• Nenhum resultado encontrado

3. Os limites da tolerância

3.2. O erro da fé: a condenação do entusiasmo

Um outro caso que Locke defende que não deve ser tolerado são as religiões intolerantes, ou, mais precisamente, o entusiasmo religioso. Na Carta, Locke defende que o maior mal que vê nos casos particulares que devem ser excluídos da tolerância é a suposta ortodoxia da crença. Ou seja, aquelas seitas e igrejas que se arrogam no direito, pela defesa de cultuar a Religião Verdadeira, de desafiar qualquer autoridade, seja política ou eclesiástica, que não esteja associada a ela. Assim,

esses que atribuem à fé, religiosidade e ortodoxia, isto é, a si mesmos, qualquer privilégio especial ou poder sobre outros mortais, quanto aos interesses civis, ou quem, sob a pretensão religiosa, desafiam qualquer

60 Sobre os argumentos de intolerância aos católicos, além dos trabalhados aqui, consultar: MARSHALL, John.

Op. Cit., pp. 396-417.

61 Cf. ARSCRAFT, Richard. La politique revolutionnaire, pp.17-39. Segundo Peter Laslett, Locke estava

autoridade que não esteja associada a eles na sua comunhão eclesiástica, digo esses não têm o direito a serem tolerados pelo magistrado, nem aqueles que não possuirão nem ensinarão o dever de tolerar todos os homens em

termos de mera religião62.

Essa suposta ortodoxia da fé Locke denomina de entusiasmo. Entretanto, qual a causa do erro em matéria de fé? Como distinguir a fé divina do entusiasmo e da superstição? Na quarta edição do Ensaio, Locke adicionou um novo capítulo a esta obra (Of enthusiasm) com a finalidade de analisar as causas e conseqüência do entusiasmo63.

No Ensaio, Locke defende que alguns artigos de fé e modos de adoração possuem defeitos, esse defeito chama-se entusiasmo. Para Locke, essa palavra pode ser compreendida pela intolerância, pelo julgamento errado em matéria de religião64. O entusiasmo geralmente mostra-se com a atitude de alguns homens que atribuem a si mesmos a autoridade concernente à certeza da posse de um conteúdo diretamente revelado por Deus a eles. No entanto, o entusiasmo é detectado devido às formas exteriores reveladas por determinadas condutas de fé que dão margem a ações extravagantes induzidas pelo “erro tanto na crença como na conduta”65. Para distinguir esse mal, Locke propõe a necessidade de uma razão crítica que investigasse a razoabilidade da religião revelada, com a intenção de estabelecer o que é ou não digno de fé. Pois, “o próprio São Paulo acreditou que fez bem e que foi chamado a fazer o que fez, quando perseguiu os cristãos que ele, confiantemente, julgava estarem em erro; mas era S. Paulo e não os cristãos que estavam enganado”66.

Nesse sentido, o entusiasmo mostra-se exteriormente pelas atitudes apaixonadas e totalmente desprovidas de qualquer juízo racional sobre a verdade da fé que professa, os entusiastas são retratados por Locke como meros defensores acalorados e tumultuosos de que a verdade da salvação consiste em seguir os preceitos por eles seguidos. Por isso, no Ensaio Locke defende que o único modo das religiões escaparem dos juízos errôneos sobre a ortodoxia é confiar à razão ser juiz e guia em tudo, pois devemos consultar a razão e, por

62 LT1, p. 46. “These therefore, and the like, who attribute unto the faithful, religious, and orthodox, that is, in

plain terms, unto themselves, any peculiar privilege or power above other mortals, in civil concernments; or who, upon pretence of religion, do challenge any manner of authority over such as are not associated with them in their ecclesiastical communion; I say these have no right to be tolerated by the magistrate; as neither those that will not own and teach the duty of tolerating all men in matters of mere religion”.

63 WOLTERSTORFF, Nicholas. “Locke’s Philosophy of Religion”, p. 193. 64 EHU, IV, XIX, § 1-2.

65

Ibidem, IV, XIX, § 8. “(…) wrong principle, so apt to misguide them both in their belief and conduct”.

66 Ibidem, IV, XIX, § 12. “St. Paul himself believed he did well, and that he had a call to it when he persecuted

meio dela, examinar se se trata de uma revelação de Deus ou não67. Então, Locke estabelece que o critério para sabermos se uma determinada crença fora de fato revelada ou não por Deus ou por um enviado seu deve ser através do julgamento da razão e da evidência oriunda das Sagras Escrituras, porque, “onde a razão e as Sagradas Escrituras autorizam expressamente alguma opinião ou algum ato podemos recebê-lo como autoridade divina”68. Em obras posteriores como The reasonableness of christianity de 1695, e no manuscrito publicado postumamente em 1706, e intitulado A discourse of miracles69, Locke defenderá que são os

milagres os selos comprobatórios da revelação. Locke argumentará que a diversidade dos

relatos de milagres feitos por Cristo provaria que ele era realmente o filho de Deus enviado para levar aos homens a vontade de seu Pai, ou seja, os pré-requisitos da salvação moral.

Portanto, para Locke, o entusiasmo pode ser identificado pelas atitudes de alguns homens que atribuem a si mesmos a autoridade concernente à certeza da posse de um conteúdo diretamente revelado por Deus a eles. Esse tipo de crença religiosa consiste em um mal que deve ser evitado porque a manifestação exterior dos entusiastas está repleta de superstição e completamente desprovida da razão, o que possibilita, freqüentemente, ações extravagantes induzidas pelo erro tanto na crença como na conduta. Esse mal, Locke defende, deve ser devidamente extirpado da sociedade política.