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A Ética como ciência demonstrável ou o conhecimento natural da moral

4. O contra-senso da Ética lockeana

4.1. A Ética como ciência demonstrável ou o conhecimento natural da moral

Em dezembro de 1689, quando Locke publicou, aos 57 anos, o Ensaio sobre o

entendimento humano, ele declarou de maneira irrevogável a sua vontade de libertar os

homens do desejo de um conhecimento universal, da perplexidade e da confusão sobre questões “para as quais nosso entendimento não está apropriado, e dos quais não podemos conceber em nossa mente quaisquer percepções claras e distintas, ou a respeito do que não temos quaisquer noções”106. No entanto, tal limitação do conhecimento humano, muito pequeno comparado à grandeza de tudo que existe107, não interfere naquele que, segundo Locke, é o grande dever estabelecido por Deus aos homens. Ou seja, não interfere na obrigação humana de conhecer seus deveres morais e de conduzir-se de maneira apropriada à vontade de Deus.

No Ensaio, Locke declara, de forma até otimista, que nosso entendimento é semelhante à sonda de um navio cujo comprimento revela, mesmo não podendo ser possível calcular toda a profundidade do oceano, o limite navegável das águas. Essa possibilidade de conhecer os limites do necessário, para Locke, não concerne às ciências naturais, mas à moral; por conseguinte,

106 EHU, I, Introduction, § 4. “(…) out of an affectation of an universal knowledge, to raise questions, and

perplex ourselves and others with disputes about things to which our understandings are not suited, and of which we cannot frame in our minds any clear or distinct perceptions, or whereof (as it has perhaps too often happened) we have not any notions at all”.

é bastante útil ao marinheiro saber qual o comprimento da sua sonda, muito embora ela não lhe sirva para penetrar nas profundezas do oceano. Ele bem sabe que ela é longa o suficiente para pesquisar as partes mais baixas em tais lugares que são necessários para direcionar sua viagem, e advertir-lhe de evitar navegar contra baixios que podem o arruinar. O nosso interesse, neste

mundo, não é conhecer todas as coisas, mas unicamente aquelas que interessam à nossa conduta. Se pudermos descobrir aquelas medidas pelas

quais uma criatura racional, posta naquele estado que o homem está nesse mundo, possa e deva governar as opiniões e ações delas dependentes, não haverá necessidade de preocupar-se que algumas outras coisas escapam ao

nosso conhecimento108.

Essas medidas concernentes ao alcance de nosso entendimento são as leis de natureza, as quais Locke defendeu na Epistola ao leitor da segunda edição do Ensaio que, em resposta às objeções que James Lowde tinha formulado contra o Ensaio em seu Discouse concerning the

Nature of Man de 1694, “Deus, pela luz que ele tem dado aos homens, lhe tem indicado ‘os

deveres sobre os quais eles são obrigados a regular sua vida”109. Conforme essa mesma Adição à segunda edição do Ensaio, citada por Goyard-Fabre, Locke ainda nos diz que o quadro de regras fundamentais e medidas das ações morais seguidas no mundo poderiam ser classificadas como “(...) ações de virtude ou vícios conforme o apreço e reputação de que gozavam, nas várias sociedades, certas classes de atos humanos”110. Ao que parece, sobre a idéia de um quadro de leis naturais, Locke acreditava poder classificar de maneira universal os vícios e virtudes existentes entre as sociedades no mundo. Por isso, por mais que as leis de natureza não fossem inatas, elas estavam à altura da capacidade humana de compreensão, e, mais profundamente, a relação entre as regras universais da natureza, mais os costumes dos povos e as leis positivas, poderiam compor um código moral completo.

