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Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do austromarxismo Citado, p 302.

A social-democracia austríaca e o austromarxismo até a Primeira Guerra Mundial

G. Entre bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do austromarxismo Citado, p 302.

constatação, pelos revisionistas, da crescente discrepância entre as previsões sobre o desenvolvimento do capitalismo feitas pelo marxismo segundo internacionalista e a efetiva dinâmica do processo capitalista – dinâmica esta inesperadamente afetada também pela presença e pela ação cada vez mais importante do movimento operário organizado – o grupo austromarxista se organizou como escola de pesquisa social, com o objetivo de elaborar uma estratégia para o movimento operário ajustada ao contexto em que operava, e engajou-se na renovação e revitalização do marxismo para que tal estratégia tivesse um viés revolucionário, ou seja, para que o marxismo fosse mantido como rumo teórico do movimento operário. Antes da guerra, um dos momentos mais significativos da manifestação dessa atitude cultural dos jovens intelectuais austromarxistas foi o debate entre Bauer e Kautsky, em 1909, a propósito do nexo entre realidade social, teoria e estratégia para a conquista do poder pelo proletariado. Tal debate sinalizou claramente a existência, entre os austromarxistas, de uma visão própria, ainda que embrionária, da transição ao socialismo, parcialmente distinta daquela predominante no marxismo segundo internacionalista.

Nas páginas do célebre opúsculo “O Caminho para o poder” 33, de 1909, Kautsky havia substancialmente desaprovado a tática da participação imediata em governos de coalizão com os partidos burgueses próximos ao proletariado. Seus juízos sobre a opção política do movimento operário eram fundados no pressuposto de que o desenvolvimento linear do modo de produção capitalista teria, por si próprio, produzido a bipolarização da sociedade e, concomitantemente, o empobrecimento progressivo da classe operária, que logo se tornaria maioria na sociedade; em outras palavras, Kautsky acreditava na previsão de que o antagonismo entre burguesia e proletariado estava prestes a se agravar.34 Partindo desse esquema teórico, ele apoiou a estratégia da ditadura do proletariado que, em um futuro próximo, poderia ser exercida através da maioria absoluta parlamentar pelo partido social- democrata. Segundo ele, a revolução proletária, sob a forma de transição gradual ao socialismo, teria ocorrido nos países de capitalismo avançado, onde o movimento operário estaria maior e mais forte. Na resenha (publicada na revista Der Kampf 35) ao opúsculo kautskiano, Bauer, mesmo acolhendo a solução política e a perspectiva gradualista propostas

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K. KAUTSKY, Der Weg zur Macht, Berlim, 1909.

34 A tal propósito Kaustsky escreve que: “À medida que avança, de maneira necessária e incontida, a

expansão contínua do modo de produção capitalista, torna-se cada vez mais inevitável e incontida a oposição decisiva a esta expansão: a revolução proletária”. K. KAUTSKY, Der Weg zur Macht, Berlim 1909. Apud, MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 44).

por Kautsky, contestou duramente o valor de suas suposições teóricas.36 Para ele, a conjectura kautskiana, segundo a qual o desenvolvimento linear da concentração e da centralização capitalistas teria conduzido necessária e inevitavelmente à revolução proletária, estava fundamentalmente errada. Para além das habituais e corteses afirmações de substancial acordo, em suma, Bauer rejeitou o núcleo doutrinário da reflexão política kautskiana.

