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A social-democracia austríaca e o austromarxismo até a Primeira Guerra Mundial

1.2 O problema das nacionalidades e do Estado habsbúrgico

As atividades teóricas do grupo austromarxista, desempenhadas em função da elaboração de uma política de viés revolucionário para o SDAPÖ, giraram constantemente em torno de dois eixos principais: da explicação das transformações econômicas e sociais do capitalismo e da compreensão das mudanças de dimensão política dos processos sociais. Seus membros foram impelidos a desenvolver uma crítica sistemática da sociedade em que viviam, ancorada na perspectiva marxista, que haviam decidido abraçar e defender, perspectiva esta que lhes apontava como pressuposto para o sucesso da ação política do movimento operário o entendimento teórico dos problemas postos pelo processo histórico e social, como ainda a indicação de soluções políticas de cunho emancipatório aos explorados e oprimidos. No contexto do plurinacional Império dos Habsburgos, no período de anteguerra, uma parte importante de suas pesquisas sociais tomou assim a forma do estudo do problema das crises e da desagregação do Estado habsbúrgico, bem como do concomitante fortalecimento das tensões entre as nacionalidades existentes em seu território. Além disso, desde o início de seus trabalhos teóricos, os austromarxistas atribuíram grande importância à análise da questão das nacionalidades ao desempenhar o papel de agentes intelectuais do nacionalmente heterogêneo SDAPÖ. Naquela função, logo perceberam as dificuldades acarretadas à luta de classes pelo fato que as identidades nacionais se sobrepunham aos problemas sociais nas mentes das pessoas, chegando muitas vezes a encobri-los e escondê-los. Portanto, até a eclosão da

18

O. BAUER, Austromarxismus, in: Arbeiter-Zeitung, 1927. Apud MARRAMAO, G.

Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 12. Aqui, Marramao destaca com

propriedade que, neste mesmo artigo, Bauer lembra que, no mesmo período, também alguns dentre os social- democratas começaram “a usar o termo austromarxismo para indicar aquelas concepções teóricas acerca das grandes controvérsias do socialismo internacional pós-bélico que, desenvolvidas paulatinamente dentro da social-democraciaaustríaca, encontraram sua síntese e formulação plena no Programa de Linz”.

Primeira Guerra Mundial, o complexo problema das nacionalidades e da unidade do Estado habsbúrgico foi um dos temas mais importantes da reflexão da escola marxista de Viena.

Em 3 de outubro de 1918, o SDAPÖ decidiu abraçar a teoria wilsoniana da autodeterminação dos povos, mudando assim subitamente sua política anterior sobre o problema da unidade do Estado e das nacionalidades. A partir do Congresso de Brunn, de 1899, o partido tinha defendido a manutenção da estrutura plurinacional do Estado Habsbúrgico e reconhecido o problema das nacionalidades como uma questão essencialmente cultural e linguística, que a substituição das velhas províncias imperiais por uma administração autônoma para cada nacionalidade presente nos territórios habsbúrgicos teria solucionado satisfatoriamente. A linha política reformista, seguida tradicionalmente pelo SDAPÖ desde 1899, se havia articulado com a concordância política que antes da guerra havia caracterizado o grupo austromarxista também a propósito da questão das nacionalidades e do Estado, sobre a qual se debruçaram principalmente Renner e Bauer. De fato, Bauer sustentou, com Renner, a oportunidade de preservar o caráter plurinacional do Estado habsbúrgico, que ambos viam como uma das condições necessárias da eficácia da ação política transformadora do partido.19 Bauer havia, outrossim, compartilhado a convicção renneriana da necessidade e da viabilidade de uma reforma institucional que possibilitasse a permanência das nacionalidades no quadro do Estado habsbúrgico.20 E, na opinião de Renner, as instituições políticas imperiais deveriam ser remodeladas segundo um padrão democrático- federalista; em suas obras Staat und Nation (1899) e Der Kampf der österreichischen Nationen um den Staat (1902), ele propôs “... que a Áustria fosse transformada em um Estado federal e democrático composto por diversas nações, dentro do qual cada cidadão residente no território da monarquia pudesse apelar a uma nação. Às nações dever-se-ia reconhecer a personalidade jurídica. O Estado federal deveria limitar-se à tutela dos interesses comuns, concedendo o maior espaço possível à autonomia nacional” 21.