Essa é a visão de Locke no Ensaio ao defender veemente a possibilidade demonstrativa da ética, para tanto, bastava anexar às leis as idéias de dor e sofrimento, prazer e felicidade, que geram nos homens uma certa inquietação (uneasiness) determinante da ação. Nesse sentido, “isto é o que sucessivamente determina a vontade e nos leva às ações que realizamos. A esta inquietação poderemos chamar desejo, que é uma inquietação da mente

108 EHU, I, Introduction, § 6. “It is of great use to the sailor, to know the length of his line, though he cannot

with it fathom all the depths of the ocean. It is well he knows, that it is long enough to reach the bottom, at such places as are necessary to direct his voyage, and caution him against running upon shoals that may ruin him. Our business here is not to know all things, but those which concern our conduct. If we can find out those measures, whereby a rational creature, put in that state in which man is in this world, may, and ought to govern his opinions, and actions depending thereon, we need not to be troubled that some other things escape our knowledge”. (Grifos nosso).

109 GOYARD-FABRE, Simone. John Locke et la raison raisonnable, p. 95. 110 EHU, (ed. Portuguesa), p. 14.

devida à falta de um bem ausente111”. A correta liberdade para Locke, amplamente desenvolvida no capítulo XXI do Livro II do Ensaio, estaria em determinar a vontade à escolha dos desejos que levem à verdadeira felicidade; por esse motivo, Locke concede total responsabilidade à pessoa moral para bem agir: “todo homem é posto sob uma necessidade, pela sua constituição como ser inteligente, para ser determinado na vontade pelo próprio pensamento e juízo acerca do que melhor fazer”112. Para o melhor fazer, ou o melhor agir, é necessário apenas seguir os ditames da razão e avaliar o que seria de fato um bem e um mal presente, visto que é a razão a faculdade capaz de levar os homens ao conhecimento de suas obrigações. Ora, é essa característica estóica113 da moral, da necessidade de agir razoavelmente em todos os assuntos da vida humana, inclusive na escolha de sua religião, que determina os homens a investigar as leis que eles devem seguir, pois consistem na medida, de acordo com seu cumprimento ou desobediência, do bem e do mal moral. Nesse sentido, com o domínio da lei de natureza, que é a lei de Deus conhecida pela razão, quando comparamos todos os outros tipos de leis que regem a conduta humana, como ressalta Wolterstorff, “estamos no domínio não da moralidade, mas da obrigação moral”114. É esse o motivo que leva Locke no Segundo tratado a defender que a lei de natureza não cessa na sociedade civil115, ela continua como o eterno fundamento da lei, e é esse fato que permite a Locke afirmar ser sociável o estado de natureza, em alternativa à visão hobbesiana da guerra de todos contra todos.

Assim, nos Segundo tratado, obra onde Locke descreve seu pensamento definitivo sobre a Política116, os homens descobriam as leis eternas da natureza pela razão, por isso: “nascemos livres, assim como racionais (...)”117. Esta obra reflete um otimismo frente às possibilidades cognitivas da espécie humana em compreender as regras da moralidade. Do mesmo modo, no Ensaio sobre o entendimento, Locke classificou a moral como a ciência, ao contrário da filosofia natural, mais propícia ao entendimento humano, podendo ser demonstrada pela razão a sua extensão; para isso, bastava que os nomes dos modos mistos

111 EHU, II, XXI, § 31. “This is that which successively determines the will, and sets us upon those actions we

perform. This uneasiness we may call, as it is, desire; which is an uneasiness of the mind for want of some absent good”.

112 Ibidem, II, XXI, § 48. “And therefore every man is put under a necessity by his constitution, as an intelligent

being, to be determined in willing by his own thought and judgment what is best for him to do”

113 Cf. POLIN, R. La politique morale de John Locke, pp. 48-60. 114

WOLTERSTORFF, Nicholas. “Locke’s Philosophy of Religion”, p. 181.

115 T2, §135.

116 Conforme Greg Forster, “a religião veio para dominar a vida intelectual de Locke. O único assunto político,

além de seus deveres profissionais, no qual ele continuou com a mão ativa era mais distintamente um assunto político-religioso: a tolerância”. FORSTER, Greg. Op. Cit., p. 128.

que designam idéias de relação moral fossem depurados dos equívocos da nomeação, tornando inteligível o sentido da significação118. Dessa maneira, Locke acreditava que seria possível a demonstração da Ética ao modo das matemáticas, pois,

a idéia de um Ser supremo, infinito no poder, na bondade e na sabedoria, que nos fez e de quem dependemos, bem como a idéia de nós mesmos, como criaturas inteligentes e racionais, é tão clara que, se devidamente consideradas e seguidas, nos forneceriam, eu suponho, tais fundamentos dos nossos deveres e regras de ação, que poderíamos estabelecer a moral entre

as ciências capazes de demonstração119.

