• Nenhum resultado encontrado

3. Os limites da tolerância

3.3. O problema do ateísmo: a fundamentação da moral

3.3.1. A exclusão dos ateus da tolerância

Deus possui uma importância singular no pensamento de Locke, pois ocupa o papel de legislador das verdadeiras regras da moral73. A natureza do homem enquanto ser livre e racional, capaz de conviver de forma pacífica com outros de sua espécie, consiste na vontade de Deus em tê-los feitos seres racionais e capazes de lei74. Desse modo, a importância de Deus no pensamento de Locke, diferentemente do papel que desempenhara anteriormente na filosofia cartesiana, é moral75. O Deus de Locke consiste na verdade em um grande legislador, de modo que, negar a existência de Deus seria o mesmo que negar a lei de

70 Cf. EHU, I, IV.

71Essa é a posição basilar que Locke defende no Segundo tratado para justificar a sociabilidade do estado de

natureza. Nesse sentido, o estado de natureza “é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei de natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”. T2, §4.

72 Esse é o ponto de vista de Locke em 1695 quando publicou The Reasonableness of Christianity, e que

provavelmente ele partilhou até o fim de sua vida. A questão proposta por Locke nessa obra é a seguinte: onde podemos encontrar, em todos os sistemas de Ética, todos os deveres da vida humana demonstrados? Sobre isso, o filósofo conclui que “quando bem considerado, este método de ensinar aos homens seus deveres, seria corretamente pensado para poucos, para aqueles que têm muito ócio (leisure), entendimentos aperfeiçoados, e usados para raciocínios abstratos: porém, a instrução do povo seria conduzida melhor pelos princípios e preceitos do evangelho”. RC, § 243.

73Como defende Polin, com razão, “ao longo de toda a sua obra filosófica, Locke invoca Deus e, sem este

recurso constante a Deus, toda a coerência de sua filosofia desabaria — s’effondrerait”. POLIN, R. La politique morale de John Locke, p. 3. Isso porque Deus é a fonte das regras, lei de natureza, que quer seja conhecida pela razão ou pela revelação “são propriamente e verdadeiramente as regras do bem e do mal” Ibidem, p. 55. Ou seja, a fonte da retidão moral.

74 Cf. T2, § 58. 75

Sobre isso, existe um manuscrito de Locke sobre a prova ontológica levada a cabo por Descartes para provar a existência de Deus datado de 1696 (Deus. Descartes’s proof of a God, from the idea of necessary existence, examined) e publicado na coleção de manuscritos de Peter King. Nesse texto, Locke critica a prova ontológica de Descartes para provar a existência de Deus (V Meditação), e argumenta que a mesma poderia ser utilizada por um ateu, algo que, em seu julgamento, em nada ajudaria a estabelecer os fundamentos da moralidade. Nós traduzimos esse manuscrito e o apresentamos no ANEXO-B desta dissertação, presente nas páginas 173-75.

natureza, regra que une a humanidade em um laço moral universal76. A opinião atéia vai precisamente de encontro a este sólido e verdadeiro fundamento da moral; por isso, negar Deus é não acreditar na existência do legislador divino, e, por conseqüência, é retirar toda a força da lei de natureza, considerada por Locke como regra e medida do bem geral da espécie humana. O ateu seria um sujeito não comprometido com as práticas de conduta moral, e, portanto, um indivíduo perigoso à estabilidade da sociedade. Esse é o motivo da exclusão do ateu da tolerância, pois

aqueles que negam a existência não serão tolerados. Promessas, convenções e juramentos, que são os laços da sociedade humana, não são amarras sobre um ateu. A eliminação de Deus, ainda que só em pensamento, dissolve tudo. Além disso, aqueles que por seu ateísmo minam e destroem toda a religião,

não podem ter a pretensão religiosa de desafiar o privilégio da tolerância77.

