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2. Uma tolerância ampla a todas as religiões

2.1. A tolerância entre as igrejas cristãs

2.1.1. Heresias e cismas

Sobre heresias e cismas, Locke segue um caminho diferente das acusações correntes que anatemizavam as heresias e os cismas como “desvios da ‘igreja verdadeira’ e da ‘fé verdadeira’ (...) incluindo anabatistas, socinianos anti-trinitaristas, arminianos, e quacrismo”23. Locke jamais negou que as heresias e os cismas fossem, muitas vezes, erros da fé, ou melhor, interpretações equivocadas das Escrituras com a finalidade de granjear poder, ou mesmo causar alvoroços desnecessários à religião. Entretanto, também nunca negou tolerância às ditas religiões hereges e cismáticas, até porque o que é certo ou errado no âmbito da fé e da interpretação bíblica requer cuidado e atenção. Por isso, consideramos o tratamento sobre este assunto bastante importante para compreendermos o conceito heterodoxo pelo qual Locke se refere às igrejas e seitas cristãs e suas doutrinas de fé. Destarte, após tratar de forma mais pormenorizada sobre a tolerância em geral, Locke resolveu acrescentar algo sobre as heresias e os cismas, e se as igrejas assim denominadas deveriam ter o direito de serem toleradas24.

Em primeiro lugar, é necessário entender que as heresias e os cismas só ocorrem entre indivíduos da mesma religião, o que decorre que um turco não pode ser denominado de

21 LT1, p. 17. “No private person has any right in any manner to prejudice another person in his civil enjoyments,

because he is of another church or religion”.

22

Cf. MARSHALL, John. Op. Cit.,p 224.

23 Id. Ibid., p. 224. 24 LT1, p. 55.

herege em relação a um cristão, muito menos de cismático. Assim, Locke define a heresia como

uma separação feita numa comunidade eclesiástica entre homens da mesma religião, por algumas opiniões de nenhum modo contidas na própria regra. E segundo, que entre aqueles que nada mais reconhecem além das Sagradas Escrituras como sua regra de fé, a heresia é uma separação em sua comunhão cristã, pelas opiniões não contidas nas palavras expressas das

Escrituras25.

Essa separação, segundo Locke, pode ocorrer em dois níveis. No primeiro, quando a parte mais poderosa da igreja separa-se das outras partes, excluindo-as de sua comunhão por não professarem certas opiniões indiferentes, consistindo em uma divisão voluntária levada a cabo pela introdução de nomes e modos de diferenciação a partir de tais opiniões. Em segundo, “quando alguém se separa da comunidade de uma igreja, porque essa igreja não professa publicamente certas opiniões que as Sagradas Escrituras não ensina expressamente”26. Locke observa, sobre esses dois níveis, que o erro daqueles que dividem as igrejas está justamente em não apresentar motivos evidentes e comprovados nas Escrituras; ou seja, eles erram nos argumentos da razão da divisão, e fazem por motivos não necessários a religião.

Quanto aos cismas, Locke não faz tantas considerações quanto às heresias. No entanto, os cismas são também separações mal fundamentadas nas comunidades eclesiásticas, porém, Locke esclarece que, se as heresias estão relacionadas com erros na fé, os cismas são erros de adoração ou disciplina. Assim, os cismas podem ser definidos como “a separação da comunhão da Igreja à conta de algo na divina adoração ou disciplina eclesiástica que não seja uma parte necessária dela”27. Porém, estes indivíduos e grupos de indivíduos, hereges e cismáticos, deveriam ter o direito à tolerância? A resposta de Locke é que se deve os tolerar desde que eles mesmos se tolerem, pois,

25 LT1, p. 56. “That heresy is a separation made in ecclesiastical communion between men of the same religion,

for some opinions no way contained in the rule itself. And secondly, that amongst those who acknowledge nothing but the Holy Scriptures to be their rule of faith, heresy is a separation made in their Christian communion, for opinions not contained in the express words of Scriptures”.

26 Ibidem, p. 56. “When any one separates himself from the communion of a church, because that church does

not publicly profess some certain opinions which the Holy Scriptures do not expressly teach”.

