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Ao confrontarem suas ações, as professoras partícipes nos fornecem indicações acerca das teorias que dão sustentação às suas práticas e do seu processo de construção. Percebemos que ao refletirem sobre o sentido de suas ações fazem emergir saberes relacionados com as aprendizagens do contexto familiar e com sua trajetória profissional. Entretanto, cada professora expressa sua relação com os saberes que adquiriram maior sentido em suas práticas pedagógicas. Vejamos um trecho da reflexão da professora Rita.

Como cheguei a ser assim? Percebo que são pelas leituras, análises, reflexões e estudos de capacitações. Também vejo que tenho alguns ensinamentos construídos da família, hábitos que até hoje mantenho, como a honestidade, o respeito para com o outro, atenção e obediência de limites e regras. Por isso, me preocupo com a forma como as crianças se comportam, postura, tratamento com o colega, chamando a atenção deles, perguntando se está correto, como devemos agir... cobrando pôr em prática as normas de convivência elaboradas no início do ano letivo.

Nesta aula, especificamente me preocupei em fazer com que as crianças desenvolvessem o domínio da linguagem oral e escrita, escrevendo seus próprios textos (lista), colaborando coletivamente e participando com respeito, inclusive a lista é um texto que na realidade, hoje, as pessoas usam para a organização das suas ações. Por exemplo: lista de convidados para uma festa, lista dos produtos para comprar, lista dos compromissos do dia, etc. Por ter uma estrutura simples, a lista é um texto privilegiado para o trabalho com as crianças que não sabem ler e escrever convencionalmente, pois como é visto PROFA, que “é necessário que o professor proponha a escrita de uma lista que tenha alguma função de uso na comunidade ou na sala de aula. A escrita de listas de palavras que começam com a mesma letra ou outras similares”. A tentativa de trabalhar desta maneira, propor reescrever a lista ao lado da escrita individual da criança, é que, ressalto que, no caso do PROFA, “quando propomos a escrita de

textos em que não há um destinatário específico, é fundamental aceitar as hipóteses e não interferir diretamente nas produções: não se deve corrigir, escrever em baixo ou coisa do tipo. Faça a reflexão sobre a escrita, sempre que for possível”, acho que é por isso que nas minhas aulas favoreço a reflexão dos alunos sobre a escrita, propondo comparações entre palavras que começam ou terminam da mesma forma, que pronúncia ou som. Assim, é que as crianças, da maneira que são ensinadas, elas vão pondo em prática, indagando, questionando e procurando outros conhecimentos.

Para analisar esse texto da professora Rita, a princípio, lembramo-nos das palavras de Tezza (2005, p. 211), quando destaca que “no universo bakhtiniano nenhuma voz jamais fala sozinha”, o que nos ajudou a entender os princípios da dialogia de Bakhtin, e agora também nos auxilia a compreender as vozes que permeiam o discurso da professora Rita. Nesse sentido, ao responder a pergunta: “como cheguei a ser assim?”, sua resposta cria o contexto socioideológico através do qual diz a sua própria voz, como também a voz dos outros como se fosse sua, não no sentido de uma apropriação indevida, mas como mecanismo de legitimação de sua própria voz.

Nessa perspectiva, a professora Rita se constrói como autor e como ouvinte da voz do outro na medida em que percebe que chegou a ser assim “[...] pelas leituras, análises, reflexões e estudos de capacitações” e também através dos “ensinamentos construídos da família, hábitos que até hoje mantenho, como a honestidade, o respeito para com o outro, atenção e obediência de limites e regras”.

Desse modo, as vozes através das quais a professora Rita expressa os princípios pedagógicos nos quais está fundamentada sua prática estão enraizadas em seu processo histórico de formação pessoal, profissional, e em contexto normativo do trabalho escolar, cujas implicações podem ser percebidas quando ela se preocupa “[...] com a forma como as crianças se comportam, postura, tratamento com o colega, chamando a atenção deles, perguntando se está correto [...]” e “[...] em fazer com que as crianças desenvolvessem o domínio da linguagem oral e escrita”. Na sequência de sua enunciação, a voz da pessoa funde-se na voz do professor, fazendo-a quase desaparecer no discurso citado. (BAKHTIN, 2002). A professora passa daí em diante a justificar sua postura pedagógica em relação aos saberes necessários a serem ensinados e aprendidos, em termos do que é posto e valorizado no contexto social e escolar. A voz do outro, no caso dos PROFA, torna- se o discurso da autoridade que dá legitimidade à prática que ela desenvolve.

O sentido da reflexão da professora Rita nos remete para a compreensão de que os saberes aprendidos por ela através de estudos, reflexões e formações contínuas entrelaçam-se com os saberes axiológicos e implicam-se na sua prática pedagógica, traduzindo-se em formas de ação que a levam a se preocupar com o ensino de normas, comportamento e postura das crianças em sala de aula, bem como com o ensino da escrita.

Analisando as respostas da professora e levando-se em consideração o foco da ação do ciclo reflexivo, percebemos que sua reflexão caracteriza-se como técnica e prática porque, efetivamente, ela não estabelece nenhum confronto ou avaliação crítica entre os seus saberes, os saberes dos alunos, os saberes que ensina e os princípios através dos quais ela busca compreendê-los. Entretanto, como vimos, sua reflexão não está destituída dos valores e dos princípios pedagógicos que dão sustentação à sua prática.