A exclusão do ateísmo da tolerância está ligada aos fundamentos que Locke ajuizava para a moral, a saber: a existência de Deus e de uma lei que regula a vida dos homens no que diz respeito à moral. Sobre esse aspecto, concordamos com Raymond Polin quando defende que “Locke, em seu desejo de demonstração, não hesita em atribuir à lei uma conseqüência mais considerável ainda: a existência de toda sociedade humana. Contra Hobbes, com efeito, ele faz da lei de natureza a condição de toda relação social e de toda união entre os homens”78. Deus é o autor da lei divina e as fez completamente de acordo com o entendimento humano, pois podemos compreender este quadro de leis, o direito natural, por intermédio da razão. Por isso, Locke, ao relatar a vida dos homens no estado de natureza, declara que os mesmos têm “(...) para governá-los uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consulte que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou

76 De acordo com Locke no Ensaio, “a lei divina, na qual Deus estabeleceu para as ações dos homens (...).

Ninguém é tão estúpido (brutish) ao ponto de negar que Deus forneceu uma regra pela qual os homens devem se governar”. EHU, II, XXVIII, § 8.

77 LT1, p. 47. “Those are not at all to be tolerated who deny the being of God. Promises, covenants, and oaths,

which are the bonds of human society, can have no hold upon an atheist. The taking away of God, though but even in thought, dissolves all. Besides also, those that by their atheism undermine and destroy all religion, can have no pretence of religion whereupon to challenge the privilege of a toleration”.

posses”79. Segundo Simone Goyard-Fabre, a concepção de lei natural em Locke teve como fato determinante a leitura, em 1660-61, de Elementa jurisprudentiae universalis de Pufendorf. Defende a autora que Locke ficou sensível ao fato de que a ciência demonstrativa e a ética elaborada por Pufendorf correspondiam à definição da ação moral como agir voluntário do homem em sociedade, esta lei natural, medida da moral, de acordo com Goyard- Fabre, “Pufendorf reconhecia, como Locke, a expressão da vontade de Deus”80. O estreito vínculo entre moralidade e religião vem com a concepção de lei da natureza, que é a lei divina. Portanto, estando a religião ligada à retidão moral, os que negam a existência de Deus, também, não devem ser, de modo algum, tolerados. Ao ateu, bem como às religiões cuja opinião vai de encontro às regras morais da sociedade81, não deve ser estendido o direito de ser tolerado.

Por esse motivo, Locke, ao aproximar a religião e a moral, distancia-se de Pierre Bayle, outro defensor da tolerância que no século XVII, em seus Pensées sur la comète, sustentou que o ateísmo não levava o indivíduo à corrupção dos costumes, porque a moralidade não provém da religião, mas de seus temperamentos, e de suas paixões82. Diferente de Locke, o autor francês não vê nexo entre ateísmo e imoralidade; já para Locke, desconsiderar que exista um Deus criador das regras pelas quais os homens devem guiar suas vidas é desprezar os laços de virtude entre os homens e perverter os bons costumes. Sobre esse aspecto, o ateísmo, que para Bayle não conduz à imoralidade, será criticado por Locke e mais tarde tal crítica será retomada por Montesquieu83 ao se opor a Bayle justamente pelo fato

79 T2, § 6. “The state of nature has a law of nature to govern it, which obliges every one: And reason, which is

that law, teaches all mankind, who will but consult it, that being all equal and independent, no one ought to harm another in his life, health, liberty, or possessions”.

80 GOYARD-FABRE, Simone. John Locke et la raison raisonnable. Paris, Vrin, 1986, p. 75. 81

Cf. LT1, 45.

82 Segundo Bayle, em seus Pensées diverses, “(...), não hesitarei em dizer minha conjectura a respeito de uma

Sociedade de Ateus, que me parece, no tocante aos costumes e ações civis, seria muito semelhante a uma Sociedade de Pagãos. Na verdade, aí seria preciso leis muito severas e muito bem executadas para a punição dos Criminosos. Mas não é preciso para tudo?”. BAYLE, Pierre. Pensées diverses sur la comète. Édition critique. Paris: Librairie E. Droz, 1939. Tome II, p. 77. De acordo com Santos, “uma república de ateus, por exemplo, não é totalmente descabida, uma vez que, não acreditando na imortalidade da alma, na Providência e na recompensa após a morte, os seus membros confiariam muito mais nas leis que promulgassem, que propiciariam a condição de vida socialmente digna”. SANTOS, Antônio Carlos dos. “Pierre Bayle: ateísmo e tolerância”. In: Variações filosóficas: entre a ética e a política. São Cristóvão: UFS, 2004, p. 49.

