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4. O contra-senso da Ética lockeana

4.2. A moral fundamentada na revelação

Em Reasonableness of Christianity, Locke revela que a insatisfação relativa à falta de consistência dos sistemas teológicos foi o motivo que o levou a examinar as Sagradas

Escrituras com o objetivo de tornar claro o significado da religião cristã. O pano de fundo

desse exame consiste na reinterpretação do conceito cristão de redenção que, segundo Locke, fundamentar-se-ia na queda de Adão do paraíso e na restauração da dignidade humana com a chegada do Cristo. Nesse sentido, “para entendermos o que nos foi restaurado por Jesus Cristo, devemos considerar o que a Escritura mostra que perdemos pela queda de Adão” 128. Para levar a cabo esse esclarecimento da doutrina cristã, segundo Locke, é necessária uma compreensão das Escrituras que demonstre a redenção cristã como uma doutrina da completa

124 EHU, IV, XII, § 11. “Hence I think I may conclude, that morality is the proper science and business of

mankind in general”.

125 Ibidem, III, IX, § 16.

126Cf. DUNN, John. La pensée politique de John Locke, p. 193. 127

Idem. Locke, p. 198.

128 RC,§ 1. “To understand, therefore, what we are restored to by Jesus Christ, we must consider what the

salvação moral da humanidade. Por conseguinte, podemos perceber que a fundamentação da moral é um tema central em Reasonableness.

A moral é investigada nesta obra através dos opostos: pecado, culpa e morte/ virtude, recompensa e vida, relacionados à concepção de uma lei proferida pelo Salvador da humanidade para resgatar a vida eterna dos homens. Então, Cristo foi enviado ao mundo por Deus como um restaurador de uma dignidade perdida129, e aqueles que o reconhecesse como seu rei e legislador (King and Ruler) teriam todos os pecados, frutos da primeira desobediência, perdoados. Assim, o Cristo suprimiria os defeitos da falta de obediência a Deus através da exigência àqueles que nele acreditasse de agir com retidão e completa obediência às leis que ele revelava em seus sermões, pois a “fé sem obras, isto é, a obra sincera de obediência à lei e à vontade de Cristo, não é suficiente para nossa justificação”130. Ou seja, aliado à lei da fé no Cristo como salvador da humanidade era requerida a leis das obras, da completa obediência aos seus mandamentos morais.

Por sua vez, é importante considerarmos que o envio do Cristo ao mundo tem como objetivo, segundo Locke, suprir a falta de um claro conhecimento dos deveres morais necessários à correta conduta da humanidade. Este problema se configurava a Locke por maneiras distintas. Em primeiro lugar, que “esta parte do conhecimento, embora cultivada com algum cuidado por alguns filósofos pagãos, todavia alcançava pequeno fundamento entre o povo”131, que ficava entregue aos sacerdotes que não estavam preocupados em ensinar-lhes virtudes, mas sim o seguimento de suas cerimônias, festas e solenidades. Em segundo lugar, e de máxima importância à nossa investigação, Locke defende que mesmo havendo uma difusão dos princípios morais elaborados pelos filósofos, estes princípios não eram claros o suficiente em seus fundamentos. Essa concepção de Locke parte da constatação, um tanto pessimista, que as deduções da razão são difíceis e requerem tempo de meditação, de modo que:

vemos como a tentativa dos filósofos foi um fracasso antes do tempo de

nosso salvador. Como pouco de seus sistemas chagavam a perfeição de uma verdadeira e completa moralidade, é muito visível. E se, desde então, os filósofos cristãos têm ultrapassado-lhes, todavia, podemos observar que o

129 RC, § 174.

130 Ibidem, § 179. “And that faith without works, i. e. the works of sincere obedience to the law and will of

Christ, is not sufficient for our justification”.

131 Ibidem, § 241.2. “This part of knowledge, though cultivated with some care by some of the heathen

primeiro conhecimento das verdades que eles tinham adquirido é

proveniente da revelação132.

