• Nenhum resultado encontrado

A abordagem histórico-cultural: a mediação, a internalização e a relação

Ainda buscando as referências para a análise, estabelecemos o diálogo com teóricos da perspectiva histórico-cultural, procurando revisitar as principais abordagens psicológicas que contribuem para significar o que se entende por

ensinar e aprender. Conforme aborda Gómez (2000), o conceito de aprendizagem é um conceito prévio, um requisito indispensável para qualquer elaboração teórica sobre o ensino. Nesse sentido, Rey (2006) destaca o caráter singular do processo de aprender, o qual vai implicar a necessidade de refletirmos sobre os processos pedagógicos e sobre os aspectos que posicionam o aluno como sujeito da aprendizagem.

As análises realizadas sobre as diferentes teorias psicológicas da aprendizagem (conducionistas, tratamento da informação, cognitivistas, aprendizagem significativa e histórico-cultural) evidenciam não somente uma disparidade de enfoques, mas, sobretudo, que há posicionamentos epistemológicos divergentes. Não faremos neste trabalho um exame exaustivo dessas abordagens, tendo em vista a existência de estudos que já o fizeram10. Trataremos apenas da abordagem histórico-cultural, pois ao tomarmos a perspectiva epistemológica de construção do conhecimento enquanto atividade social, historicamente situada e mediada pela linguagem, essa abordagem nos fornece o arcabouço teórico que dá sustentação à reflexão inter e intrapsicológica desenvolvida com as professoras partícipes para compreendermos os saberes docentes mobilizados na organização do ensino-aprendizagem.

Na perspectiva histórico-cultural, tudo o que é especificamente humano e distingue o homem de outras espécies tem sua origem na vida em sociedade. Dessa forma, o princípio que vai orientar os estudos dessa abordagem, especialmente os de Vygotsky, diz respeito à dimensão histórico-cultural do psiquismo.

Vygotsky (1991, 2004, 2005) ao longo de sua obra procura caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se formaram ao longo da história e de como se desenvolveram durante a vida de um indivíduo. O referido autor centra sua discussão em três aspectos fundamentais: a relação entre os seres humanos e o ambiente físico e social; as formas de atividades que fizeram com que o trabalho se tornasse o meio fundamental de relação entre o homem e a natureza; a natureza das relações entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem. Nesse processo, investiga temas como: a contribuição da fala para o desenvolvimento estrutural da atividade

prática; o desenvolvimento da percepção e da atenção; a origem social dos signos e o seu papel no desenvolvimento individual.

Ao compreendermos os saberes docentes enquanto saberes de relações, cujos processos de significação são social e historicamente construídos, algumas categorias dos estudos de Vygotsky são relevantes no contexto desta investigação, porque nos auxiliam a entender tais processos, especialmente a relação entre ensino e aprendizagem. Nessa perspectiva, trabalhamos com as seguintes categorias: o significado e o sentido da palavra, o conceito de mediação e internalização e as relações que o referido autor estabelece entre aprendizagem e desenvolvimento.

Ao contrapor-se aos estudos das teorias associacionistas e da Gestalt, Vygotsky (2005) buscou construir uma nova abordagem para o estudo dos fenômenos psicológicos. Nesse sentido, ele formula outro método de análise, o qual denomina de análise em unidades. Para o termo unidade, ele se refere a um tipo de análise que conserva todas as propriedades básicas do todo, não podendo ser dividido sem que as perca. Ao tratar da relação entre pensamento e linguagem, Vygotsky (2005, p. 5) diz que “é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal”. Assim sendo, é através do significado que podemos compreender e encontrar respostas para as relações entre pensamento e fala. Conforme esse autor, cada palavra já é uma generalização, portanto não se refere a um único objeto. Dessa forma, o significado da palavra como uma unidade de análise do pensamento e da linguagem assume nos estudos vygotskyanos o foco de sua atenção.

