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O austromarxismo entre teoria e práxis

4.2 A política exterior

Para compreender adequadamente a iniciativa política austromarxista, é preciso ainda articular o contexto acima traçado com a simultânea trajetória da Internacional de Viena.25 Devido ao fracasso quase simultâneo do plano de socialização e do projeto de anexação da Áustria à Alemanha – que, juntos, haviam constituído o núcleo do programa político do SDAPÖ na conjuntura dos anos 1919-1920 – os dirigentes austromarxistas foram impelidos a tentar uma ação política internacional. Ademais, o esforço da direção austromarxista para a formação da Internacional de Viena deveu-se à ênfase da pluralidade e

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MEHRAV, P. Social-democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, ERIC. História do

marxismo, vol V. Citado, p. 163.

24 MEHRAV, P. Social-democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, ERIC. História do

marxismo, vol V. Citado, p. 263.

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A internacional de Viena é conhecida também como “Internacional dois e meio”, segundo a designação irônica que lhe foi conferida à época por Karl Radek.

do polimorfismo dos caminhos para o socialismo em seu discurso, o qual destacava a necessidade de integrar diferentes táticas nacionais como condição necessária para o sucesso do processo revolucionário em nível europeu. Sobre esta dúplice base, nasceu, em fevereiro de 1921, por iniciativa de Friedrich Adler, a União dos partidos socialistas para a ação internacional. Mais conhecida como Internacional de Viena, a União dos partidos socialistas para a ação internacional teve como seu principal objetivo a reconstrução da unidade do proletariado revolucionário, então dividido entre a recém-nascida Terceira Internacional e a ressurgida Segunda Internacional26.

A Internacional de Viena conseguiu reunir em Berlim, em abril de 1922, a Conferência das três Internacionais, da qual participaram representantes de todos os partidos do movimento operário. Apesar desse notável sucesso inicial, “Os resultados da Conferência de Berlim foram, como se sabe, assaz escassos, e a ‘Comissão dos nove’, que deveria ter organizado um grande congresso mundial dos trabalhadores, se dissolveu em decorrência da retirada dos representantes da IC” (Internacional Comunista).27 A principal responsabilidade pelo fracasso da iniciativa política unitária dirigida por Friedrich Adler, porém, não foi dos comunistas. De fato, foram os três representantes da Segunda Internacional que, na “Comissão dos nove”, se declararam contra a convocação do congresso mundial dos trabalhadores, convocação que, segundo deliberação da Conferência de Berlim, deveria ocorrer o quanto antes e sem qualquer condição restritiva. Diante desse boicote, a Internacional de Viena perdeu sua capacidade de ação política e, já em 1923, no congresso de Hamburgo, acabou por confluir na Internacional Operária Socialista (IOS).

Em contraste certa indiferença manifestada nos primeiros anos 20 pela social- democracia alemã à tese da pluralidade e multiformidade do processo revolucionário, os comunistas e os austromarxistas convergiam na afirmação da necessidade de reunir todos os diferentes segmentos do proletariado revolucionário. A argumentação de Lenin – que, após

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Vale a pena lembrar aqui que a divisão do movimento operário, que caracterizou politicamente boa parte do século XX, iniciou-se durante a Primeira Guerra Mundial. Em contraste com as várias declarações de cunho pacifista e internacionalista feitas durante os congressos da Internacional Socialista antes de 1914, ao eclodir a Primeira guerra mundial os partidos social-democratas haviam optado por uma política de apoio à guerra e à atitude belicosa dos respectivos governos. Durante as Conferências de Zimmerwald e de Kienthal, respectivamente de setembro de 1915 e de abril-maio de 1916, havia-se desenvolvido no interior da social- democracia uma oposição de esquerda à política socialpatriota que então predominava na direção dos diferentes partidos. Embora permanecendo unida em torno de princípios pacifistas e internacionalistas, no seio da oposição de esquerda logo se havia separado uma tendência autônoma, formada principalmente por bolcheviques, que havia terminado por desempenhar um papel preponderante no interior do movimento de Zimmerwald. Surgindo daquela tendência, em março de 1919, em Moscou, nasceu a Terceira Internacional, conhecida também como Internacional Comunista. Os partidos social-democratas, ao contrário, no mesmo ano se reuniram em Berna e deliberaram continuar a Segunda Internacional.

ter-se tornado predominante no interior da Internacional Comunista ao Terceiro Congresso (de junho-julho de 1921), resultou nas Teses sobre a Frente Única (de 18 dezembro de 1921) – manifestava a adesão do autor à mesma tática internacionalista então proposta pelos austromarxistas.28 A tática relacionada com a posição de Lênin, que se apoiava na esperança da revolução mundial, definiu o programa da Internacional Comunista até o V Congresso de junho-julho de 1924. Daí em diante, a tática da unidade de ação de todos os partidos revolucionários foi abandonada completamente. A nova estratégia de conflito com os partidos socialistas, que se afirmou na Internacional Comunista – cujo pano de fundo era a vitória de Stalin no sistema de poder soviético e o abandono, em favor do desenvolvimento econômico da União Soviética, da luta revolucionária – alcançou seu clímax em 1929, com a célebre tese que definia a social-democracia como “social-fascismo”. Essa nova posição comunista foi abandonada somente em 1935, durante o VII Congresso da Internacional Comunista, quando a posição original foi parcialmente retomada, embora então num novo contexto, caracterizado pela ameaça dos inimigos comuns: nazista e fascista.

