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A POSSIBILIDADE DE REVISÃO DO CONTRATO ALEATÓRIO

VII.4. A cláusula de hardship

É certo que os contratos de duração ou de execução diferida estão sujeitos às alterações das circunstâncias. A economia do contrato pode ser afetada por conta da variação cambial, do valor da moeda, dos valores de mercado, da ocorrência de guerra, de catástrofes e muitas outras circunstâncias imprevisíveis ou até mesmo previstas, cujos efeitos são imprevisíveis. Quando contratam, as partes tentam, o quanto possível, prever e se acautelar dos eventos supervenientes que, por algum motivo, possam frustrar o esforço originalmente projetado pela parte para a consecução da finalidade imaginada. Ao contratar, as partes formulam uma previsão a respeito da maneira como deve ser cumprido o objeto do contrato e, na prática, tendem a desempenhar frequentes atividades de administração de riscos e redução ou eliminação de contingências.

É muito comum que se inclua em contratos de vulto – sobretudo nos contratos de construção de estruturas complexas, cuja execução é de longa duração e envolve o fabrico, transportes, armazenamento, fornecimento, testes e montagem de inúmeros materiais e equipamentos, como a construção de uma ponte, uma hidrelétrica ou uma máquina de extração de petróleo – as chamadas cláusulas de escala móvel, por meio das quais é permitida a correção monetária, ou seja a atualização do valor do moeda, de modo

a permitir a adequação do pagamento do preço original do contrato ao tempo do efetivo pagamento.

Nas cláusulas de escala móvel, diante da previsão da desvalorização da moeda,439 são previstas fórmulas de atualização que levam em consideração os índices de correção relativos aos bens e serviços que devem integrar o escopo do contrato, de modo a dimensionar com maior precisão a correção monetária que os afeta especificamente.440 Exemplificativamente, se o contrato diz respeito à contratação de uma barragem, é razoável que, da fórmula integrante da cláusula de escala móvel, conste a precificação da variação do preço do concreto na região em que é realizada a obra.

A inclusão de cláusula de escala móvel, por certo, em razão da abrangência relativa à atualização de valores, não exclui a possibilidade de revisão, ou resolução, por onerosidade excessiva superveniente por motivos alheios à correção monetária.441 Na realidade, “mesmo existindo uma cláusula de escala móvel num contrato, pode surgir acontecimento imprevisto, causando um desequilíbrio contratual”.442

Também é comum o estabelecimento de cláusula contratual que prevê a possibilidade de negociação prévia entre as partes para o estabelecimento de acordo, antes do ajuizamento de qualquer ação ou instauração de arbitragem, nos casos de ocorrência de questão conflituosa entre as partes, derivada de atraso ou do estabelecimento de obrigação contratual não prevista originalmente no contrato. Há, ainda, contratos com a previsão de que, no caso de superveniência de questão conflituosa, as partes devem, antes do ajuizamento de ação ou instauração de arbitragem, submeter o conflito a uma comissão formada por pessoas indicadas pelas próprias partes, com a finalidade precípua de resolver a questão. Trata-se, pois, de cláusulas que evidenciam a boa-fé com que as partes devem executar o contrato e resolver os problemas que surgem e impactam na economia do

439 MAIRAN, Maia Jr. Cláusula “rebus sic stantibus”. Revista de Processo, v. 63, p. 196.

440 Nesse mesmo sentido, o entendimento de MATTOS NETO, Antonio José de. A cláusula “rebus sic stantibus” e a cláusula de escala móvel. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 63, p. 103; e também, BORGES, Nelson. A Teoria da Imprevisão e a cláusula de escala móvel de reajustamento.

RT 788, jun. 2001, p. 120.

441 Conforme o entendimento manifestado por Washington de Barros Monteiro e outros, no Curso de Direito Civil, v. 5, p. 107: “Entre nós, os mecanismos de correção monetária afastaram, atualmente, ao menos nesse aspecto, a alegação de onerosidade excessiva”.

442 DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do

contratual. Não obstante o privilégio à boa-fé contida nessas cláusulas, as quais remetem as partes à solução amigável de conflitos, não são raros os casos em que elas são simplesmente desconsideradas, sem consequência alguma, sobretudo diante da urgência na obtenção de provimento judicial que assegure a pretensão dos direitos e interesses da parte.

Diferente da cláusula de escala móvel, que trata da adequação automática do preço, a cláusula de hardship,443 estabelece a necessidade de renegociação no caso da ocorrência de evento superveniente à celebração do contrato que onere qualquer das partes contratantes.