Ao apreciar criticamente o opúsculo “O Caminho para o poder”, ao mesmo tempo em que descartava sua base doutrinária, Bauer analisou o desenvolvimento do capitalismo, apontando que sua dinâmica se caracterizava por transformações sociais profundas. “Na época passada do capitalismo individual, (escrevia Bauer), cada empresário estava submetido às leis da concorrência, que operavam como potências naturais que escapavam ao controle, não somente do indivíduo ou de uma organização, mas do próprio Estado; eram leis que atuavam, parafraseando Engels, 'sem que os interessados o soubessem'. Sem dúvida estas leis são ainda operantes, já que toda mudança conjuntural mostra às organizações capitalistas as barreiras insuperáveis de seu poder. Hoje, porém, o ditame das leis da vida econômica capitalista deve passar pela cabeça dos homens, deve ser discutido e decidido por suas organizações. Todo acontecimento se torna, assim, um ato consciente das organizações. Também o Estado está hoje se transformando em uma organização deste tipo. O liberalismo de Manchester morreu. Todas as organizações econômicas tentam colocar o Estado a seu serviço: não pedem mais que esse se limite a proteger a propriedade, mas querem que intervenha diretamente na vida econômica”.37 Para Bauer, as transformações sociais, sob o impulso da acelerada cartelização e trustificação da economia, estavam consolidando uma nova fase do capitalismo, cuja fisionomia era nitidamente distinta da anterior. Na nova fase histórica, a pauperização dos trabalhadores, intrínseca à economia capitalista, era modificada pela luta de classes do movimento operário organizado, e a propensão capitalista à divisão nítida da sociedade entre burguesia e proletariado era limitada também pela crescente ação do Estado, que tornava a estratificação social cada vez mais complexa. Portanto, a probabilidade de um iminente colapso do capitalismo era reduzida. E a possibilidade de uma espontânea transição ao socialismo era remota.

36 A tal propósito, em seu artigo, Bauer observou que: “Precisamente porque consideramos justo o

resultado a que chega a investigação kautskiana sobre o 'caminho para o poder', parece-nos extremamente perigoso apoiar sua demonstração em premissas erradas ou bastante precárias. Não cremos que o proletariado se torne maduro para travar a luta decisiva pelo poder somente quando não mais puder conquistar nenhum sucesso sob o domínio burguês. Ao contrário!”. O. BAUER, Der Weg zur Macht, citado, p. 340. Apud MARRAMAO, G.

Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 45.

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O. BAUER, Der Weg zur Macht. Apud MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di

O distanciamento entre a análise do desenvolvimento capitalista feita por Bauer e a interpretação kautskiana do mesmo fenômeno levou o jovem estudioso austromarxista a afirmar a exigência de uma renovação da estratégia endógena do movimento operário. Para Bauer, na nova fase do capitalismo, a tática baseada principalmente na agitação propagandística do objetivo final do socialismo tornara-se obsoleta e ineficiente, já que não mais existia uma massa proletarizada e empobrecida para ser mobilizada por essa propaganda, ao contrário do que sustentava Kautsky. Não bastavam mais, à espera do momento da revolução proletária, a propaganda do futuro socialista e a concomitante difusão de um saber de cunho enciclopedista entre os trabalhadores: a luta de classes exigia agora a militância, nas fileiras da socialdemocracia, de intelectuais comprometidos com uma teoria de fisionomia científica e não doutrinária. Em 1910, no opúsculo “O socialismo e os intelectuais” 38, Max Adler sublinharia a importância decisiva da função desempenhada pelos intelectuais enquanto portadores de ciência na construção do socialismo, superando assim a abordagem economicista kautskiana que tendia a solucionar o problema da consciência científica do movimento operário com a tese da inexorável proletarização da camada intelectual. Naqueles mesmos anos, portanto, os trabalhos de Adler seguiam na direção tomada por Bauer em sua reflexão sobre o problema do ajustamento das ferramentas de luta do movimento operário à nova forma da realidade social.

Na nova fase do capitalismo, caracterizada pela preponderância das grandes organizações em todas as esferas da sociedade, o engajamento dos intelectuais social- democratas no movimento operário havia-se tornado, para os austromarxistas, um fator decisivo na luta de classes. Em contraste com a opinião kautskiana – segundo a qual era “inevitável que a classe operária desenvolvesse sua própria organização sindical e política (...) tivesse ou não uma ideologia socialista” 39 – Bauer considerava que a passagem do descontentamento social (crescente nos momentos de agravamento da crise da economia capitalista) à ação coletiva organizada exigia a mediação dos intelectuais. Sem a intervenção deles na luta de classes, a consciência socialista não se teria difundido entre os trabalhadores, prejudicando assim o desenvolvimento das organizações operárias e, consequentemente, piorando a situação do equilíbrio das forças de classe40, posto que a classe capitalista já

38 M. ADLER, Der Sozialismus und die Intellektuellen, Viena, 1910. Apud MARRAMAO, G. Entre

bolchevismo e social-democracia: Otto Bauer e a cultura política do austromarxismo. Citado, p. 297.

