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1. A tolerância civil é uma obrigação do Estado

1.1. A aplicação prática da tolerância

Conforme observamos anteriormente, no primeiro capítulo, a sociedade civil tem como obrigação realizar algo que já não era mais possível no estado de natureza. Tudo se passa como se uma corrupção da espécie humana destruísse a pacífica sociedade universal de seres racionais, até então observadores da lei da razão. Segundo Locke, os conflitos se tornam cada vez mais freqüentes à medida que os homens abandonam os ensinamentos da razão sobre a relação moral entre eles. Por esse motivo, no Segundo tratado, onde Locke expõe seu pensamento definitivo sobre a política, a causa da corrupção crescente da sociedade natural está ligada ao aprofundamento das relações econômicas entre os homens.

A sociedade civil seria então um remédio a estes inconvenientes. Esse posicionamento de Locke nos leva a pensar que o constante aumento da complexidade das relações humanas gerava novas formas de interações práticas entre os homens, interações que não estavam previstas no quadro das leis naturais. Locke, inclusive, defende que, com a utilização da moeda, foi possível burlar a lei de natureza que condicionava a apropriação à capacidade de uso daqueles bens comuns a toda humanidade. A partir dessa maneira de entender a origem da sociedade civil e do poder político, as leis positivas são regras morais mais complexas que devem ser acrescentadas às simples leis da natureza, para regulamentar as brechas cada vez maiores devido ao aumento da complexidade do estado de natureza proporcionado pelo advento da moeda3. Dessa forma, as leis positivas regulamentarão tudo o

3 O fim da lei de natureza que impedia a apropriação ampliada além da capacidade de utilização individual, de

fato, consiste num dos temas mais polêmicos do Segundo tratado. Ora, com a utilização da moeda os homens podem muito bem apropriar bens além do que é necessário para a sua sobrevivência. Ao que parece, a lei de natureza, que os homens descobrem com a razão, não é suficientemente necessária, ou mesmo evidente, aos homens, visto que eles podem mudar regras naturais pelo livre exercício de sua razão. Bobbio, sobre essa questão defende que “(...) Locke segue sua inclinação racionalista profunda que o leva a desvincular cada vez mais o conhecimento humano dos pressupostos teológicos. Identifica a lei natural com a razão (...) e faz da razão não só a descobridora, como também a detentora da lei natural, ou seja, em última análise, a verdadeira legisladora da humanidade”. BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, pp. 148-49. No entanto, se no Segundo tratado Locke assumiria posições menos teológicas para a lei de natureza, cabe ressaltar que essa idéia é deixada de lado em 1695, quando publicou The reasonableness of Christianity. Nesta obra, Locke entende a corrupção do gênero humano a partir da doutrina cristã da redenção, e que esta corrupção se fundamentava “sobre a suposição da queda de Adão. Portanto, continua Locke, para entendermos o que foi restaurado por Jesus

que é indiferente à lei de natureza, elas surgem do pacto inicial entre os homens com a finalidade de pôr em ordem a vida cada vez mais conflituosa do estado de natureza. É este motivo que faz as leis positivas serem relativas, pois seu emprego, por estar relacionado a uma necessidade momentânea de promover a sobrevivência de um determinado grupo de homens, deve variar de território em território; as leis positivas têm, portanto, um caráter relativo, preso a certas circunstâncias. Por isso, Locke, no Segundo tratado, sempre enfatiza que as leis de natureza são universais e devem fundamentar as leis civis, já que estas são complementares e seculares, despidas de qualquer criação de ordem teológica4. As leis civis são instituídas, na verdade, pelo entendimento humano para regular aquelas relações onde a lei de natureza não alcançava. Por isso mesmo, as leis civis têm seu molde no entendimento humano e não no divino; as leis civis têm sua área de atuação restrita ao reino das coisas indiferentes à lei de natureza. Como Locke já exprimia em 1676 no artigo intitulado

Obligation of penal laws, as leis civis não obrigam a consciência, pois são puramente laicas,

são leis penais cuja obrigatoriedade apenas alcança aqueles “(...) transgressores passíveis de punição nesta vida” 5.

Entre essas necessidades práticas está a tolerância porque Estados reformados, como a Inglaterra, passavam por guerras, chacinas e perseguições por motivo de religião6. A superação desse problema órbita entre duas possibilidades díspares, a saber: ou decreta-se uma religião oficial à qual todas as pessoas devem estar conformadas, ou se permite o livre curso das opiniões contrárias na sociedade, incentivando e obrigando a tolerância entre todas as igrejas e seitas cristãs, bem como às outras religiões. Como defendemos no primeiro capítulo, a primeira possibilidade foi sustentada por Locke na década de 60 do século XVII;

Cristo, devemos considerar o que a Escritura mostra que perdemos pela queda de Adão”. RC, § I. “(…) and consequently of the Gospel, is founded upon the supposition of Adam's fall. To understand, therefore, what we are restored to by Jesus Christ, we must consider what the Scriptures show we lost by Adam”. O que se perdeu com a queda de Adão foi a capacidade do bem agir moral, que deveria ser resgatada pela obediência à revelação do Cristo, acessível ao entendimento de todos os homens. Esse assunto será discutido de maneira mais detalhada no tópico número 4 deste capítulo.