Ou seja, os filósofos nunca chegaram, defende Locke, por princípios inquestionáveis e por claras deduções a produzir um corpo inteiro de leis de natureza. Nesse sentido, se Locke mostra-se bastante cético em relação às descobertas das leis morais por parte dos filósofos, algo que deve chamar a atenção do leitor do Ensaio, o que ele diria em relação aos indivíduos comuns?133

Quanto às possibilidades individuais de conhecimento das leis da moralidade, as conclusões de Locke são ainda mais pessimistas. Em reasonableness, Locke argumenta que o conhecimento da moralidade, pela simples luz natural, “faz progressos tão lentos, e pequeno avanço no mundo. E a razão disto não é difícil de ser encontrada nas necessidades, paixões, vícios, e interesses equivocados dos homens, os quais direcionam seus pensamentos para outros caminhos”134. A razão humana sem qualquer tipo de auxílio falharia constantemente naquele que é o seu maior interesse neste mundo: a condução das ações individuais em virtude da moralidade. Por esse motivo, mesmo que se coletassem todas as regras morais classificadas pelos filósofos, e as difundissem entre o povo, estas regras não auxiliariam de maneira alguma “a maior parte dos ignorantes, e pescadores”135. Segundo Locke, um corpo completo de regras morais, capaz de instruir a todos sobre os deveres da conduta correta, ninguém revelou ao mundo antes do tempo de Cristo. Portanto, não seria suficiente a

132 RC, § 241.2. “We see how unsuccessful in this the attempts of philosophers were before our Saviour's time.

How short their several systems came of the perfection of a true and complete morality is very visible. And if, since that, the Christian philosophers have much outdone them; yet we may observe, that the first knowledge of the truths they have added is owing to revelation (…)”. (Grifos nosso).

133 A resposta mais original sobre essas passagens, e não menos controversa, é dada por Macpherson. Segundo o

intérprete, nessas passagens Locke estaria a tratar de uma forma dupla de racionalidade cujo objetivo era fundamentar dois tipos de classes economicamente distintas na sociedade. Assim, para o professor canadense, há os membros da classe tradicional, os governantes, indivíduos capazes de viver uma vida racional, e a classe dos trabalhadores em geral com grau de capacidade cognoscitiva inferior. Por isso, segundo Macpherson, “toda a argumentação desta obra (The reasonableness of Christianity) é um apelo para que o cristianismo seja restaurado em alguns artigos de fé, simples, ‘para que os trabalhadores e os analfabetos possam entender’”. MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo, p.236. A ética simplificada que Locke remetia ao cristianismo não tinha outro objetivo que fornecer regras morais que permitissem a obediência da classe trabalhadora por meio da crença em recompensas e punições divinas. Nesse sentido, todas as considerações da ética cristã que Locke pretendera desenvolver em Reasonableness partiam de seu olhar “para a sua própria sociedade”, nela Locke teria percebido a existência de “duas classes com direitos diferentes e com racionalidades diferentes”. Ibidem, p. 241.

134 RC,§ 241.2. “Experience shows, that the knowledge of morality, by mere natural light, makes but a slow

progress, and little advance in the world. And the reason of it is not hard to be found in men's necessities, passions, vices, and mistaken interests; which turn their thoughts another way (…)”.

declaração e defesa dos sábios de que seus princípios são demonstrados pela luz da razão, pois,

os incoerentes apotegmas dos filósofos, e homens sábios, embora excelentes em si mesmos, e bem intencionados por eles, jamais podiam produzir uma moralidade, a respeito da qual o mundo estivesse convencido; jamais podiam levantar a força de uma lei que a humanidade devia estar certamente

dependente136.

Os princípios defendidos pelos filósofos eram códigos e princípios que não possuíam a obrigação de uma lei, nem a evidência demonstrativa em todas as suas partes, com recompensa e punições acrescentadas. Por isso, Locke entendia que apenas com a revelação cristã o mundo alcançaria “uma completa e suficiente regra para nossa direção, e concordante (ajustada) com a razão”137. Esta dificuldade em relação à descoberta das verdadeiras regras da moralidade que pudessem ser conhecidas de maneira clara pela humanidade, de acordo com Locke, foi o motivo da corrupção generalizada de maneiras e princípios que prevaleceu por todas as idades.