39 K. KAUTSKY, Der Weg zur Macht, Berlim 1909. Apud, MARRAMAO, G. Austromarxismo e

socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 47.

40 Já no livro 'A questão das nacionalidades e a Socialdemocracia' – em que havia apresentado os

importantes resultados de suas pesquisas acerca da nação – Bauer discutiu também o tema da definição da política do movimento operário em vista da emancipação dos trabalhadores, chegando, assim, a conclusões que

desfrutava amplamente da intervenção de outros intelectuais em seu favor. Diante da constatação de que seria um equívoco esperar que o desenvolvimento do capitalismo tivesse produzido espontaneamente uma identidade socialista dentre os trabalhadores, o papel político dos intelectuais social-democratas já não podia ser somente, como sustentava Kautsky, o de “coordenar todas as diferentes reações do proletariado contra sua própria exploração”;41 mas deveria ser o de explicar aos trabalhadores a nova forma das instituições sociais em que viviam, de dar ciência à classe operária “da nova interdependência entre economia e política”

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que estava rapidamente se delineando. Destarte, a política do movimento operário responderia ao salto de qualidade que a dominação burguesa estava dando na nova fase do capitalismo.

Já antes da guerra, portanto, a pesquisa baueriana – alvo da crítica de Kautsky acima reportada – havia apontado a importância do estudo das mudanças que transformavam a relação existente entre as esferas política e econômica da sociedade na passagem do capitalismo individual para a nova fase monopolista do capitalismo. Assim, enquanto a reflexão kautskiana se mantivera no campo do determinismo econômico e da linearidade dos processos sociais, Bauer, em sua análise, começava a chamar a atenção para o caráter globalmente social da dinâmica do capitalismo e para suas transformações. Apesar dessa importante abertura em seu enfoque analítico, Bauer, até a eclosão da guerra, havia concentrado sua atenção apenas na função econômica da intervenção estatal, enquanto seus aspectos políticos permaneciam ocultos. Somente quando participaram do governo do Estado austríaco, durante os primeiros anos do pós-guerra, Bauer e Adler perceberam a questão da autonomia relativa do Estado em relação à dinâmica das classes sociais, pois se depararam com uma série de resistências inesperadas, provindas do interior do aparelho do Estadoe da política internacional. De fato, foi o fracasso da tentativa de implementação, durante o governo de coalizão, dos dois pontos cruciais do programa político do SDAPÖ (a saber: o plano de socialização e o projeto de anexação da Áustria à Alemanha) que levou os

viria a repropor várias vezes ao longo de sua obra. Para ele, na construção do socialismo, a função sócio- pedagógica desempenhada pela social-democracia era imprescindível. Bauer explicitou esse crucial e constante aspecto de seu pensamento político escrevendo que: “Em primeiro lugar, deve-se despertar as energias adormecidas no proletariado, incentivando-o a adquirir uma consciência de classe que dê forma ao nebuloso rancor das massas trabalhadoras e ao seu instinto revolucionário, educando-as para uma luta conciente de seus próprios objetivos, baseada em uma clara compreensão da natureza dos antagonismos de classe. Só assim a massa confusa do proletariado se transformará em uma força compacta, animada por uma clara vontade política...”. Apud LESER, N. Teoria e prassi dell’austromarxismo. Citado, p.146.

41 K. KAUTSKY, Der Weg zur Macht, Berlim 1909, apud MARRAMAO, G. Austromarxismo e

socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, pp. 47-48.

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O. BAUER, Der Weg zur Macht. Apud MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di

austromarxistas a aprofundar o estudo da forma política da sociedade e, assim, incluir a noção de autonomia relativa do Estado em sua análise, nos primeiros anos 20. Os resultados deste estudo aos quais chegaram Bauer e Adler – então dirigentes do SDAPÖ – tiveram como efeito a saída do partido do governo do Estado federal e sua dedicação à administração exemplar da municipalidade de Viena que foi, nas palavras de Karl Polanyi, “um dos mais espetaculares triunfos culturais da história ocidental”, bem como, por outro lado, a criação, em 1923, da Republikanischer Schutzbund: uma organização paramilitar dos operários social-democratas que, dirigida por Julius Deutsch, contava com um contingente de 120.000 – 150.000 homens armados.