4 Cf. T2, §§ 12 e 135.

5 PK, vol. I, p. 114. “And so no human law can lay any obligation on the conscience, and therefore all human

laws are purely penal, i. e. have no other obligation but to make the transgressors liable to punishment in this life”.

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Locke reitera essa idéia em seu manuscrito sobre o poder eclesiástico e o poder religioso, segundo Locke “em alguns lugares a religião da Commonwealth, isto é a religião publicamente estabelecida, não é reconhecida por todos os súditos da Commonwealth; deste modo é a religião protestante na Inglaterra, a reformada em Brandemburgo e a Lutera na Suécia (...). Em alguns lugares a religião de uma pare do povo difere da dos governantes da sociedade civil; por exemplo, os Presbiterianos, os Independentes, os Anabatistas, os Quacres e os Judeus na Inglaterra (...)”. PK, vol. II, p. 117.

porém, a partir de 1667 é a segunda opção que o filósofo whig irá defender7. A partir desse momento, a tolerância, argumenta Locke, deve ser empregada positivamente pelo magistrado e estimulada a todas as religiões através de uma lei civil. Esse era o objetivo de Locke ao defender a existência de uma lei secular da tolerância que deveria ser regulamentada com o objetivo de resolver as discórdias relativas às opiniões e manifestações exteriores da religião, pacificando a sociedade civil a partir do mútuo respeito à diversidade religiosa.

Com efeito, após estabelecermos os fundamentos da tolerância, é necessário investigar sua aplicação prática através da lei de tolerância. Esta lei, como veremos, diz respeito ao magistrado civil e às sociedades religiosas; passemos então à análise do modo como Locke trabalha essa idéia.

1.1.1. A lei de tolerância

A primeira menção de Locke sobre uma Lei que regulasse o culto religioso aparece em The fundamental Constitutions of Carolina escrita em 16698, como diz o próprio título, para a constituição da Carolina, então colônia inglesa. Entre os artigos da Constituição

da Carolina que tratam da religião, Locke defende o dever de culto a Deus, bem como o

dever de tolerância entre igrejas cristãs e outras religiões9. Esta idéia de definir legalmente a esfera da religião em sua aparição exterior continuará fazendo parte do pensamento de Locke, o exemplo claro desse fato está exposto na Carta sobre a tolerância onde Locke defende a

7

Cf. Este assunto foi discutido quando trabalhamos o conceito de Locke sobre os assuntos indiferentes no primeiro capítulo, pp. 55-9.

8 A aceitação definitiva dessa Constituição como sendo escrita por Locke ainda está em debate entre os

comentadores. Uma versão desse texto foi encontrada entre os escritos de Shaftesbury, e uma outra versão encontrada tem partes redigidas com a letra do próprio Locke. De acordo com D. Armitage, Locke estava bastante envolvido com a composição da Constituição da Carolina, e esse fato era evidente pelo interesse manifesto de Locke no Segundo tratado em relação à América. Nesse sentido, segundo o comentador, “The fundamental constitutions of Carolina (1669) tinha sido central para o entendimento da relação entre a teoria política de Locke e seus interesses colônias”; essa constituição teria sido “elaborada inicialmente em 1669 durante o período em que Locke atuava como secretário dos Lords proprietários da Carolina” entre os quais estava Shaftesbury. ARMITAGE, David. “John Locke, Carolina, and the Two Treatise of Government”. Political Theory, vol. 32, nº 5, pp. 602-627, 2004, p. 607. Para John Marshall, sobre a composição dessa Constituição, é provável que Locke tenha sido “autor das seções apropriadas sobre a tolerância da Fundamental constitutions of the Carolina (...)”. MARSHALL, John. John Locke, toleration and early enlightenment culture, p. 595.

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Em The fundamental constitutions of Carolina, as seções de 94-110 tratam exclusivamente de regular a vida religiosa dos habitantes da Carolina, o nível de liberdade religiosa permitida e o que não poderia ser permitido cultuar naquela colônia. Cf. FCC, § § 94-110.

necessidade da existência de uma lei que obrigasse a tolerância entre igrejas seitas religiosas e do Estado para com estas.

O pano de fundo que regulamenta a lei de tolerância, de acordo com Locke, consiste em estabelecer que o magistrado civil não poderá ter autoridade para designar qualquer forma de culto a ser adotada na sociedade, e as religiões, por sua vez, deverão estar sempre restritas às preocupações espirituais, isentas, portanto, de qualquer interesse de natureza política. Esse posicionamento, Locke declara na Carta, tinha por finalidade eliminar as “controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação das almas de um lado, e, por outro, pela segurança da commonwealth”10. Para tanto, a lei de tolerância deve estabelecer um limite razoável para a liberdade religiosa que favoreça a paz civil, permitindo somente aquelas opiniões e manifestações que não trazem desordens à sociedade política, e nem solapam os valores morais e a soberania do poder político. Porém, não devem ser toleradas as ações e opiniões que vão de encontro à paz social e à liberdade de cada indivíduo cultuar a religião que ele entenda ser verdadeira.