Por trás das soluções políticas convergentes propostas para o problema da unidade do Estado e das nacionalidades, desde o início Bauer e Renner lidaram com questão de formas bastante diferentes. “Enquanto Renner era profundamente ligado ao ambiente em que

19 Bauer e Renner consideravam que o SDAPÖ teria sido condenado ao papel de partido provinciano

de um pequeno Estado, caso a monarquia dos Habsburgos tivesse ruído. E temiam ainda que o desabamento da monarquia implicasse também uma dissolução do Estado plurinacional em seus elementos nacionais, reduzindo a Áustria alemã a um pequeno país caracterizado por autonomia política, e sobretudo econômica, reduzidas.

20 A tese da transformabilidade do Império austro-húngaro em um “Estado federal de nações

autônomas” foi sustentada por Bauer em Geschichte Österreichs, Wien, 1913, p. 48. Apud MARRAMAO, G.

Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 26.

desenvolvia sua ação política, tanto que se recusou até o fim a reconhecer o desabamento da velha Áustria – ainda em 1916 publicou Österreichs Erneuerung, uma obra que resumia suas propostas de reforma, e até 1918 Der Kampf polemizou contra as posições de esquerda a propósito da questão das nacionalidades – Otto Bauer, pelo contrário, tinha uma atitude fria e destacada em relação ao Império habsbúrgico, que ele aceitava apenas como imprescindível ponto de partida, mas seguramente não como meta ideal”.22 Seus modos discordantes de tratar o candente problema das nacionalidades e do Estado revelavam uma acentuada e crescente divergência em suas respectivas abordagens e entendimentos teóricos daquelas questões. De fato, a teoria baueriana – exposta em seu livro sobre a questão das nacionalidades de 190723 – a propósito da nação como “comunidade de destino” (ou seja, como conjunto de aspectos culturais que caracterizam e unem os membros de um grupo nacional, ao mesmo tempo em que os diferenciam e separam dos componentes dos demais grupos sociais e nacionais, e cuja formação e dinâmica históricas deviam ser mantidas teoricamente separadas daquelas do Estado24) havia se distanciado substancialmente da visão de Renner, “... que fazia da nação, entendida como sujeito jurídico, uma componente em tudo e por tudo orgânica à constituição pluralista do Estado” 25. E se Renner, a partir de um ponto de vista predominantemente sociológico-jurídico, “... através da crítica ao que ele chamava de 'concepção atomístico- centralista'”, chegara a uma ideia organicista de Estado como unidade dinâmica do pluralismo das nações, Bauer optara por uma abordagem genética, que o levara a relacionar o fenômeno da nação com o caráter complexo das lutas de classe que atravessam o “desenvolvimento da formação social” 26, bem como a atribuir grande valor político ao “despertar das nações sem história” 27, que considerava justamente como um dos mais importantes fenômenos concomitantes da transformação social da época.

A discrepância crescente nos percursos teóricos de Renner e Bauer acerca da questão do Estado e das nacionalidades havia refletido também na sua distinta interpretação das transformações sociais que, no começo do século XX, estavam mudando rapidamente a realidade em que viviam. Em sintonia com a linha de análise que, três anos mais tarde, levaria Hilferding a publicar O capital financeiro, Bauer, já em 1907, havia observado que a

22 LESER, N. Teoria e prassi dell’austromarxismo. Citado, p. 08.

23 O. BAUER, Die Nationalitätenfrage und die Sozialdemokratie, Marx-Studien, II, Wien, 1907.

24 Para uma apresentação exaustiva das ideias de Bauer sobre o caráter nacional ver: O. BAUER, A

Nação. In: BALAKRISHNAN, GOPAL (org.). Um Mapa da Questão Nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, pp. 45-69.

25 MARRAMAO, G. Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do

austromarxismo. Citado, p. 301.

