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3. Os limites da tolerância

3.3. O problema do ateísmo: a fundamentação da moral

3.3.2. A prova da existência de Deus

De acordo com Locke, mesmo não existindo idéias inatas na mente dos homens, temos todas as condições cognoscitivas de conhecer de maneira evidente a existência de Deus. Para tratar desse assunto, Locke redigiu o capítulo X do livro IV do Ensaio sobre o

entendimento: “Do Nosso Conhecimento da Existência de Deus”, onde pretende fazer uma

exposição sistemática da demonstração da existência de uma Divindade. Para Locke, podemos conhecer e ter certeza de sua existência através da sensação, da percepção e da razão. Estes seriam os meios pelos quais fomos providos “para descobrir e O conhecer, tal como é necessário à finalidade de nossa existência e de grande interesse para nossa felicidade”88.

Para chegarmos ao conhecimento da existência de Deus, o ponto de partida, segundo Locke, deve ser através das deduções que podemos retirar do conhecimento intuitivo (intuitive kmowledge) que temos de nossa própria existência, da qual não se pode pôr em dúvida. Sobre o fundamento desse conhecimento intuitivo, no capítulo IX do Ensaio, Locke argumenta o modo como podemos ter certeza da nossa própria existência:

penso, raciocínio, sinto prazer e dor; pode qualquer destas coisas ser mais evidente para mim do que a minha própria existência? Se duvido (...), se sei que sinto dor, é evidente que tenho uma percepção tão certa da minha existência como da existência da dor que sinto (...). Então, a experiência nos convence de que temos um conhecimento intuitivo da nossa própria

existência e uma percepção interior, infalível de que existimos89. Em cada

88 EHU, IV, X, § 1. “Nor can we justly complain of our ignorance in this great point, since he has so plentifully

provided us with the means to discover and know him, so far as is necessary to the end of our being, and the great concernment of our happiness”.

89 Nota-se nessa passagem a semelhança com a prova cartesiana da existência do cogito. No entanto, há apenas

uma semelhança, pois a prova lockeana é diversa à cartesiana por ser postulada a partir da experience dos sentidos e da reflexão. Nesse sentido, tanto as idéias oriundas dos sentidos, quanto as da reflexão partem da experiência. Esse fato demonstra um distanciamento profundo em relação a Descartes. De acordo com M. AYERS, “a proposta de Locke, aqui, está em direta oposição a um famoso argumento de Descartes de que as diversas sensações causadas por um pedaço de cera derretida requerem interpretação pelo intelecto, empregando a idéia inata e não sensorial de matéria, antes que possam constituir a experiência de um material substancial e permanecer sofrendo mudanças. Outra importante diferença em relação a Descartes está na concepção de Locke de nossa consciência das ‘operações de nossas mentes’, que ele chama ‘reflexão’. De fato para os cartesianos, é a autoconsciência reflexiva que nos permite obter um acesso explicito a idéias intelectuais inatas como as de substância, duração, pensamento e mesmo (pela reflexão sobre nossas imperfeições) à idéia positiva de perfeição, ou Deus. Para Locke, em contraste, ‘reflexão’ é simplesmente uma parte da experiência”. AYERS, Michael. Locke: idéias e coisas. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 14.

ato de sensação, de raciocínio, ou de pensamento, estamos conscientes do

nosso próprio ser, e sobre isto não ficamos aquém do mais alto grau90.

Dessa forma, estando a certeza da existência humana garantida pelo nosso conhecimento intuitivo, Locke expõe o velho argumento cosmológico da existência de Deus à sua maneira. Assim, como “sabemos que há um ser real e que o nada não pode produzir um ser real, é uma demonstração evidente que desde a eternidade houve alguma coisa”91; é essa existência eterna que deve ser o princípio de todas as coisas que existem finitamente. Além disso, esse Ser deve ser o mais sapiente, pois em nós mesmos encontramos percepção e conhecimento, como é possível experienciar pela constituição da nossa própria mente, então Locke pensa poder demonstrar infalivelmente a existência do “eterno, mais poderoso, e mais inteligente Ser”92.

Locke, por sua vez, apresenta essa prova como uma alternativa mais plausível ao argumento ontológico levado a cabo por Descartes na V meditação. Segundo Descartes, a existência de Deus é tão certa quanto ao fato do triângulo ser uma figura de três ângulos, pois se Deus é um ser perfeitíssimo é necessário que exista, já que a não existência lhe seria uma imperfeição. Ou seja, a existência é um atributo da perfeição que reconhecemos de forma clara e distinta; seria contraditório ter a idéia de um ser infinito e sumamente perfeito sem existência, lhe faltaria um atributo da perfeição. Por essa razão,

se do simples fato de que eu posso tirar de meu pensamento a idéia de alguma coisa segue-se que tudo quanto reconheço pertencer clara e distintamente a esta coisa, pertence-lhe de fato, não posso tirar disto um argumento e uma prova demonstrativa de Deus? É certo que não encontro

menos em mim sua idéia, isto é, a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia de qualquer figura ou qualquer número que seja. E não

conheço menos claramente que uma existência atual e eterna pertence à sua natureza do que conheço que tudo quanto posso demonstrar de qualquer figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à natureza dessa

figura ou desse número 93

90 EHU, IV, IX, §3. “I think, I reason, I feel pleasure and pain: can any of these be more evident to me than my

own existence? If I doubt (…), if I know I feel pain, it is evident I have as certain perception of my own existence, as of the existence of the pain I feel (…). Experience then convinces us that we have an intuitive knowledge of our own existence, and an internal infallible perception that we are. In every act of sensation, reasoning, or thinking, we are conscious to ourselves of our own being; and, in this matter, come not short of the highest degree of certainty”.

