de Nelson Borges a propósito da identificação de “três áleas” no contrato aleatório: “Uma natural, comum a todos os pactos, [...]; outra, de natureza extracontratual, específica para a identificação de acontecimentos imprevisíveis, [...]; e uma terceira, determinada pela natureza sui generis da contratação”,114 relacionada à incerteza da prestação.

De acordo com essa distinção, a sujeição dos contratantes às oscilações dos preços de mercado diz respeito à álea natural do contrato aleatório. A incerteza sobre a prestação, por sua vez, integra a álea normal do contrato aleatório e, por fim, a álea de natureza extracontratual diz respeito aos eventos imprevisíveis, no momento da contratação, que podem ocorrer no curso do contrato, de modo a desconfigurar a finalidade contratual imaginada pelas partes no momento da celebração do contrato, tal como a ocorrência de uma enchente em local onde nunca houve ou a alteração exagerada nunca antes ocorrida de um índice financeiro.

111 Segundo Enrico GABRIELLI, na obra Trattato de Diritto Privato, v. XIII, Il Contratto in generale, tomo VIII, p. 359, “Nei contratti aleatori l‟alea si collocherebbe quindi come un momento originario ed essenziale, „che colora e qualifica lo schema causale del contrato”.

112

DIENER, Maria Cristina. Il contratto in generale, p. 69.

113 MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Direito dos Contratos. Classificação dos contratos, p. 41.

Importa considerar que, na verdade, no contrato aleatório é possível identificar as áleas normal e anormal, ou extracontratual. Embora seja variável, ou inicialmente não quantificável a medida da prestação ou o grau de apropriação de lucro ou prejuízo em razão do cumprimento do contrato, não é de se excluir desse tipo de contrato a possibilidade da superveniência de eventos absolutamente estranhos à previsibilidade normal que cabe aos contratantes, de modo a desarranjar as premissas iniciais contratadas.

Promovidos esses registros, vale notar que, ademais, se o contrato aleatório é identificado pela álea ou o risco assumido pelas partes, a se verificar no futuro, a depender de evento que implicará em prejuízo ou lucro para as partes, é preciso distingui-lo do contrato sob condição,115 que é aquele vinculado a evento futuro e incerto. “Por conseguinte, tal evento atinge a eficácia do negócio, no todo ou em parte. Mas as prestações do negócio condicional se exigem, desde logo, determinadas e equivalentes.”116 Não há, pois, no contrato sob condição, incerteza sobre a quantidade da prestação, como ocorre no contrato aleatório.

Como mencionado, a incerteza dos contratantes, no contrato aleatório, a respeito do lucro ou prejuízo, corresponde à causa do contrato, e não simplesmente a traço secundário da contratação (a ocorrência de evento futuro).

Há, pois, no contrato aleatório, plenamente válido e eficaz, incerteza sobre o lucro ou prejuízo e, até mesmo, sobre a quantidade da prestação ou sua própria existência. Já o contrato sob condição117 está subordinado a evento futuro e incerto. A incerteza, nesse caso, recai sobre a ocorrência de evento futuro, seja para produzir efeitos, no caso da condição suspensiva, seja para ser encerrado, no caso da condição resolutiva.

115 De acordo com a lição de Antonio Junqueira de Azevedo, na obra Negócio Jurídico: Existência, Validade

e Eficácia, p. 155, “[...] a condição é cláusula, é elemento particular (ou acidental) do negócio. Por definição,

ela é expressamente aposta no negócio pelas partes e, assim, nunca poderá ser tácita, isto é, implícita na natureza do negócio”.

116 ASSIS, Araken de. Comentários ao Código Civil Brasileiro, p. 416.

117

Paula Greco Bandeira, na obra Contratos Aleatórios no Direito Brasileiro, p. 65, afirma que não há contrato aleatório “gratuito” no Direito brasileiro. Segunda ela, se apenas uma das partes obtém vantagens diante da ocorrência de evento incerto, como nos contratos gratuitos, estar-se-á diante de contrato de doação sob condição. Desse modo, os contratos aleatórios constituem, apenas, subcategoria dos contratos onerosos. No entanto, Paolo Gallo, no primeiro volume do Trattato del contratto, p. 223, lembra que a renda vitalícia pode ser constituída a título gratuito, tal como prevê a regra do art. 803 do Código Civil brasileiro, e conclui que a doutrina moderna admite a gratuidade do contrato aleatório.

Outline

Documentos relacionados