26

Ibid, p. 301.

passagem para a nova fase do capitalismo – caracterizada por um rápido crescimento dos carteis, dos trustes e dos grandes bancos – relacionava-se com uma inflexão na trajetória seguida pelo desenvolvimento do princípio de nacionalidade, o qual, abandonado pela burguesia ao alcançar o poder social, tornava-se, sob a forma de luta pela inclusão na cultura nacional e pela alteração do “caráter nacional”, um dos objetivos principais da ação política de uma classe operária de fisionomia racionalista e revolucionária28. Coerentemente com sua convicção de que o “despertar das nações sem história” era uma das forças revolucionárias cruciais da luta de classes na nova fase do capitalismo, Bauer sustentou, juntamente com Renner, a proposta de uma federação de nações autônomas no seio do Estado habsbúrgico, não como um modelo ideal e um fim, mas sim como uma solução historicamente provisória. Em contraste com a tônica do discurso baueriano, Renner havia evidenciado o tema do Estado como fator unificante e como lugar de coexistência harmoniosa das diversas nacionalidades, recusando firmemente, ao mesmo tempo, a interpretação do nacionalismo que ameaçava a monarquia habsbúrgica como um elemento de progresso histórico.29 Esses temas se entrelaçavam, em Renner, com uma leitura das transformações do período bélico segundo a qual a guerra produzia e acelerava importantes modificações na estrutura e nas funções do Estado que, em sua opinião, estava se tornando uma esfera de gestão da sociedade cada vez mais isolada e autônoma em relação aos interesses particulares de classe. De fato, em Marxismo, guerra e internacional, em 1917, ele havia afirmado que, “embora a sociedade sirva, em seu conjunto, aos interesses da classe capitalista, sua organização geral, a saber, o Estado, assume cada vez mais tarefas de administração social” 30. Na mesma obra, ao observar um crescente antagonismo entre a economia (que continuava a servir aos interesses dos capitalistas) e o Estado (que servia de modo cada vez mais predominante ao proletariado), ele havia descrito claramente sua visão da forma específica que a luta de classes estava assumindo na época do capitalismo organizado, antecipando assim uma interpretação das mudanças sociais que teria sucessivamente defendido ao longo dos anos 20.

No que diz respeito ao problema das nacionalidades e da unidade do Estado, os cruciais fatos do período bélico quebraram a homogeneidade política do grupo

28 A propósito desta inflexão na trajetória seguida, segundo Bauer, pelo desenvolvimento do princípio

de nacionalidade ver: O. BAUER, A Nação. Em: BALAKRISHNAN, GOPAL (org.). Um Mapa da Questão

Nacional. Citado, pp. 69-83.

29 K. RENNER, Die Nation als Rechtidee und die Internationale, Wien, 1914, p. 10-12. Apud

MARRAMAO, G. Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do

austromarxismo. Citado, p. 303.

30

K. RENNER, Marxismus, Krieg und Internationale, Viena, 1917, p. 27. Apud MARRAMAO, G.

austromarxista, levando Bauer a se distanciar da solução proposta por Renner, que continuou a confiar na praticabilidade de uma reforma de cunho democrático e federalista das instituições políticas plurinacionais do Império até sua queda. Após a Revolução de outubro e, concomitantemente, com a onda de greves que, em janeiro de 1918, pedia a cessação imediata da guerra, Bauer, em Os pressupostos da Internacional31, começou a defender a política de reivindicação do direito à autodeterminação das nações, defendida também por Lenin. Naquele mesmo artigo, Bauer sustentou que a proposta renneriana, de autonomia regional dentro do Estado plurinacional, manifestava uma “concepção reformista da luta de classes” que “cindiu tanto a internacional mundial quanto o partido em seu conjunto”.32 A dura crítica assim levantada por Bauer à política de apoio às belicosas classes dominantes, à qual havia aderido o SDAPÖ durante a guerra, e seu ataque às soluções políticas tradicionalmente propostas por Renner para o problema do Estado e das nacionalidades, significaram o fim da convergência dos expoentes do grupo austromarxista sobre tais questões. Isto também constituiu fato político de crucial importância. Com efeito, quando, em 12 de novembro de 1918, foi proclamada a primeira República austríaca, o SDAPÖ já havia mudado sua política anterior sobre as questões do Estado e das nacionalidades, alinhando-se com a política wilsoniana do direito à autodeterminação dos povos e refletindo a posição teórica à qual seu novo líder, Bauer chegara, trilhando com coerência a linha de análise já traçada no período anteguerra.

1.3 O desenvolvimento do capitalismo e o problema da definição da política do