No confrontar da professora Alice, podemos perceber que ela enuncia aspectos do ponto de partida do trabalho pedagógico, critérios de seleção dos conteúdos, autoavaliação da prática e sua relação com as aprendizagens dos alunos, citando os teóricos nos quais ela diz que fundamenta a sua prática pedagógica. Vejamos o enunciado da professora Alice:

Quando damos início ao ano letivo, destacamos na proposta de trabalho os conteúdos a serem trabalhados durante todo o seu decorrer, e diante estes, seleciono aqueles que vejo que meus alunos têm condições de aprender, compreender, ou seja, de acordo com sua capacidade. E diante minha formação, os cursos de capacitação que tenho participado, os conteúdos vêm sendo trabalhados de forma dinâmica, levando os alunos a aprenderem de forma prazerosa. Sei que não encaminhei esta aula dessa forma, mas outras sim, e percebemos que a criança aprende, mas mesmo da forma que planejei esta aula, direto ou indiretamente, alguns conhecimentos foram enfatizados, como o conhecimento de algumas formas geométricas que estão presentes em todos os espaços que nos encontramos; o uso da escrita mesmo convencional ou não, mas que há uma aprendizagem que, às vezes, nem percebemos que a criança sabe e aprende. Assim, a aula elaborada foi com o intuito de que os alunos desenvolvessem a escrita e os conhecimentos matemáticos. Apesar de observar falhas que surgem nos encaminhamentos da aula, minhas práticas pedagógicas estão baseadas nos teóricos como Paulo Freire, Ana Teberosk, Emilia Ferreiro, Telma Weis e os referenciais como PCNs, os módulos do PROFA, PROLETRAMENTO, entre outros, que nos leve a compreensão do desenvolvimento cognitivo, psicológico e de aprendizagem da criança de acordo com sua idade e capacidade.

A construção social do discurso da professora evoca, de partida, aspectos do discurso prescritivo da escola, nesse sentido a professora cita a proposta pedagógica como referencial para o seu trabalho. Na sequência, as marcas do seu discurso expressam o sentido da adequação, isto é, os conteúdos devem adequar- se às capacidades dos alunos, levando-nos a pensar que ela considera necessário os alunos atingirem determinado nível de conhecimento para que tenham condições de aprender, o que corresponde a perspectiva que entende a aprendizagem como dependente do processo de desenvolvimento.

Nos estudos sobre as abordagens psicológicas da aprendizagem, tal perspectiva encontra correspondência na abordagem piagetiana, a qual, ao analisar o desenvolvimento da pessoa em termos de suas estruturas cognitivas compartimentadas em estágios evolutivos, considera a aprendizagem como dependente do processo de desenvolvimento, nesse caso aquilo que a criança pode ou não aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estruturas cognitivas. (CRUZ; FONTANA, 1997). De fato, não temos, nesse contexto, uma explicação teórica da própria professora sobre esses princípios que nos permita afirmar que são esses os fundamentos da sua prática. Entretanto, não desconsideramos a necessidade de um confronto teórico-prático.

Contrapondo-se a esse ponto de vista, Vygotsky (2004, p. 482) afirma: “A aprendizagem, que se orienta nos ciclos já concluídos de desenvolvimento, acaba sendo ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança”. Para o autor, a aprendizagem não é desenvolvimento, mas se for adequadamente organizada possibilita não somente esse desenvolvimento, como também desencadeia uma série de processos que, fora da aprendizagem, se tornariam difíceis de acontecer. Por isso, Vygotsky (2004) destaca a importância da relação do adulto com a criança nesse processo.

Sobre os referencias e fontes de saberes, as professora se reportam às formações continuadas e aos teóricos, principalmente os da área da alfabetização, sem, no entanto, emitir comentários ou explicações sobre o pensamento desses autores e as possíveis implicações nas suas práticas. A relação teoria-prática enquanto problemática emergente do discurso reflexivo das professoras exige que sejam estabelecidas, como diz Vieira (2005), “as pontes (in)visíveis” dessa relação.

A exemplo do estudo realizado por Vieira (2005), observamos nas reflexões das professoras partícipes que elas quase não se utilizam da linguagem

teórica especializada para justificar as suas ações, o que não significa dizer que a teoria não está presente. Do ponto de vista da metáfora da (in)visibilidade, conforme trabalhada por Vieira (2005), não existe a possibilidade da não relação entre teoria e prática, o que pode ocorrer são alguns modos de (não) vermos essa relação. Ao estabelecerem relações entre a prática dos professores e as teorias que a fundamentam, autores como Shulman (2005), Schön (1987), Calderheard (1988), por exemplo, referem-se às teorias locais ou teorias em uso. De fato, utilizando-se ou não de uma linguagem especializada, compreendemos que o que pode acontecer é que, muitas vezes, desconhecemos ou temos pouca consciência das teorias que nos fazem ensinar de uma determinada maneira. No contexto dessa investigação, buscamos relacionar essas teorias ao aspecto histórico-cultural (VYGOTSKY, 1991, 2005) e ao auditório social (BAKHTIN, 2002, 2003), os quais contribuem para que as professoras estabeleçam determinadas relações de saber e de aprender no processo de ensino-aprendizagem. (CHARLOT, 2000).

Assim, em termos do foco da ação, a reflexão das professoras traz as marcas da reflexão prática porque não estabelece um confronto com os pressupostos teóricos que a fundamentam.

4.4 OS SABERES SOBRE AS DIFICULDADES NO PROCESSO DE ENSINO-