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A acentuação austromarxista da pluralidade e da multiformidade do processo revolucionário

A concepção austromarxista de transição ao socialismo

3.1 A acentuação austromarxista da pluralidade e da multiformidade do processo revolucionário

A República austríaca, proclamada em 12 de novembro de 1918, foi governada inicialmente por uma coalizão formada por cristãos-sociais, alemão-nacionais e social- democratas. No interior do novo Estado republicano, a considerável influência política, recém-alcançada pela social-democracia, manifestou-se claramente quando o governo de coalizão – do qual inicialmente Renner foi Primeiro Ministro – foi capitaneado durante quase dois anos pelo SDAPÖ. Sob a direção de Bauer, o SDAPÖ começou a desempenhar suas novas funções de governo em circunstâncias extremamente difíceis, provocadas pelo quase simultâneo desabamento dos impérios habsbúrgico, guilhermino e czarista, bem como pela Revolução de Outubro. Do ponto de vista social, a crescente agitação revolucionária dos anos 1917 e 1918 – que se articulara com a guinada à esquerda do partido – radicalizou-se ulteriormente quando foram proclamadas as repúblicas dos conselhos na Hungria e na Baviera, respectivamente em 21 de março e em 7 de abril de 1919. Naquela ocasião, grupos consideráveis, formados por membros da classe operária e por soldados recém-retornados da guerra perdida, reivindicaram a instauração de uma ditadura do proletariado de cunho russo. A direção do SDAPÖ optou por não apoiar essas reivindicações: ao contrário, usou sua grande autoridade para conter os operários e os soldados, evitando que desencadeassem um levante violento. Os próprios ministros social-democratas, Julius Deutsch (Defesa) e Matthias Eldersch (Interior), foram os responsáveis pelo bloqueio das tentativas insurrecionais que se seguiram até meados de 1919, a maioria das quais eram insufladas pela Internacional comunista. Os dirigentes do SDAPÖ, que eram decididamente hostis ao uso da violência, estavam convencidos que na Áustria uma ditadura do proletariado teria sido derrotada pela fome, e que o país teria sido ocupado militarmente pelos exércitos vitoriosos na guerra mundial, os quais teriam sucessivamente apoiado um regime de terror branco. Além disso, a direção do partido possuía uma visão própria de transição ao socialismo – parcialmente distinta daquelas presentes tanto na social-democracia alemã quanto no bolchevismo –

segundo a qual a negação do valor do modelo bolchevique de revolução para a Europa central e ocidental desempenhava um papel essencial. O principal efeito político da tática então adotada pela direção do partido foi a consolidação da hegemonia política do SDAPÖ no interior da classe operária austríaca.

Em contraste com a linha política seguida pelo SDAPÖ, o KPÖ, durante a primavera de 1919, retomou com vigor a mesma iniciativa política de tipo golpista que havia utilizado no dia da proclamação da República austríaca, quando sua tentativa de tomar o poder mediante uma ação de cunho insurrecional havia fracassado. Naquele momento em que se acentuava a radicalização da classe operária na Europa central, especialmente após os provisórios sucessos das revoluções na Hungria e na Baviera, os bolcheviques e o próprio Lenin acreditaram que o desencadeamento da revolução na Áustria e na Alemanha fosse iminente. Sobre a base daquele diagnóstico, financiados e influenciados por Béla Kun, que então presidia a República dos Conselhos na Hungria, os comunistas austríacos, partindo do modelo bolchevique de revolução, tentaram desencadear o levante da classe operária austríaca. O efeito político do insucesso da sangrenta insurreição, tentada em 15 de abril, e do sucessivo fracasso da cruenta tentativa de putsch de 15 de junho de 1919 foi a acentuação da marginalização do KPÖ no movimento operário austríaco, já em curso desde novembro do ano anterior. Após a derrota política na Áustria, a Internacional Comunista acusou os membros da direção do SDAPÖ, e especialmente Bauer, de terem traído a revolução, culpando-os de terem utilizado todos os meios ao seu alcance para bloquear a insurreição nas ruas de Viena.1 Apesar daquelas duras censuras, Lenin logo compreendeu com clareza o erro que os comunistas haviam cometido na Áustria, “... tanto que em ‘O extremismo, doença infantil do comunismo’, escrito no ano seguintes aos fatos em questão, sentiu a necessidade de criticar a ‘falsa consciência’ daqueles ‘sinistros’ que haviam ‘trocado seu desejo, sua posição ideológica e política pela realidade objetiva’” 2.