Segundo Locke, a lei de tolerância faria ser respeitado o direito à liberdade individual de cada pessoa, ao passo que põe fim às oportunidades infindáveis de agressões e guerras entre as igrejas e seitas cristãs, e outras ordens religiosas. De acordo com esse objetivo, Locke defende que:

se a lei da tolerância não estabelecesse que todas as igrejas seriam obrigadas a ensinar e a pôr como fundamento da sua própria liberdade que os outros, ainda que divirjam de si em matéria de religião, devem tolerar-se, e que ninguém deveria ser constrangido pela lei ou pela força no campo religioso; estabelecido isto, eliminar-se-ia todo o pretexto de querelas e de tumultos em nome da consciência. E, sendo uma vez removida estas causas de descontentamento e animosidade, nada restaria nestas assembléias que não fosse mais pacífico, e menos apto a produzir perturbação no Estado, que em

quaisquer outras reuniões11.

10 LT1, p. 9. “If this be not done, there can be no end put to the controversies that will be always arising between

those that have, or at least pretend to have, on the one side, a concernment for the interest of men's souls, and, on the other side, a care of the commonwealth”.

11 Ibidem, p. 48 “These accusations would soon cease, if the law of toleration were once so settled, that all

churches were obliged to lay down toleration as the foundation of their own liberty; and teach that liberty of conscience is every man’s natural right, equally belonging to dissenters as to themselves; and that nobody ought to be compelled in matters of religion either by law or force. The establishment of this one thing would take away all ground of complaints and tumults upon account of conscience. And these causes of discontents and animosities being once removed, there would remain nothing in these assemblies that were not more peaceable, and less apt to produce disturbance of state, than in any other meetings whatsoever”.

A lei da tolerância deve exercer um papel mediador para resolver os conflitos entre as sociedades religiosas. Por essa razão, a religião deve fundamentar-se apenas na escolha livre e voluntária de uma pessoa, e seus dogmas, para serem permitidos, jamais devem trazer desordens à vida social. Assim, a lei da tolerância cumpriria o papel fundamental de regular a relação entre as crenças religiosas no seio da sociedade civil, pois ela é o aparato legal para fazer cessar todos os tipos de acusações e distúrbios em nome da religião.

Como enfatizamos nos capítulos anteriores, a estratégia de Locke em defesa da tolerância parte de um novo entendimento sobre a natureza da fé religiosa e dos fundamentos da religião, e, igualmente, sobre uma compreensão liberal de que o poder político está restrito ao zelo das propriedades. Ambas as perspectivas permitem a Locke defender a impossibilidade de qualquer medida exterior de conversão religiosa, separando de forma radical o Estado e a religião. No entanto, essa defesa de uma lei que positivamente deva regular a extensão da liberdade religiosa, e, ao mesmo tempo, estabelecer limites à tolerância com respeito a certas formas de adoração, não deixa de ser problemática. Afinal, não encontraríamos nessa defesa da determinação de limites e extensão à tolerância a relação entre aqueles aspectos que Locke condenara veemente como separados, a política e a religião? Ora, Locke responderia que nesses casos onde são tratados a extensão e o limite da tolerância seria quase que inevitável não existir uma relação, às vezes conflituosa, entre a autoridade política e a religião. Ele reconhece isso porque a extensão e o limite da tolerância são estabelecidos a partir de questões de conduta moral, e esse é um assunto complexo porque as ações morais pertencem ao julgamento da corte interna e externa, do governador civil e do doméstico12. É sobre esse aspecto da tolerância proposta por Locke que se encontram as maiores dificuldades para justificá-la de maneira coerente. Este dilema13 da regulamentação das ações morais nunca cessará porque se trata de estabelecer qual o grau de liberdade religiosa deve ser permitido na sociedade, sem interferir no direito individual e, sobretudo, sem misturar o juízo positivo da política com assuntos de fé religiosa.

Nesse sentido, como podemos definir de maneira imparcial a liberdade religiosa? Como Locke poderia equacionar os casos previstos pela lei de tolerância com sua defesa da impossibilidade do magistrado alcançar um entendimento mais profundo sobre essa matéria, que aquele das pessoas comuns? Chegamos agora a um ponto bastante importante da tolerância defendida por Locke, a saber: a eficácia e a coerência de seu pensamento sobre a

12

Cf. LT1, 41.

13 Cf. PERRY, john. "Locke's Accidental Church: The Letter Concerning Toleration and the Church's Witness to

tolerância deverão ser exigidas para que possamos compreender de maneira clara a razão porque alguns casos são excluídos da possibilidade de tolerância, e outros casos defendido seu direito. Com efeito, vamos passar a tratar inicialmente da extensão da tolerância tendo em vista sua defesa da distinção entre a esfera da política e da religião.