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2. Uma tolerância ampla a todas as religiões

2.2. A tolerância aos idólatras

Locke argumenta na Letter concerning a toleration, ao discutir o poder do magistrado sobre os assuntos indiferentes da religião, que em todos os assuntos da vida cotidiana as pessoas são livres; sobre isso o filósofo inglês cita como exemplo o culto de sociedades idólatras. De acordo com Locke, o fato de alguns alegarem que a idolatria é um pecado não torna a idolatria suscetível de ser punida pelas leis civis, visto que estas têm apenas medida em relação às punições no mundo temporal, não abarca a verdade ou não de uma religião qualquer.

Assim, aqueles cultos e modos de adoração que fazem sacrifícios de animais, por mais que esta prática seja condenada pelo cristianismo, Locke garante que “se qualquer pessoa congregada quiser sacrificar seus bezerros, eu nego que isto deveria ser proibido por lei”. Locke cita o exemplo de um certo Meliboeus praticante de uma religião idólatra e dono de bezerros; este homem pode legalmente matar e queimar qualquer bezerro “(...) a seu critério, por não ter ferido ninguém nem prejudicado os bens de outros”. Nesse caso, desde que o motivo de sua crença pessoal não interfira na vida comum da sociedade civil, nada contra ele deve ser feito, pois “se ele está agradando a Deus com isso ou não, cabe a ele considerar”32. A idolatria não pode ser considerada um pecado pelo magistrado porque pecado

32 LT1, p. 34. Esta nota se refere à sequência das duas citações não numeradas: “But, indeed, if any people

é um assunto religioso e não é a função do magistrado definir aquilo que seja ou não correto em termo de ortodoxia religiosa; sobre esse assunto o magistrado não possui nenhum acesso especial33.

Talvez, a defesa que Locke faz da tolerância à idolatria possa parecer surpreendente a um autor que em 1695 escrevia uma obra defendendo a racionalidade da religião cristã. Porém, esta idéia de tolerância a religiões como a dos idólatras está efetivamente ligada à sua visão de poder político que vem sendo construída desde seus contatos inicias, em 1666, com os liberais whigs, sob a liderança de Shaftesbury; algo que segundo John Dunn marcou profundamente sua vida intelectual34. Essa orientação também pode ser confirmada pelas considerações abordadas na Constituição da Carolina sobre a tolerância aos nativos daquele território. No parágrafo 97 destas Constituições há o seguinte esclarecimento: “mas desde que os nativos desse lugar, que sejam parte de nossa colonização, são totalmente estranhos ao cristianismo, cuja idolatria, ignorância ou engano não nos dá o direito de expulsá-los, ou de fazer-lhes mal”35. Desde que a idolatria não cause nenhum dano à paz civil não há motivo para que ela seja perseguida pelo magistrado civil. A liberdade religiosa estará garantida, pois essas práticas pagãs não constituem em crimes civis.

O tema da idolatria ainda recebe outras considerações nos escritos sobre a tolerância de Locke, e em nenhuma passagem a idolatria é compreendida como um mal ao Estado que deva ser extirpado. No entanto, o princípio basilar em que Locke fundamenta a tolerância aos idólatras é sobre o ponto de vista da legalidade, ou seja, aquilo que é legal na comunidade não pode ser proibido pelo magistrado na adoração religiosa em geral, da mesma forma que o que é proibido na sociedade civil não deve ser permitido na sociedade religiosa36. Porém, se ao magistrado for concedido o poder de interferir em assuntos de religião, se ele pode banir da sociedade civil uma religião idólatra, “pela mesma razão, outro magistrado, em algum país vizinho pode oprimir a religião reformada e, na Índia, os cristãos”37. Mesmo que as supostas religiões ortodoxas argumentem que a idolatria seja um pecado, Locke garante

prohibited by a law. Meliboeus, whose calf it is, may lawfully kill his calf at home, and burn any part of it that he thinks fit: for no injury is thereby done to any one, no prejudice to another man's goods. And for the same reason he may kill his calf also in a religious meeting. Whether the doing so be well- pleasing to God or no, it is their part to consider that do it”.

33 Cf. PERRY, john. "Locke's Accidental Church: The Letter Concerning Toleration and the Church's Witness to

the State", p. 272.

34 Cf. DUNN, John. Locke, p. 18.

35 FCC, § 97. “But since the natives of that place, who will be concerned in our plantation, are utterly strangers

to Christianity, whose idolatry, ignorance, or mistake gives us no right to expel, or use them ill”.