91 Ibidem, IV, X, § 3. “If therefore we know there is some real being, and that nonentity cannot produce any real

being, it is an evident demonstration, that from eternity there has been something”.

92 Ibidem, IV, X, § 6. “That there is an eternal, most powerful, and most knowing being”. 93 DESCARTES. Meditações Metafísicas, p. 173.

Para Locke, essa concepção cartesiana da idéia de um ser mais perfeito que um homem possa

ter em sua mente não prova a existência de Deus94. Devido à variedade de temperamentos existente entre os homens pode-se dizer que o argumento cartesiano é uma má via para silenciar os ateus, porque força a demonstração de um ponto tão importante sobre essa única fundação: “assegurando que os homens têm essa idéia de Deus em suas mentes (porque é evidente que alguns homens não têm nenhuma idéia de Deus, e outros pior que nenhuma, e a maior parte têm idéias muito diferentes) pela única prova da Divindade”95. Para Locke, é através da experiência de nossa existência e os aspectos sensíveis do universo que podemos chegar de maneira clara e convincente ao entendimento da existência de Deus.

94 Apesar de Locke não declarar expressamente a quem ele se endereça nessa crítica, podemos concluir pelo

argumento ao qual ele se opõe que o seu alvo era o argumento ontológico levado a cabo por Descartes no V Livro das Meditações. Sobre esse aspecto, Leibniz, em seus Novos ensaios, também já havia ressaltado que Locke estava a falar de Descartes ao comentar essa seção do Ensaio. Leibniz advoga que “embora eu seja pelas idéias inatas, e particularmente pela idéia inata da existência de Deus, não acredito que as demonstrações dos Cartesianos, hauridas da idéia de Deus, sejam perfeitas”. LEIBNIZ. Novos ensaios sobre o entendimento humano, IV, X, p. 437. Outra questão que gostaríamos de ressaltar sobre essa crítica de Locke, é a razão do filósofo inglês declarar no início da seção que não examinará de maneira pormenorizada até que ponto o argumento da idéia de perfeição na mente humana prova ou não a existência de Deus. De fato, talvez Locke tenha feito essa declaração pensando em anexar em edições posteriores um capítulo exclusivo sobre essa refutação a Descartes. Somos levados a essa posição pelo conhecimento do manuscrito de Locke, datado por Peter King como tendo sido escrito por Locke em 1696 e intitulado: Deus. Descartes’s proof of a God, from the idea of necessary existence, examined. Neste texto, Locke critica duramente a versão cartesiana do argumento ontológico sob a perspectiva de uma suposta querela entre um teísta cartesiano e um ateu materialista. Segundo Locke, “ainda que eu tenha ouvido freqüentemente pessoas de bom senso pôr em questão a opinião de Descartes sobre a existência de Deus, eu tinha suspendido meu julgamento a este propósito até que, recentemente, passei a examinar a questão das provas da existência de Deus; eu tenho verificado que se empregássemos sua prova, a matéria desprovida de sensibilidade poderia bem ser o ser primeiro e eterno que é a causa de todas as coisas, outro tanto que um espírito imaterial e inteligente”. PK, Vol II, p. 134. Para Locke, a suposta idéia de Deus do teísta cartesiano compreende os seguintes atributos: a imaterialidade, a eternidade, a substancialidade, a inteligência, e o poder de fazer e de produzir todas as coisas, juntando a esses atributos a existência como necessidade. Tal argumento seria insuficiente pelo fato de poder ser usado por um materialista para provar igualmente a existência eterna da substância extensa, custando-lhe somente anexar o atributo da existência. Assim, seria possível provar a existência necessária da matéria através dos atributos que “compreende a substância, a extensão, a solidez, a eternidade e o poder de fazer e produzir todas as coisas; nestas condições, a existência necessária de minha matéria é provada sobre fundamentos tão sólidos quanto daqueles que estabeleceu um Deus imaterial”. Ibidem, p. 135. Basta, segundo Locke, ao materialista proceder do mesmo modo que o cartesiano e juntar às idéias de perfeição e infinitude aquelas de substância, de solidez, de extensão, e deduzir a existência necessária, pois tudo aquilo que é eterno e perfeito deve forçosamente ter a existência encerrada em si mesmo. A importância desse manuscrito é compreendida melhor quando temos em mente o sentido completamente pejorativo que Locke faz sobre os ateus, ou seja, indivíduos desprovidos de responsabilidade moral, que duvidam da existência do legislador universal. Por conseguinte, a crítica de Locke enquadra-se no seu entendimento que Deus é o autor das regras da moralidade, e que o ateísmo, ao desprezar sua existência, comprometeria a observação dessas regras. Por essa razão, a crítica ao argumento cartesiano, que segundo Locke poderia ser usada para demonstrar a existência exclusiva da substância material, o que para Locke seria a mesma coisa que defender uma posição atéia, fora tão importante a um filósofo com as intenções de John Locke.