O posicionamento de Locke em Reasonableness faz do conhecimento da moral algo bastante complicado, pois, por um lado, muitas das crenças dos antigos sacerdotes eram propostas sem um entendimento devido da virtude e, por outro lado, os filósofos e seu desejo de demonstrar as leis da Ética não alcançaram êxito nas fundações dessa ciência. Além desses dois fatos, Locke defende que a maior parte dos homens vive sem lazer ou capacidade para as demonstrações, não podem seguir em suas mentes uma seqüência de provas requeridas ao entendimento da moralidade138. Com efeito, o que acontecera com o homem racional, social, capaz conhecer as leis da natureza e agir moralmente ainda em sua fase primitiva no estado de natureza, conforme retrata Locke no Segundo tratado? Este tipo humano que corrompeu o estado de natureza pela racionalização, ou melhor, pela artificialização completa de seu meio natural, através do crescimento de suas relações de troca permitido pelo uso da moeda. Agora dá lugar a homens corrompidos, não por suas atividades econômicas, mas pela concepção de

136

RC, § 242. “But these incoherent apophthegms of philosophers, and wise men, however excellent in themselves, and well intended by them; could never make a morality, whereof the world could be convinced; could never rise to the force of a law, that mankind could with certainty depend on”.

137

Ibidem, § 242. “We have from him a full and sufficient rule for our direction, and conformable to that of reason”.

um pecado originário retirado de uma tradição religiosa que remonta a fatos bem anteriores às primeiras sociedades humanas.

Essa dessemelhança, ou incoerência, entre a Reasonableness e as posições de Locke no Ensaio e nos Dois tratados é evidente e compromete a defesa de que existiria uma coerência ou filosofia geral no pensamento de Locke através de suas declarações sobre a moral. Segundo pensamos, a Reasonableness marca um corte decisivo sobre esse tema, que demonstra o aprofundamento do pessimismo epistemológico que penetra fortemente na moral, semelhante às considerações que haviam sido feitas anteriormente no Ensaio sobre a filosofia natural. Agora, Locke pensa que é a religião, e mais precisamente a revelação cristã, a maneira universal de fundação de uma moral que, além de verdadeira, é simples e inteligível ao entendimento de todos. Locke abandona a idéia de moral demonstrável, pois, este procedimento costumava levar ao erro pela diversidade de sistemas e discordância entre seus propositores, bem como pela dificuldade cognitiva que ultrapassava as condições epistemológicas da humanidade.

O John Locke Pós-Revolução Gloriosa parece ter desacreditado, ou ao menos abandonado, esse projeto inicial de demonstrar as regras da moralidade. O Locke dos últimos anos do séc. XVII e início do XVIII, filósofo que já gozava de bastante respeito em toda Europa, cada vez mais mergulha nas controvérsias sobre a Tolerância, na defesa de suas obras da acusação de socinianismo, e na tentativa de depuração das superstições do cristianismo. Há de certa forma um giro metodológico em Locke para o aprofundamento das questões sobre religião, sem, no entanto, jamais abandonar sua vontade de estabelecer solidamente a moral. Porém, seus fundamentos agora devem ser buscados na revelação cristã e não mais na demonstração dos filósofos. O abandono da moral demonstrada pela razão à moral revelada por Cristo, revela uma estratégia metodológica seguida por Locke cujo resultado, proposital ou não, impossibilita a compreensão de uma possível filosofia geral a partir do que ele pensava sobre a moral. Com efeito, podemos concluir que se existe um aspecto do pensamento de Locke capaz de unificar de maneira coerente seu pensamento é a tolerância e não uma ciência da moral, que ele jamais alcançou uma visão definitiva.