No dia imediatamente posterior à trágica conclusão do levante insurrecional comunista, Bauer enviou, através de Robert Danneberg,3 uma carta a Bela Kun, em que

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A tal propósito, como exemplo Perez Mehrav lembra que: “O porta-voz da Internacional Comunista, Karl Radek, acusava então a social-democracia austríaca de "utilizar todos os meios para impedir o proletariado austríaco de unir suas forças às do proletariado húngaro – os víveres poderiam provir de Banato e da Eslováquia –; de criarem em conjunto um exército proletário, como meio de frustrar os ataques da contrarrevolução; de indicarem juntos o caminho a ser seguido pelo proletariado das outras nações da ex-monarquia dos Habsburgos".”. MEHRAV, P. Social-democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, E. J. História do

marxismo, vol 5. Rio de Janeiro: editora paz e terra, 1985, p. 259.

2 MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 40.

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Robert Danneberg foi um conhecido expoente da esquerda austromarxista, que desempenhou uma função de grande relevo na administração da “Viena vermelha”.

apontou as razões que haviam levado o SDAPÖ a recusar a reivindicação, apresentada pelo KPÖ, de realizar uma República soviética austríaca, aliada à República dos Conselhos húngara. Segundo Bauer, na Áustria a instauração de uma ditadura do proletariado era então inviável por dois motivos: o primeiro era “... de política interna, relacionado à peculiar estrutura social da Áustria (que era uma federação de províncias em sua maioria agrícolas, em que prevalecia a pequena propriedade de um campesinato hostil à classe operária e pronto a enfrentar uma guerra civil caso fosse estabelecida uma ditadura do proletariado); o outro, de política exterior, constituído pela subalternidade econômica e estratégico-militar da Áustria alemã às potências da Entente (as quais teriam certamente reagido à transformação revolucionária da Áustria em uma República soviética com uma intervenção militar que afetaria inevitavelmente também o proletariado húngaro)”.4 A solidez dos argumentos apresentados por Bauer a Bela Kun – para justificar a atitude política do SDAPÖ de aversão com respeito à linha política seguida pelo KPÖ – foi confirmada, poucos meses depois, pelo triste desfecho das repúblicas conselhistas da Hungria e da Baviera. A República húngara foi “... derrubada em agosto de 1919 pela ação conjunta do exército romeno e do almirante Horthy que, explorando a raiva antioperária e anticamponesa dos pequenos proprietários de terras, instituiu o ‘terror branco’ da contrarrevolução no interesse dos latifundiários”.5 Quanto à Baviera, sua República “... caiu sob os golpes dos ‘Freikorps’ nacionalistas – nos quais tiveram um papel ativo também as potências da Entente” 6.

Os motivos expostos por Bauer na carta a Bela Kun descreviam com exatidão a situação social da Primeira República Austríaca.7 Com base naquele diagnóstico, os dirigentes

4 MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 41.

5 Ibid, p. 43. 6 Ibid, p. 43. 7

A situação social austríaca apresentava profundas diferenças com respeito àquela húngara. A propósito destas diferenças, com grande propriedade Giacomo Marramao escreve que: “Enquanto a Áustria sofria pela escassez de matérias primas e de produtos agrícolas e consumia alimentos que lhe eram enviados, através da Itália, pelos países da Entente, e especialmente pelos Estados Unidos, a Hungria dispunha de grande abundância de alimentos, sendo dotada de uma economia agrícola baseada no cultivo extensivo de cereais. Além disso, enquanto na Áustria predominava a pequena propriedade camponesa (...), na Hungria havia, ao lado dos proprietários de pequenas fazendas, um grande número de camponeses assalariados que trabalhavam em grandes propriedades: de fato, enquanto na Áustria existia uma nítida divisão (que a social-democracia nunca conseguirá superar) entre conselhos operários e camponeses, na Hungria os camponeses assalariados não apenas estiveram disponíveis para uma aliança com os operários, mas até mesmo os anteciparam, provocando, com a ocupação das terras, a primeira faísca da revolução. Finalmente, enquanto a Áustria era vigiada pelas forças da Entente, a Hungria havia conseguido facilmente (pelo menos num primeiro momento) se desvincular das fracas tropas tchecas, sérvias e romenas, que a ocupavam”.

Aquelas diferenças econômicas e sociais existentes entre a Hungria e a Áustria haviam impregnado características diferentes em suas respectivas social-democracias. A tal propósito, mais uma vez demonstrando grande perícia, Marramao observa que: “Áustria e Hungria, que desde 1867 eram – mesmo dentro da moldura do Império – autônomas na política interior, tinham produzido mesmo antes da revolução regimes distintos: o primeiro, como é notório, mais flexível e aberto (a ponto de conceder, em 1907, o sufrágio universal que fez da