83 De acordo com Santos, Montesquieu se aproxima de Locke, pois, “para Montesquieu ser adepto de uma

religião, e, portanto, seguidor de uma moral, de uma ética ou de alguns princípios, constitui um mal menor que não ter nenhuma, sendo o ateísmo o mal maior”. SANTOS, Antônio. Política negada: poder e corrupção em Montesquieu. Aracaju: UFS, 2002, p. 179.

“deste pensar uma sociedade atéia”84, bem como por Rousseau que em seu Contrato social estabeleceu a crença em Deus como um elemento importante da profissão de fé do cidadão85.

Sobre a questão de tolerância ao ateísmo, Locke ainda teve de se defender contra Proast que acusava sua idéia de tolerância, pela razão de valorizar a opinião individual, de conduzir as pessoas ao ateísmo, ou ao ceticismo religioso. Contra esse ataque de Proast, Locke defende-se, em terceira pessoa, que “para a tolerância às maneiras corruptas e os deboches da vida, nem nosso autor nem eu o desejamos, além de dizer que é propriamente o dever do magistrado reprimi-lo e suprimi-lo por punições”86. Ateísmo não é religião, e a tolerância defendida por Locke diz respeito apenas às religiões, por isso, é necessário deixar as igrejas e seus membros livres para cultuar Deus do modo que sua consciência determina, porém a opinião atéia deve ser condenada.

Outra séria restrição da tolerância ao ateísmo está relacionada com um julgamento errôneo sobre a existência de Deus. Isso porque, segundo Locke, Deus consiste no único elemento do culto religioso que pode ser demonstrado a partir de provas racionais de sua existência, como o ser mais perfeito e criador de todas as coisas que existem. Assim, aqueles que negam a existência de Deus procedem por considerações contrárias à razão, e estabelecem como verdade princípios que nada têm de plausíveis e racionais, assemelhando- se às pessoas daquelas nações bárbaras e incultas que não possuem nenhuma idéia de Deus. Pois, como Locke declara no Ensaio, “as marcas visíveis da sabedoria e poder extraordinário são tão patentes em todas as obras da criação que qualquer criatura racional, que as considere seriamente, não pode deixar de descobrir a Divindade”87. Com efeito, foi para excluir o mal da crença na não-existência de Deus que Locke, no quarto Livro do Ensaio, tratou de demonstrar como é possível conhecer de maneira clara e distinta a existência de Deus. Sobre isso, faremos uma investigação dos principais argumentos dessa demonstração.

84 SANTOS, Antônio Carlos dos. Op. Cit., p. 179.

85 Os elementos desses dogmas civis, aos quais a obediência é um dever, de acordo com Rousseau, são: “a

existência da divindade poderosa, inteligente, benfazeja, previdente e provisora; a vida futura; a felicidade dos justos; o castigo dos maus; a santidade do contrato social e das leis”. Como dogma negativo, apenas a intolerância, cujo efeito é danoso à vida civil. Cf. ROUSSEAU. Do contrato social. Trad. Lourdes S. Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1987, IV, VIII, p. 144.

86 LT3, p. 416. “And for the toleration of corrupt manners, and the debaucheries of life, neither our author nor I

do plead for it; but say it is properly the magistrate's business by punishments to restrain and suppress them”.

87

EHU, I, IV, § 9. “For the visible marks of extraordinary wisdom and power appear so plainly in all the works of the creation, that a rational creature, who will but seriously reflect on them, cannot miss the discovery of a Deity”.