Quanto ao nexo entre realidade social, teoria e tática do movimento operário, é mister salientar desde já que, durante os anos 20, Kautsky continuou a afirmar o mesmo rígido embasamento teórico que havia usado no opúsculo “O Caminho para o poder”, porém modificando completamente a opção política que havia proposto durante o período de anteguerra. Em 1922, ao mesmo tempo em que deixou de apoiar o princípio da ditadura do proletariado, ele começou a sustentar explicitamente a tese do governo de coalizão como forma política própria da fase de transição, não obstante em 1909 tivesse criticado esta opção ao defini-la como uma manifestação de utopismo revisionista.43 Como ele mesmo precisaria um ano depois, em sintonia com sua visão mecanicista e economicista do desenvolvimento capitalista: “é o incessante fortalecimento do proletariado que serve de fundamento à inevitabilidade da etapa de um governo de coalizão, que cedo ou tarde deve se converter numa realidade em todos os países com uma indústria capitalista”.44 Apesar de manifestar notável coerência teórica, a reflexão política kautskiana se manteve, portanto, fundamentalmente doutrinária, fiel a um marxismo dogmático e incapaz de compreender as grandes mudanças que estavam então transformando o capitalismo.

Naqueles mesmos anos, a reflexão política baueriana continuou divergindo das posições expressas por Kautsky à medida que, coerente com a atitude que havia caracterizado

43 A tal propósito, Kautsky escreveu que: “Em seu célebre Zur Kritik des sozialdemokratischen

Parteiprogramms, Marx escreve: 'Entre a sociedade capitalista e a comunista, está o período de transformação revolucionária de uma para a outra. E lhe corresponde igualmente um período de transição política, cujo Estado já não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado'. Baseando-se nas experiências dos últimos anos, podemos mudar esta frase no que concerne ao governo e dizer: Entre a época do Estado meramente burguês e a do Estado democrático regido com uma base meramente proletária, está um período de transição política, cujo governo estará dado normalmente sob a forma de um governo de coalizão”. K. KAUTSKY, Die Proletarische Revolution und ihr Programm, Berlim , 1922. Apud MARRAMAO, G. “Técnica Social”, Estado e transição entre social-democraciaweimariana e austro-marxismo. Em: O político e as transformações– crítica do

capitalismo e ideologias da crise entre os anos 20 e 30. Belo Horizonte: Oficina do livro, 1990, p. 181.

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K. KAUTSKY, Die Marxsche Staatsauffassung, Jena, 1923. Apud MARRAMAO, G. “Técnica Social”, Estado e transição entre social-democraciaweimariana e austromarxismo. Citado, p. 181.

o grupo austromarxista desde os primeiros anos do século, Bauer buscou manter a pesquisa social sistemática como fundamento da definição da política do movimento operário. Esse traço decisivo de sua reflexão política se manifestaria claramente já em 1919, quando, no congresso do SDAPÖ – em polêmica com Friedrich Austerlitz, então redator chefe do Arbeiter Zeitung (cotidiano oficial do partido), “... que havia afirmado que a ditadura do proletariado precisava ser rechaçada por razões morais” – Bauer incitou os camaradas a “... nunca perder de vista a diversidade das circunstâncias históricas e das realidades nacionais em que se encontravam a operar os partidos da classe operária”.45 Essa característica predominante em sua reflexão política o levaria, partindo da observação do caráter não homogêneo e não sincrônico do desenvolvimento capitalista, e também da existência de diferentes tradições políticas nacionais, a afirmar, em polêmica com o bolchevismo e com a tendência predominante na social-democracia alemã, que a revolução proletária ocorreria em tempos e modos distintos nos diversos países capitalistas46.