austromarxistas do partido (e especialmente Bauer) argumentaram, em substância, que “... o verdadeiro problema não consistia em tomar o poder, mas em conservá-lo; e que uma Áustria socialista isolada, boicotada pelos camponeses (submetidos à influência clerical-burguesa), estaria condenada à intervenção militar estrangeira e a uma vitória da contrarrevolução, bem como abandonada à fúria do terror branco; o proletariado austríaco, diziam, devia ser defendido desse destino”.8 Naturalmente, o indiscutível valor daqueles argumentos não excluiu toda e qualquer dúvida a seu respeito,9 como também não eliminou a legitimidade de se apontar o valor dos contra-argumentos apresentados na polêmica que a decisão tomada pelo SDAPÖ – de responder negativamente ao pedido comunista de apoiar a realização de uma república dos conselhos na Áustria – suscitou. Entretanto, não há dúvida de que a condição necessária para a explicação daquela decisão sempre foi a indicação, junto com as condições sociais especificamente austríacas, do conjunto de ideias que, em ampla medida, determinaram-na, moldando assim, ao mesmo tempo, também a atitude política do SDAPÖ.10 Função decisiva foi desempenhada, nesse sentido, pela concepção de transição ao socialismo

social-democracia, com 87 deputados em 400 cadeiras, o maior partido no Parlamento); o outro, abertamente autoritário e repressivo. Devido ao sufrágio restrito, os operários húngaros não tinham direito de voto e propunham suas reivindicações através do sindicato, cujas seções coincidiam com aquelas do partido social- democrata. Explica-se, desta forma, por que, enquanto na Áustria a social-democracia pôde desenvolver uma visão política global e rica de articulações, atraindo à sua órbita os intelectuais, na Hungria ela teve um forte caráter operário, que a deixou exposta às influências do sindicalismo revolucionário (emblemático, neste sentido, o caso do ‘socialista de esquerda’ Ervin Szabó, o intelectual de maior destaque do movimento operário húngaro antes da revolução, que exerceu também uma forte influência sobre Lukács). Essas características explicam em boa parte por que a radicalização do movimento operário ocorreu na Hungria de forma totalmente distinta que na Áustria, resultando em um fortalecimento do Partido Comunista que, podendo contar com um líder do perfil de Béla Kun, exerceu uma função de hegemonia, fazendo converter ao modelo soviético a social-democracia (com a qual se juntou em um partido unitário)”. MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le

due guerre. Citado, pp. 41-42.

8 MEHRAV, P. Social-democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, E. J. História do

marxismo, vol 5, (citado), p. 259.

9 De fato, até mesmo um profundo conhecedor do austromarxismo, como Norbert Leser, formulou

suas próprias dúvidas a respeito dos argumentos mobilizados então pela direção do SDAPÖ, nos termos seguintes: “Não era absolutamente certo que as tropas da Entente seriam efetivamente mobilizadas; e que, no caso de uma mobilização, uma parte delas não se recusasse a combater. E tampouco era de se excluir a possibilidade de que as Repúblicas dos Conselhos vizinhas conseguissem garantir os víveres indispensáveis. Mas a vontade de explorar uma possibilidade tão débil e de enfrentar situações tão incertas não podia estar presente; examinando-se bem, ela faltara também antes e faltaria depois, em situações muito menos arriscadas e quando a coerência com as próprias convicções não podia ser facilmente eludida”. Apud MEHRAV, P. Social-

democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, E. J. História do marxismo. Citado, p. 260.

Gostaria de salientar desde já que dissento totalmente da leitura que apresenta Bauer como excessivamente fiel ao marxismo ortodoxo e prisioneiro do dogma da unidade de teoria e práxis, dando muitas vezes interpretação ideológica da realidade social contemporânea (leitura esta proposta por Leser). Ver a tal proposito: LESER, N. Teoria e prassi dell’austromarxismo. Mondo operaio. Edizioni Avanti, 1979, pp. 196- 200.

10 Como destaca justamente Marramao, para explicar a decisão tomada pelo SDAPÖ, é inútil insistir

na tese da “traição” e da “ocasião perdida”, como ainda hoje faz, por exemplo, uma “...tendência historiográfica de derivação trotskista, que se apoia nos estudos de Roman Rosdolski sobre a "situação revolucionária na Áustria" ”. MARRAMAO, G. Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do austromarxismo. In: HOBSBAWM, E. J. História do marxismo. Citado, p. 284.

presente na direção do partido, que se precisou na passagem do Império para os primeiros anos de vida da República.11 O aspecto mais relevante daquela concepção foi o aprofundamento da complexidade, da pluralidade e da multiformidade do processo de transformação revolucionária, que estava claramente presente na carta a Bela Kun supramencionada, onde Bauer explicou ao presidente da República húngara a razão da tática que apoiava dentro do SDAPÖ da seguinte forma: “Eu creio que nós nos encontramos na primeira ou na segunda fase da revolução mundial. Mas eu concebo essa revolução de modo muito menos linear e como algo muito mais difícil, complexo, multiforme e diferenciado, conforme a época e o lugar, do que o faz a maior parte dos amigos mais próximos do senhor: e aqui está a raiz de nossas divergências táticas” 12.