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O pacta sunt servanda e a proteção que merece ser conferida ao cumprimento do contrato

ALEATÓRIO

III.2. O pacta sunt servanda e a proteção que merece ser conferida ao cumprimento do contrato

No contrato, o consenso empregado pelas partes,139 em decorrência da proposta e da consequente aceitação, faz completar o elo que resulta na obrigatoriedade contratual, expressão do pacta sunt servanda, verdadeiro princípio, premissa, segundo o qual o pacto deve ser cumprido ou, ainda, o contrato faz lei entre as partes. É a expressão máxima da segurança, da expectativa de confirmação da álea previsível do contrato.

Nesse sentido, o secular140 entendimento de que os pactos devem ser cumpridos visa garantir a segurança dos negócios, das expectativas pessoais quanto à confirmação de promessas, realizadas no âmbito da autonomia de vontade, que permite às partes liberdade de contratar. O princípio “da vinculatividade do contrato ou, ainda, de sua intangibilidade é uma consequência da liberdade de contratar, ou seja, se o homem é livre para contratar, [...] fica obrigado ao que livremente convencionou”.141

139 De acordo com a lição de Antonio Junqueira de Azevedo, na obra Negócio Jurídico: existência, validade e

eficácia, p. 18, no contrato “não há, como às vezes se diz, duas ou mais declarações de vontade; há, nele mais

de uma vontade e mais de uma manifestação de vontade, mas essas manifestações unificam-se a visão social de uma só declaração, que juridicamente será um só fato jurídico”.

140 Conforme a lição de Paulo Carneiro Maia, na obra Da Cláusula rebus sic stantibus, p. 13, “o princípio da intangibilidade ou da imutabilidade do contrato parece até ter sido erigido em dogma para atravessar os tempos. Tem por si, como fórmula variada do princípio da autonomia da vontade, antiguidade venerável, pois remonta à lei das XII Tábuas”.

141 REIS, Jorge Renato dos. A função social do contrato e sua efetiva vinculatividade às partes contratantes, p. 118.

As pessoas são, assim, livres para contratar ou não.142 Podem celebrar contratos típicos ou atípicos, contratos padronizados ou não. De acordo com o que for lícito e possível, as partes podem estabelecer o que bem lhes aprouver no intuito de regular as relações com as quais se comprometem.

A estabilidade social e econômica depende, assim, do cumprimento das promessas individuais para que não se quebre a cadeia da circulação das riquezas, que serve à satisfação das necessidades, das mais básicas às mais complexas. A obrigação contratual, “como vinculum iuris, implica una relación de cooperación entre las partes, que está basada en la buena fe y la equidad, e impone, en razón del vínculo, una necessitas, un oportere recíproco”.143

Não se olvide, aliás, quanto à efetividade do cumprimento dos contratos, segundo o qual quem empenha uma promessa, em contrapartida, espera o cumprimento da promessa alheia, com quem contratou. Daí, pois, a necessidade de sanção, entendida como instrumento de garantia ao cumprimento do contrato, seja ela estabelecida no contrato, como multa ou penalidade, por exemplo, ou ainda em virtude de uma sanção judicial, como a astreinte.

Com efeito, a noção de soberania do contrato pode ser sintetizada segundo o entendimento de que o contrato faz lei entre as partes “e, em certo sentido, superior a ela, pois que a própria lei não pode atingir”.144

Nesse sentido, o rigor da intangibilidade ou irretratabilidade contratual proporciona o entendimento de que o contrato firmado entre as partes é imutável e deve ser cumprido independentemente da ocorrência superveniente de circunstância que dificulte o cumprimento da prestação. E se os contratantes avaliaram as circunstâncias nas quais contrataram, presume-se, a princípio, o equilíbrio das prestações se um contrato é celebrado e está livre de vícios, cláusulas abusivas, ilícitas, nulas, etc.

Note-se, a propósito, que o entendimento geral de que os contratos devem ser cumpridos é tão arraigado no senso comum que sequer há uma regra específica no Código

142 Conforme Araken de Assis, na obra Comentários ao Código Civil Brasileiro, v. V, p. 73, a autonomia privada subdivide-se em dois sentidos: na liberdade de contratar, com a celebração ou não do contrato, e na liberdade de escolha do conteúdo do contrato.

143

CHAMIE, José Félix. Equilibrio contractual y cooperación entre las partes: el deber de revisión del contrato. Revista de Derecho Privado, n. 14, p. 114.

Civil brasileiro que se limite a enunciar o princípio do pacta sunt servanda,145 o que, de outro modo, restou estampado no Código Civil francês, no art. 1.134, segundo o qual “les convention légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites” (o que, em tradução livre, significa que “as convenções legalmente formadas fazem lei para as partes que dela participam”). Ou seja, os contraentes devem obedecer ao contrato tal como devem obedecer à lei.

Conforme a lição de José Félix Chamie, a propósito da citada norma do art. 1.134 do Código Civil francês, que serviu de baliza para inúmeros outros sistemas jurídicos que tomaram como base o Código Napoleônico, em tradução livre: “A norma é seguramente o reflexo das condições políticas, econômicas e sociais de seu tempo, isto é, a prevalência da ideologia individualista e de uma política legislativa favorável ao princípio pacta sunt servanda...”.146 Nesse passo, o Código Civil francês, fruto dos ideais liberais oriundos da Revolução Francesa, foi silente a respeito da cláusula rebus sic stantibus e sobrevalorizou o direito individual, privilegiando o absolutismo da autonomia pessoal.

Entre os séculos XVIII e XIX, muito provavelmente em decorrência do movimento iluminista e pós-revolucionário francês, bem como da revolução industrial inglesa, que desumanizou a sociedade em privilégio do capital, houve certa resistência à aplicação da cláusula rebus sic stantibus. Naquele período, mais valiam os interesses individuais dos contratantes do que os aspectos sociais. O pacta sunt servanda “passa a ser a chave da validade e eficácia dos contratos. Os negócios, tal como as leis ou os tratados, produzem efeitos porque foram queridos. Não interessa o conteúdo dos contratos”. 147

De acordo com Paolo Gallo,148 no século XX, no entanto, marcado por duas guerras mundiais, foi renovado o interesse pela questão relativa à superveniência contratual e instrumentos lançados em prol da gestão do risco contratual. “A construção jurídica tradicional do contrato, que era de irrecusável individualismo, foi sendo, entretanto,

145

Segundo Araken de Assis, nos Comentários ao Código Civil Brasileiro, v. 5, p. 64, “Os intuitivos fundamentos do princípio da obrigatoriedade se ostentam universais e, por isso, o princípio se impõe mesmo na ausência de uma regra formal”.

146 CHAMIE, José Félix. La adaptación del contrato, p. 103.

147

ASCENSÃO, J. Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no Novo Código Civil. RTDC, v. 25, jan.-mar. 2006, p. 95.

abalada pelas metamorfoses econômicas e sociais.”149 A resolução do contrato por superveniente onerosidade excessiva configura, pois, exceção ao pacta sunt servanda, que continua plenamente em voga, diante da necessidade de cumprimento dos pactos e atingimento da necessária função social do contrato, que é fundamental para a manutenção da segurança nas relações jurídicas e na circulação de riquezas, tão necessária ao progresso e à estabilidade econômica.

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