Apesar da convergência sobre a Frente Única e a unidade de ação, durante os primeiros anos 20, comunistas e austromarxistas se distanciavam quanto à análise da conjuntura e à sua abordagem teórica. Por trás da proposta da Frente Única, lançada pela Internacional Comunista, estava uma abordagem teórica excessivamente economicista da realidade social, compartilhada, entretanto, até mesmo por seus teóricos mais inteligentes, como Karl Radek.29 Nas teses sobre a tática aprovadas pelo IV Congresso da IC, em 5 de dezembro de 1922, a política da Frente Única se relacionava com uma análise fundamentalmente errada,30 que mostrava um iminente e marcado declínio do capitalismo. Segundo essa análise, o capitalismo não era mais capaz de assegurar nem sequer as mais elementares condições de vida à classe operária. Os conflitos de classe se teriam exacerbado a curto prazo, razão pela qual a classe operária devia abandonar logo a luta pelos interesses imediatos e se organizar para a luta contra o aparelho de coerção e de domínio da burguesia.

28 A propósito da posição então defendida por Lenin confronta MARRAMAO, G. Austromarxismo e

socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, pp. 61-62.

29 Como destaca Marramao, o livro Theorie und Praxis der 2 1/2 Internationale, publicado por Radek

em 1921, é um excelente exemplo do erro na análise da conjuntura feita pela Internacional Comunista. No livro, o autor sustentava a previsão, errada, de um rápido declínio do capitalismo. Segundo ele, os conflitos de classe teriam piorado a curto prazo. A classe operária devia abandonar a luta pelos interesses imediatos e se organizar para o choque final. Os dirigentes austromarxistas estavam errados, uma vez que sua opção não era aquela de uma propaganda centrada no conceito de inevitabilidade da luta revolucionária. A propósito dos detalhes da polêmica que Radek conduziu contra a Internacional de Viena, que não me parece essencial apresentar aqui, ver MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, pp. 63-65.

30 Digo que a análise comunista estava fundamentalmente errada pois suas previsões quanto a um

recrudescimento dos processos revolucionários, relacionado a um rápido declínio do capitalismo, foram amplamente desmentidas.

Assim, a fórmula da Frente Única, que considerava a possibilidade de formar governos com a participação de comunistas, de socialistas e de outros grupos de esquerda, era concebida apenas como solução provisória e passageira. A Frente Única deveria preparar o advento de um governo operário, composto unicamente por comunistas, que teria magicamente resolvido qualquer problema político futuro.

A análise austromarxista da conjuntura se baseava em um enfoque completamente diferente da comunista e chegava a conclusões distintas. Para os austromarxistas, a conjuntura se caracterizava pela forte expansão econômica, no contexto de uma sociedade capitalista globalmente estável e cada vez mais complexa. Tal expansão não era o resultado do desenvolvimento linear e mecânico do capitalismo, mas sim de uma reorganização política das classes dominantes, que estavam conseguindo retomar sua posição de poder, seriamente ameaçada durante o primeiro pós-guerra. As inovações teóricas austromarxistas, exatamente ao enfatizar a dimensão política dos processos sociais, colocavam suas análises em um plano qualitativamente superior àquelas fornecidas pelos comunistas.

A capacidade teórica austromarxista de compreender corretamente as tendências no capitalismo da época se traduziu, internacionalmente, em sua crescente influência no movimento operário europeu. Após o fracasso da Internacional de Viena (21 de maio de 1923) e sua sucessiva adesão à Internacional social-democrata, a direção austromarxista do SDAPÖ passou a exercer notável peso na Internacional operária Socialista. Dentre os dirigentes austromarxistas, a influência maior foi exercida por Bauer e por Friedrich Adler, “... o qual, após um breve duunvirato com o inglês Tom Shaw, tornou-se até mesmo seu secretário geral” 31.

A intensa iniciativa política supramencionada32 coincidiu com uma ampla reflexão dos austromarxistas sobre o problema da relação Estado-democracia, numa perspectiva revolucionária válida para os países da Europa central e ocidental. Essa reflexão – parte do debate austromarxista dos anos 20 – resultou em aquisições muito significativas para a teoria política. É principalmente para esse debate, pois, que orientarei minha atenção no próximo capítulo.

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MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 65.

32 Os exemplos citados nesse capítulo para ilustrar as ações políticas empreendidas pela direção

austromarxista parecem-me suficientes para demonstrar que um dos traços mais característicos do austromarxismo foi a tentativa de alcançar seus objetivos políticos através de iniciativas realizadas constantemente, inclusive em níveis distintos e em modalidades diferentes. Nesse ponto, portanto, não concordo com Mehrav, que considera como “...uma sua tendência constitutiva” (...) “o chamado "expectativismo", que levava a adiar permanentemente as grandes decisões,” (...) “numa expectativa mistificadora de tempos melhores, de um afrouxamento da pressão reacionária internacional e de uma atenuação da absoluta dependência econômica em relação ao Ocidente capitalista”. Cfr. MEHRAV, P. Social-democracia e austromarxismo. In: HOBSBAWM, ERIC. História do marxismo, vol 5. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985, p. 262.

Capítulo 5