A relutância, tradicional no austromarxismo, em recusar ou aceitar qualquer solução política a partir de uma apreciação dogmática e abstrata da realidade social, esteve por trás do juízo baueriano acerca da questão do governo de coalizão. De fato, nas discussões relativas à participação do SDAPÖ no governo federal, que ocorreram no seio da social- democracia austríaca, em 1920, Bauer – que naquele mesmo ano sustentaria a saída do partido do governo do Estado – declarou que um partido operário não pode “recusar em linha de princípio o governo de coalizão”.47 Três anos mais tarde, no congresso de Viena do partido, ele afirmaria: “Precisamos parar de discutir a coalizão em geral. (...) Precisamos entender (...) que a coalizão em si não significa nada, mas pode significar, dependendo das circunstâncias, um instrumento da luta de classes (...) ou sua aniquilação (...). Quando o camarada Frühwirth (Michel Frühwirth, dirigente do sindicato dos têxteis) falou – e suas palavras certamente expressam a opinião de muitos operários – que nossos camaradas erraram, em 1920, ao sair da coalizão após as eleições, afirmou algo com o qual não concordo. Continuo, hoje como ontem, convencido de que se tratou de uma ação justa, feita ao momento certo (...). Se

45 Protokoll der Verhandlungen des Sozialdemokratischen Arbeiterpartei Deutschösterreichs, Wien

1919, p. 229. Apud, MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 50.

46 Vale a pena salientar aqui que, abordando o problema da transição ao socialismo deste ponto de

vista, Bauer constatará, não diferentemente de Kautsky, o forte crescimento da força do proletariadoque ocorria em todo o mundo capitalista naqueles anos. Em contraste com a visão fortemente mecanicista e economicista do desenvolvimento do capitalismo, tradicionalmente defendida por Kautsky, porém, Bauer sustentará que o impulso decisivo para o fortalecimento do movimento operário tinha vindo da Guerra mundial e da Revolução de outubro.

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O. BAUER, Die alte und die neue Linke, em Der Kampf, Jg. XIII, 1920, p. 256. Apud MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 50.

tivéssemos permanecido na coalizão, esta não teria mais sido uma coalizão como aquela de 1919, onde nós estávamos fortes, mas sim uma coalizão na qual não teríamos conseguido impor nada, e teríamos apenas tido a honra de sermos corresponsáveis por um governo cristão-social”.48 Portanto, a decisão de Bauer de fazer com que o SDAPÖ abandonasse a coalizão partiu exatamente de sua atenta análise da dinâmica do equilíbrio das forças de classe na Áustria do pós-guerra, análise que, durante aqueles anos, assumiria posição crucial na reflexão política baueriana.

Além da constatação de uma tendencial piora no equilíbrio das forças de classe na Áustria, por trás da rejeição baueriana a dar acolhida a novos governos de coalizão estava também sua observação do caráter do Estado austríaco recém-democratizado, em cuja estrutura contraditória ele enxergava a manifestação das relações capitalistas de domínio. De fato, quando, em 1928, surgiu para o SDAPÖ a oportunidade de participar de um novo governo de coalizão com o partido cristão-social, Bauer, em polêmica com Renner, afirmou: “O poderoso mecanismo de dominação com o qual o capital submete a democracia continua a funcionar mesmo quando no governo estão os social-democratas (...). Claro, da compreensão deste perigo não se deve extrair a conclusão de que a social-democracia nunca deve entrar em um governo de coalizão. Deve-se concluir, porém, que ela pode entrar numa coalizão somente quando está, dentro do governo, forte o bastante para poder agir eficazmente nos interesses da classe operária (...). Se não dissermos à classe operária que na sociedade capitalista todo governo – mesmo um governo de coalizão do qual participam os social-democratas – está sujeito à pressão do mecanismo econômico ideal de dominação do capitalismo, ela participará da eventual coalizão cheia de ilusões e de esperanças. Então a coalizão se concluirá inevitavelmente com uma amarga desilusão das massas.” 49 Conforme se verá a seguir, a constante preocupação com a manutenção da unidade do partido e a ameaça real de uma sua cisão interna levariam Bauer a argumentar, na segunda metade dos anos 20 (mais uma vez em forte polêmica com Renner), contra o retorno do SDAPÖ ao governo de coalizão do qual, em 1920, pelos mesmos motivos, o partido havia sido impelido, pelo próprio Bauer, a sair.

48 Parteitagsprotokoll 1923, p. 198. Apud, MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di

sinistra tra le due guerre. Citado, pp. 50-51.

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O. BAUER, Kapitalherrschaft in der Demokratie, Der Kampf, Jg. XXI, 1928, pp. 343 e 354. Apud, MARRAMAO, G. Austromarxismo e socialismo di sinistra tra le due guerre. Citado, p. 51.