Esta é, sem sombra de dúvidas, uma das teses que Locke defendeu com mais vontade e a mencionou diversas vezes no Ensaio, inclusive para defender que a moral tem um estatuto epistemológico superior à filosofia natural, visto tratar com palavras cuja significação dizem respeito a essências reais passíveis de serem nomeadas de maneiras clara, e não com idéias de substâncias que nomeiam existências às quais a estreiteza de nosso entendimento não abarca, e, portanto, sobre a quais não possuímos um conhecimento real120.

Desse modo, Locke interdita a possibilidade de uma ciência da substância física121, do mesmo modo que da substância espiritual, pois tanto uma quanto a outra fazem parte da filosofia natural122. A existência do cogito e da res-extensa dos cartesianos era impossível de ser conhecida e demonstrada à maneira dos geômetras, pois apenas alcançamos conhecimento ínfimo das espécies dos corpos e de suas propriedades, nossas faculdades não estão preparas para penetrar na estrutura interna e nas essências reais dos corpos, por isso, Locke concebe seriamente que “a filosofia natural não é susceptível de se transformar em ciência”123. O que está, segundo Locke, ao alcance das faculdades humanas é, na verdade, descobrir a existência de um Deus, a certeza de nossa própria existência, e desta relação entre criatura e Criador

118 EHU, III, XI, §§ 17 e 16.

119 Ibidem, IV, III, § 18. “The idea of a Supreme Being, infinite in power, goodness; and wisdom, whose

workmanship we are, and on whom we depend; and the idea of ourselves, as understanding rational beings, being such as are clear in us, would, I suppose, if duly considered and pursued, afford such foundations of our duty and rules of action, as might place morality amongst the sciences capable of demonstration”. (Grifos nosso).

120 Cf. Ibidem, IV, IV, §12.

121 Conforme John Dunn, “na opinião de Locke, a pesquisa científica não produz conhecimento; e, portanto, não

merece o nome de ciência. Mas, com certeza, capacita os homens a melhorar sua compreensão da natureza (...). A característica mais notável, talvez, dessa compreensão da ciência natural consistiu na sua explicação dos limites do conhecimento natural dos homens”. DUNN, John. Locke, pp. 104-05.

122

Cf. EHU, XX, XXI, § 2 e AP, §§ 190-94.

123 EHU, IV, XII, § 10. “The weakness of our faculties in this state of mediocrity which we are in this world can

descobrir de maneira clara e completa o nosso dever. Devemos direcionar nossas faculdades para um objeto que lhe esteja à altura de ser alcançado, esse objeto é a moral que é “a mais perfeita e importante das ciências, a que mais interessa a humanidade e a que melhor se pode conhecer (...)”124. A epistemologia de Locke, portanto, visa estabelecer fundamentos demonstrativos à moral, e a definição de homem dada por Locke é, nesse sentido, não as dos naturalistas125, mas do homem moral capaz de conhecer e viver sobre leis, capaz de viver de maneira moral e ser, como Locke defende no Segundo tratado, naturalmente social.

Porém, estas idéias defendidas por Locke em 1689-90 ficaram inconclusas, não passaram de hipóteses, de especulações, às quais Locke não se esforçou em seguir, ou mesmo não conseguiu levar a cabo este projeto126. De acordo com Dunn, “o Ensaio é interrompido no momento em que Locke descobre sua incapacidade de apresentar a moral como um sistema de virtudes, obrigatórias, inteligíveis e universais”127. A essa posição de Dunn, podemos também relacionar as premissas otimistas do Segundo tratado sobre as possibilidades dos homens conhecerem a lei de natureza. Esse fato torna-se evidente com as conseqüências sobre a moral defendidas por Locke em 1695, ao publicar a Reasonableness of christianity.