Articuladas a essas discussões, outras elaborações revelam as preocupações do autor com a dinâmica dos significados na linguagem, o que o leva a abordar não só o significado, mas também o sentido da palavra. Conforme observamos nos estudos de Vygotsky e em outros autores que analisam o pensamento do autor, como: Smolka (1994, 2000), Souza (1995), Fontana (2005), Góes e Cruz (2006) e Molon (2010), o sentido é tratado por Vygotsky, principalmente, para estabelecer distinções entre linguagem interna e externa, as características funcionais e estruturais da fala para o outro e para si.

Ao abordar o sentido das palavras, Vygotsky nos possibilita compreender que estas não podem ser consideradas fora do seu acontecimento concreto, pois a variação dos contextos de sua ocorrência faz com que os sentidos sejam ilimitados e

mostrem-se sempre inacabados (GÓES; CRUZ, 2006). A exemplo da abordagem bakhtiniana, a ideia do contexto desenvolvida por Vygotsky sinaliza uma clara impossibilidade de tratarmos a palavra fora das condições de produção do dizer e da interpretação do que é dito.

Outro aspecto destacado pelo referido autor é que a transmissão racional e intencional da experiência e do pensamento a outros requer sistema mediado, cujo instrumento é a linguagem, oriunda da necessidade de intercâmbio durante o trabalho. (VYGOTSKY, 2005). A atividade mediada é constituída por meio de um processo interpsicológico, cujo processo se desenvolve desde os primeiros momentos de vida, através de diferentes processos sociais. À medida que esses processos são internalizados, a atividade mediada se transforma em processo intrapsicológico, dando origem à atividade voluntária. (NOGUEIRA, 1994).

Sirgado (2000) destaca a conversão como termo utilizado várias vezes por Vygotsky ao referir-se à transformação das relações sociais em funções psicológicas. Assim, utilizando-se de análises dos sentidos que o termo conversão tem para a física (mudança de um corpo de um estado a outro sem perder a suas propriedades essenciais, por exemplo, a água do estado sólido para o líquido); e do uso comum para designar a mudança por que podem passar a pessoas no campo das ideias, Sirgado (2000, p. 68) nos aproxima do sentido desse termo no contexto da teoria vygotskyana ao dizer que

a conversão supõe uma mudança de um estado ou condição “A” para um estado ou condição “B”, onde algo essencial permanece constante, tornando a conversão um processo reversível. Na conversão das relações sociais em relações intrapessoais, o elemento que permanece constante é a significação. Mas a significação social das relações é convertida em significação pessoal (“quase social”) dessas relações. Estas adquirem o sentido que lhes dá o indivíduo.

Esse processo gera uma cadeia de significações, o que permite passar de uma significação a outra mediante a constante produção de sentidos nos processos dialógicos. Desse processo, a compreensão de que o indivíduo está envolvido numa ampla rede de relações diferentes nos possibilita compreendê-lo como uma unidade constituída por múltiplas relações, ocupando múltiplas posições no contexto dessas relações. A ideia de sujeito psicológico nos remete à compreensão de que “o sujeito

da relação não é o mesmo em todas as relações sociais” (SIRGADO, 2000, p. 72), o que significa dizer que as posições do sujeito da relação variam em função do outro sujeito dessa relação.

Embora o termo conversão seja destacado por Sirgado (2000) e Molon (2010) como o mais fidedigno para explicar o movimento de transformação das funções mentais inferiores para as funções mentais superiores, outros autores têm trabalhado com a noção de apropriação como equivalente à noção de internalização, como é o caso de Smolka (2000). Para essa autora, o termo apropriação pode ser usado como equivalente à internalização, uma vez que esse termo supõe que o indivíduo toma “de fora” (de algum lugar) e de alguém (um outro), o que implica a ação de um indivíduo sobre algo ao qual ele atribui propriedade particular. Nesse caso, o termo apropriação, segundo a própria autora, “está permeado por outras significações importantes” e refere-se “a modos de tornar próprio, de tornar seu; também, tornar adequado, pertinente, aos valores e normas socialmente estabelecidos”. (SMOLKA, 2000, p. 28, grifo da autora).