A cláusula de hardship é originária dos contratos internacionais,444 diante da preocupação das partes em equilibrar a economia do contrato de acordo com finalidade entabulada no momento da celebração, de modo a resguardá-las quanto aos prejuízos ocorridos em razão de eventos indesejáveis. O importante é estabelecer quando e como o contrato deve ser reajustado.445

Conforme a lição de Judith Martins Costa, “a cláusula de hardship não tem um efeito automático: ela consiste, essencialmente, em provocar uma renegociação do contrato, sempre que a mudança das circunstâncias ocorrer”.446 De acordo com esse entendimento, a inserção dessa cláusula serve apenas de reforço ao entendimento de que, diante da superveniência que cause desequilíbrio na economia do contrato, é preciso revê-lo. Frustrada a renegociação do contrato afetado por evento superveniente, resta o recurso ao Judiciário ou, se for o caso, à arbitragem.

Contudo, fazer constar do contrato, sobretudo naqueles de cunho comutativo, que as partes têm a obrigação de renegociá-lo no caso da superveniência de evento que desequilibre as obrigações contratuais não apresenta muita relevância, ou eficácia prática, porque, de acordo com a boa-fé objetiva e a noção de lealdade contratual dela derivada, a

443 De acordo com José Félix Chamie, na obra La adaptación del contrato, p. 271, “en general, la cláusula

hardship puede definirse como aquella según la cual las partes se reservan la posibilidad de demandar una

renegociación del contrato si sobreviene un cambio en las circunstancias iniciales bajo las cuales elas se obligaron, y que modifica a su vez el equilibrio económico de la operación hasta el punto de imponer a una de ellas un rigor injusto”.

444 GABRIELLI, Enrico. Trattato di Diritto Privato. V. XIII. L‟eccessiva onerosità sopravvenuta, p. 6.

445

PUELINCKX, A. H. Frustration, Hardship, Force Majeure, Imprévision, Wegfall der Geschäftsgrundlage, Unmöglichkeit, changed Circunstances. Journal of International Arbitration, v. 3, n. 2, p. 53.

superveniência de um evento que altere a economia original do contrato impõe às partes o dever de renegociação. A sugestão da possibilidade de renegociação do contrato tem cunho psicológico e “atenua a insegurança que sua falta pode trazer às partes”.447

De outro modo, a cláusula que prevê a renegociação obrigatória no caso de alteração das circunstâncias econômicas assume relevância no contrato aleatório, justamente porque, por ser este um contrato de risco, pode facilitar a compreensão de que é possível a revisão do contrato aleatório caso ultrapassada a sua álea normal ou, dependendo da sua abrangência, estabelecer um limite para a revisão do contrato em virtude da modificação das circunstâncias.

De acordo com a autonomia privada, nada impede que as partes estabeleçam no contrato a sistemática a ser utilizada caso o ônus da prestação a cargo da parte sofra alteração significativa em razão de evento extraordinário e imprevisível. Portanto, a cláusula de hardship pode expressar uma fórmula geral448 de negociação em razão da superveniência de um evento que desequilibre a economia original do contrato, como pode ser restritiva e fazer referência ao ajuste do contrato em razão da superveniência de novos tributos ou leis ambientais ou, ainda, estabelecer os mecanismos de revisão do contrato diante de evento superveniente, como a recomposição de preços.

A vantagem da cláusula que dispõe sobre a revisão no caso da superveniência de circunstância ensejadora de onerosidade excessiva, além de proporcionar segurança aos envolvidos, proporciona a possiblidade de as partes estabelecerem os procedimentos adequados à satisfação de seus próprios interesses, com a indicação de prazos, custos e meios que devem ser utilizados na revisão do contrato, inclusive com a previsão de que as prestações contratuais não precisam ser suspensas enquanto é resolvida a readequação do contrato.

Portanto, por meio da cláusula de hardship, é possível prever a possibilidade de negociação das partes diante da superveniência de um evento extraordinário e imprevisível ou, ainda, prever o procedimento de revisão ou reajuste do contrato. Assim, nos contratos

447 GARCEZ, José Maria Rossani. Contratos internacionais. Eventos fortuitos ou de força maior e eventos decorrentes da Teoria da Imprevisão (rebus sic stantibus). Cláusulas de adaptação ou hardship. Revista

Forense, v. 366, p. 368.

448

ALTERINI, A. Aníbal. Teoría de la imprevisión y cláusula de. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di diritto dell’integrazione e unificazione del diritto in Europa e in America Latina, n. 13, p. 62.

aleatórios, a previsão da cláusula de hardship pode ser de importância capital, pois, a depender da abrangência nela empregada, mais do que simplesmente remeter as partes à possibilidade de negociação, ela pode vinculá-las à necessidade de revisão do contrato no caso de alteração das circunstâncias.

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