36 LT1, p. 34. 37 Ibidem, p. 35.

que esse fato não quer dizer que deva ser punida pelo magistrado. A razão é “porque não são prejudiciais aos direitos de outras pessoas, nem quebram a paz pública das sociedades”38.

Por sua vez, aqueles que defendem o banimento dos idólatras por estar previsto na lei de Moisés, no Antigo testamento, Locke defende que tal lei valia apenas para o povo de Israel e, portanto, não se pode reclamar a intolerância aos idólatras pela lei de Moisés, pois estas leis não são obrigatórias à Cristandade. Segundo Locke, nenhuma lei pode obrigar a qualquer pessoa, a não ser para quem ela foi dada, dessa forma, o “Ouve, Ó Israel” 39 restringe suficientemente a obrigação da lei de Moisés àquele povo. A lei mosaica dizia respeito apenas àquela teocracia, pois, “não havia lá ou poderia haver, qualquer diferença entre a comunidade e a igreja. As leis lá estabelecidas sobre a adoração a uma deidade invisível, eram as leis civis daquele povo e uma parte do seu governo civil, em que o próprio Deus é o legislador”40. Em Israel, as leis religiosas faziam parte das leis civis, mas, no mundo cristão, regulado moralmente pelo Novo testamento, não há nada desse tipo, visto que, o Cristo

ensinou aos homens como, pela fé e boas obras, poderiam alcançar a vida eterna. Mas, não instituiu comunidades; Ele não prescreveu qualquer forma nova e peculiar de governo, nem colocou a espada nas mãos dos magistrados, com comissão de usá-la para forçar os homens a abandonar sua

religião antiga e receber a dele41.

O tema da idolatria volta a ser tratado por Locke na Terceira carta sobre a

tolerância. Ali, o objetivo de Locke está voltado para refutar Jonas Proast que defendia a

exclusão da idolatria, do paganismo, do islamismo e do judaísmo. A tese de Proast é que se for permitido o livre curso de opiniões desse tipo haveria o perigo dos homens mudarem para essas religiões e deixarem de lado a comunhão da Igreja oficial42. Contra esse argumento de Proast, Locke defende que na verdade não foi a idolatria, mas sim a ambição, a vaidade ou a

38 LT1, p. 36-37. “The reason is, because they are not prejudicial to other men’s rights, nor do they break the

public peace of societies”.

39 Ibidem, p. 37. Ver essa passagem em Jô XXXI, 26-28 (TIII, § 217).

40 Id. Ibid., p. 37. “Nor was there, or could there be, any difference between that commonwealth and the church.

The laws established there concerning the worship of one invisible Deity, were the civil laws of that people, and a part of their political government, in which God himself was the legislator”. Sobre esse aspecto, Locke assegura que Deus sendo o rei dos Judeus não poderia permitir a adoração de qualquer outra deidade em sua nação, porque seria propriamente um ato de alta traição contra Si, na terra de Canaã, que era seu reino; tal revolta manifesta não poderia conviver com Seu domínio, que era perfeitamente político, naquele país. Cf. Ibidem, p. 38.

41 Id. Ibid., p. 38. “He, indeed, hath taught men how, by faith and good works, they may attain eternal life. But

he instituted no commonwealth; he prescribed unto his followers no new and peculiar form of government; nor put he the sword into ally magistrate's hand, with commission o make use of' it in forcing men to forsake their former religion, and receive his”.

superstição dos príncipes que introduziam seus antecessores para serem adorados pelo povo, como objetivo de garantir a si mesmos a maior veneração dos seus súditos. Assim, “Amon, pela autoridade dos seus sucessores, legisladores do Egito, foi levado à honra do seu nome e memória dos seus templos e nunca os deixou até que foi elevado à condição de deus e tornado Júpiter Amon, etc., cujo hábito se seguiu com os príncipes de outros países”43. Ou seja, Locke põe a causa da idolatria na ambição de poder dos reis, e não na vontade do povo em ser idólatra.

Por conseguinte, a causa da idolatria não era a corrupção da natureza humana, conforme queria Proast como propósito de usar a força para levar os homens a refletirem até adotarem credos que os livrassem da apostasia. Para Locke, estes eram argumentos que permitiam defender a tolerância aos idólatras. Vamos examinar agora sua defesa de tolerância aos pagãos, judeus e maometanos.