95 EHU, IV, X, § 7. “But yet, I think, this I may say, that it is an ill way of establishing this truth, and silencing

atheists, to lay the whole stress of so important a point as this upon that sole foundation; and take some men's having that idea of God in their minds (for it is evident some men have none, and some worse than none, and the most very different) for the only proof of a deity”.

Com efeito, ao demonstrar a existência de Deus utilizando o argumento cosmológico aliado ao seu empirismo, Locke passa em seguida a tratar da imaterialidade necessária de Deus. Locke inicia essa demonstração distinguindo a existência de dois tipos de seres, a saber: os puramente materiais, sem sentido e pensamento, e os seres sensíveis com percepção e pensamento tal como somos96. Os primeiros são os não cogitativos e os segundo os cogitativos. Sobre isso, trata-se de saber a qual dessas espécies de seres podemos dizer que é o ser eterno do qual todos nós dependemos. Segundo Locke, “a esse respeito é óbvio deduzir que deve ser necessariamente um ser cogitativo. Porque é tão inconcebível admitir que alguma vez a matéria puramente não cogitativa produza um ser inteligente pensante, como o nada por si produzir matéria”97. Fica evidente, então, que o primeiro ser eterno tem necessariamente que ser cogitativo e, por isso mesmo, imaterial. Eis, então, o porquê do ataque àqueles que concebem única e exclusivamente a existência da matéria, seria o mesmo que negar a existência de Deus, por isso que Locke classifica os materialistas de ateus. Com a negação de Deus, tornar-se-ia impossível, segundo Locke, a existência da razão e das regras designadas por Ele para regular a conduta moral da humanidade. Por sua vez, a conseqüência desse posicionamento de Locke pode ser entendida de maneira diversa, pois tem natureza moral, já que as regras da moralidade são oriundas de Deus, epistemológica, pois os homens descobrem Deus e suas leis pela razão, e política, porque a falta de leis leva os homens a um constante estado de guerra. São estes os argumentos que Locke levanta contra o ateísmo.

Como podemos perceber, essa veemência de excluir os ateus da lei que regulamenta a tolerância religiosa era um aspecto necessário a Locke e à sua permanente vontade de estabelecer os sólidos fundamentos que lhe permitissem construir uma Ética, empresa que sempre esteve em seus nos planos. Em obras importantes como: os Ensaios

sobre a lei de natureza, o Ensaio sobre o entendimento humano, os Dois tratados sobre o governo, A racionalidade do cristianismo, o filósofo inglês aborda possíveis fundamentos da

moral, e a viabilidade de se construir uma verdadeira ciência da moral. Porém, esta mesma empresa à qual Locke faz menção em diversas obras jamais fora concluída. Locke não escreveu uma obra que tratasse definitivamente desse tema, o que existe, na verdade, são contradições entre os argumentos levantados por Locke nas diversas obras que abordou a questão da elaboração de uma Ética. No entanto, a categoria Deus permanece como aspecto

96 EHU, IV, X, § 9. 97

Ibidem, IV, X, § 10. And to that, it is very obvious to reason, that it must necessarily be a being. For it is as impossible to conceive that ever bare incogitative matter should produce a thinking intelligent being, as that nothing should of itself produce matter”.

fundamental dessa empresa que Locke tanto quis realizar, e suas considerações sobre a tolerância, como demonstramos até aqui, possuem essa idéia em mente ao excluir os ateus da tolerância.

***

A partir dos argumentos que temos considerado até aqui sobre a tolerância, podemos hipotetizar que é a tolerância o principal elemento de coerência e sistematização alcançado por Locke. No entanto, R. Polin, em 1960, e G. Forster, em 2005, defenderam uma coerência no pensamento de Locke, e esse elemento unificador era a moral. Discordamos da posição desses dois comentadores, pois, mesmo que admitíssemos que a tolerância faça parte do pensamento moral de Locke, esse mesmo pensamento moral unificado e coerente não foi alcançado. Nesse sentido, passemos então a examinar os aspectos mais importantes do percurso de Locke sobre a fundamentação da moral a partir do Segundo tratado, do Ensaio

sobre o entendimento e da Racionalidade do cristianismo. Ao fim e ao cabo, pretendemos

demonstrar que Locke não conseguiu formular de maneira coerente as premissas de construção de uma Ética, e que, por essa razão, não é na construção de uma ciência da moral que se deve buscar o elemento que unifica o pensamento de Locke, mas sim na tolerância.