Vygotsky (1991) propõe, baseando-se na concepção que tinha Engels da atividade como motor na humanização, uma psicologia apoiada na atividade. Ao fundamentar-se no conceito de atividade, o referido autor considera que o homem não se limita a responder aos estímulos, mas atua sobre eles, transformando-os. Em virtude da utilização de instrumentos mediadores, o sujeito modifica o estímulo, não se limitando a responder à sua presença de maneira reflexa ou mecânica. A atividade é processo de transformação do meio através da utilização de instrumentos. (POZO, 2002).

Vygotsky (1991) diferencia duas categorias de instrumentos em função do tipo de atividade que as torna possíveis. O tipo mais simples de instrumento seria a ferramenta, que atua materialmente sobre o estímulo, modificando-o. Entretanto, é na cultura que o indivíduo vai encontrar as ferramentas necessárias para modificar tanto seu meio quanto a si próprio. Nessa perspectiva, os sistemas de sinais ou signos constituem um segundo tipo de instrumentos, que produzem uma atividade adaptadora diferente, pois “a invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.)” (VYGOTSKY, 1991, p. 59) é análoga à invenção e uso de instrumentos do primeiro tipo, só que agora no campo psicológico. Dessa forma, ao contrário das ferramentas, o sinal não modifica materialmente o estímulo, mas

modifica a pessoa que o utiliza como mediador e, definitivamente, atua sobre a interação dessa pessoa com o seu meio. (POZO, 2002).

Para Vygotsky (2004), a relação entre o ensino e o desenvolvimento da criança na idade escolar é questão fundamental, sem a qual o problema da psicologia pedagógica e da análise pedológica do processo pedagógico não pode ser só resolvido corretamente, nem sequer colocado. Nessa perspectiva, o referido autor atribui importância nuclear às relações existentes entre desenvolvimento e aprendizagem, pelas implicações desse aspecto tanto no diagnóstico das capacidades intelectuais dos aprendizes quanto na elaboração de uma teoria do ensino. Para ele, o que a criança realiza com a ajuda de outros pode ser mais indicativo de seu desenvolvimento mental do que o que ela já faz por si só. Dessa forma, a simples determinação dos níveis evolutivos reais não é suficiente para descobrirmos as relações desse processo evolutivo com as possibilidades reais de aprendizagem. É necessário, portanto, revelar no mínimo dois níveis evolutivos: o das capacidades reais e o das possibilidades de aprender com ajuda dos demais. A diferença entre esses dois níveis é o que Vygotsky (1991, p. 07) denomina “Zona de Desenvolvimento Proximal”, por ele definida como

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.

Considerada não em termos estritamente biológicos, mas como os modos de atividades internalizados, a Zona de Desenvolvimento Proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, ou seja, funções que amadurecerão, mas se encontram ainda em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, em vez de “frutos” do desenvolvimento. (VYGOTSKY, 1991, p. 97).

A Zona de Desenvolvimento Proximal ajuda a orientar a aprendizagem, numa perspectiva em que a “boa aprendizagem” é aquela que se adianta ao desenvolvimento. Desse ponto de vista, como diz Vygotsky (1991, p. 101),

[...] o aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer.

Por esse entendimento, Vygotsky destaca a importância da aprendizagem para o desenvolvimento das funções psicológicas culturais e especificamente humanas. Desse modo, a escola deve esforçar-se em ajudar os alunos a expressarem e a desenvolverem essas capacidades, orientando não para os níveis que já foram atingidos, mas para os níveis potencialmente em desenvolvimento.

A partir dos pressupostos teóricos refletidos ao longo deste trabalho, procuramos direcionar nossa análise buscando identificar nos diálogos reflexivos e autorreflexivos os seguintes aspectos: o enunciado, o tema, a mediação, os processos de internalização, os sentidos e os significados que nos possibilitam analisar os saberes mobilizados pelas professoras partícipes no processo ensino- aprendizagem. A seguir, detalhamos os textos selecionados e os procedimentos de análise.