27

Ibidem, p. 58. “Schism then, for the same reasons that have already been alleged, is nothing else but a separation made in the communion of the church, upon account of something in divine worship, or ecclesiastical discipline, that is not any necessary part of it”.

embora possamos pensar claramente que esta ou a outra doutrina seja deduzida das Escrituras, não devemos por essa razão impô-la a outros como artigo necessário de fé, porque nós acreditamos que é agradável à regra da fé; a menos que nós estivéssemos contentes que outras doutrinas nos fossem impostas da mesma maneira, e fôssemos compelidos a receber e professar todas as opiniões diferentes e contraditórias de luteranos, calvinistas, remonstrantes, anabatistas e outras seitas, que os criadores de símbolos, sistemas e confissões estão acostumados a entregar a seus seguidores como

genuínas e necessárias deduções das Sagradas Escrituras28.

A partir dessas considerações podemos perceber que para Locke a “paz, igualdade e amizade devem ser mutuamente observadas pelas igrejas particulares, da mesma maneira que as pessoas privadas, sem qualquer pretensão de superioridade ou jurisdição sobre outra”29. Somente quando as igrejas compreenderem que cada uma é ortodoxa para si mesma, que cada igreja particular defende ser a sua fé ortodoxa e as das outras hereges e cismáticas, haveria a possibilidade de pôr fim à controvérsia entre essas igrejas sobre a verdade de suas doutrinas e a pureza de sua adoração, que de ambos os lados é a mesma30.

É por esse motivo que Locke, na Terceira carta sobre a tolerância, ao tratar da violência levada a cabo pela Igreja romana, lembra ao seu debatedor, Jonas Proast, que aquilo que a força e a perseguição deliberada aos supostos hereges e cismáticos produziu no “Cristianismo em várias épocas antes da Reforma, é tão conhecido que será difícil saber que utilidade terá o seu modo de questionar além do alcançado pela religião romana”31. Com efeito, do mesmo modo que o magistrado deve tolerar todas as igrejas que não trazem problemas à ordem social, a tolerância também deve ser observada entre as próprias sociedades religiosas. As igrejas devem relacionar-se entre elas como as pessoas entre si: nenhuma delas pode ter qualquer jurisdição sobre outras. Deve haver uma tolerância entre elas por razões que vão da natureza humana, incapaz de determinar infalivelmente a verdade

28 LT1, p. 57. “This only I say, that however clearly we may think this or the other doctrine to be deduced from

Scripture, we ought not therefore to impose it upon others as a necessary article of faith, because we believe it to be agreeable to the rule of faith; unless we would be content also that other doctrines should be imposed upon us in the same manner; and that we should be compelled to receive and profess all the different and contradictory opinions of Lutherans, Calvinists, remonstrants, anabaptists, and other sects, which the contrivers of symbols, systems, and confessions, are accustomed to deliver unto their followers as genuine and necessary deductions from the Holy Scripture”.

29 Ibidem, p.18. “And therefore peace, equity, and friendship, are always mutually to be observed by particular

churches, in the same manner as by private persons, without any pretence of superiority or jurisdiction over one another”.

30 Ibidem, pp. 18-19. 31

LT3, p. 484. “And what force, in the absence of miracles, produced in Christendom several ages before the Reformation, is so well known, that it will be hard to find what service your way of arguing will do any but the Romish religion”.

da fé, e da primazia da interpretação das Sagradas Escrituras, que determina que todas as igrejas, seitas cristãs são ortodoxas para si mesmas.

Seguindo essa linha de argumentação, a tolerância defendida por Locke ganha contornos ainda maiores. Pois, a extensão do poder político ao ser retirada do âmbito da religião, da mesma maneira que a falta de uma evidência sobre os modos de adoração do cristianismo defendidos pelas igrejas dissidentes e, sobretudo, pela compreensão de que a fé é uma manifestação interior, permitem defender a obrigação de tolerância aos idólatras, aos pagãos, judeus e, até mesmo, aos mulçumanos. Com efeito, trataremos da tolerância às religiões não-cristãs iniciando pelos argumentos levantados por Locke que defendem a tolerância aos idólatras.