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1 PASSAGENS DE UM ROSTO NA EDUCAÇÃO

1.3 A adolescência: os mesmos processos de ensino

Vestida de azul e branco7 Trazendo um sorriso franco

No rostinho encantador Minha linda normalista Rapidamente conquista Meu coração sem amor Eu que trazia fechado Dentro do peito guardado Meu coração sofredor Estou bastante inclinado A entregá-lo ao cuidado Daquele brotinho em flor

Mas, a normalista linda Não pode casar ainda Só depois que se formar... Eu estou apaixonado O pai da moça é zangado E o remédio é esperar. (GONÇALVES, 1949)

Embalada pela música Normalista de Nelson Gonçalves, ingressei no antigo segundo grau. Lembro que fiz uma espécie de seleção para ser admitida no curso de magistério. Minha mãe e meu pai estimulavam muito minha decisão de ser professora de/para/com crianças. Lancei-me, então, nesse mundo desconhecido: estudar para ser professora. Tínhamos diferentes disciplinas e todas convergiam para ensinar as crianças a brincar, a ler e a fazer contas.

Os meses foram passando e, estimulada pelo desejo de ser professora, estava constituindo-me como uma futura docente de crianças. Aos moldes da música de Nelson Gonçalves, eu poderia expressar com toda a autoridade a imagem de uma menina frágil, alegre e franca. A alegria presente em sala de aula e nos estudos que

7 Música “Normalista”, de Nelson Gonçalves. Meu pai e minha mãe cantavam essa música para mim. Era como um estímulo para seguir adiante em Educação.

fazia nesse período registra um acontecimento que só depois de muitos anos foi consolidado.

Nesse ano de ingresso num mundo novo, em que eu passaria a ser uma aluna-professora, aconteceu algo bem triste. Na noite de dezoito de outubro de 1984, na minha casa, eu vi meu pai dar o último suspiro em vida. Algumas horas antes, eu estava dormindo no quarto da televisão e ele ainda me acordou e pôs-me a dormir na minha cama. Era mais ou menos meia noite. Adormeci. Logo comecei a ouvir alguns gemidos, roncos, sussurros, barulhos e resolvi levantar. Era o meu pai. Cheguei perto da cama. Ainda vi um olhar que tinha vida e ouvi uma rouquidão que tomava conta do quarto. A primeira coisa que pensei foi “o que será que eu fiz? Será que fui teimosa? Ele está olhando com cara de brabo”. Assustei-me com o olhar. Aqueles olhos azuis parados, fixos, perdendo o brilho e a rouquidão e, possivelmente, a dor aumentando naquele frágil corpo. Não tinha o que fazer. O médico chegou e fez uma série de massagens no coração, tentando reanimá-lo. Foi exatamente à uma hora e trinta minutos da madrugada que o médico falou: "Ele está morto, não tenho mais nada para fazer por ele”!

Era uma mistura de raiva e de impotência. Gritos, a culpa e a dor da perda de alguém tão amado, tão querido, alguém que se desfez como num passe de mágica. Era a vida mostrando-se do lado avesso. Gritei como um animal. Minha vida deu outra guinada. Nesse período, aprendi o que é ficar sem chão, sem nada. Foi assim que a morte do meu pai me deixou. Não tive forças suficientes para seguir com os estudos do magistério. Naquele ano, desisti! Junto com a morte de meu pai, a música também morreu, fechou-se, não se colocava mais o toca discos para soar. Fracassei!

No ano seguinte, retornei o curso de magistério. Mas algo havia mudado e eu não gostava mais. Eu não queria mais ser professora de crianças. Eu não gostava mais de ver como as professoras nos ensinavam. As relações eram sempre as mesmas, nada podíamos fazer a não ser obedecer, obedecer e obedecer. O estímulo que recebi de uma professora de Sociologia foi o marco da desistência da carreira de magistério. Ela nos disse:

[...] vocês prestem atenção, criança não é como um blusão de lã, que se você erra o ponto, você pode desmanchar as carreiras até o erro e refazer tudo de novo. Uma vez errando com a criança, vocês terão esse peso para a vida toda, e os que não se sentem capazes de ser um verdadeiro professor, por favor, juntem as suas coisas e podem sair da sala de aula! (MARIA ANTONIA, 1985, Santa Maria)

E foi assim que assumi, naquele instante, o meu fracasso enquanto futura professora de crianças. Fui a única aluna do magistério que aproveitou a fala da professora e fez dela uma ordem dada.

Decidi, então, mudar de escola. Fui para a Escola Estadual de Ensino Médio “Professora Maria Rocha”. Comecei na modalidade “Preparação para o Trabalho”, que chamávamos de “preparação para passar trabalho”, satirizando a nossa previsão de sucesso no segundo grau, que era passar no vestibular.

Poucos conteúdos interessavam à vida. A estratégia de ensino era sempre a mesma: o professor explicava, o aluno fazia de conta que escutava, decorava, fazia de conta que aprendia, fazia a prova e tirava uma nota razoável. Ou, fazia tudo isso e tirava uma nota mínima. Qualquer movimento fora da sala de aula me interessava muito mais do que ficar ouvindo o professor. Continuamos obedientes. Era 1985, ano em que houve uma greve de professores de quase 100 dias, os professores voltaram à sala de aula, mas eu não. Desisti novamente. Estava decepcionada porque nada me chamava atenção. Eu preferia matar aulas, conversar com outras pessoas do que ficar fincada na Escola.

Entre os anos de 1986 e 1988, fiz o curso Técnico em Contabilidade. Interessante pensar nas conexões fracasso/sucesso: na sétima série reprovei em matemática, depois me apaixonei por ela e fui fazer justamente esse curso, que era “pura matemática”. Era a última chance que eu estava me dando. Se não desse certo nesse curso, nem minha mãe e nem eu saberíamos o que fazer. Como o curso era profissionalizante, havia o estímulo de aprender o ofício. Ao término do curso, o aluno poderia optar por ser um profissional da área e atuar em escritórios de contabilidade. Apesar de ser o mesmo processo de ensino-aprendizagem que nos levaria ao vestibular, não havia em mim um único pensamento nesse sentido.

Mesmo gostando de aprender, mas prevendo minha insatisfação com meus colegas do curso diurno que apenas queriam estudar e nada mais, eu resolvi transferir minha matrícula para o período noturno. Assumimos a política estudantil, que discutia a cobrança e o pagamento de alguns valores. Nos reuníamo-nos no pátio da escola para afirmarmos que em escola pública não se pode cobrar taxas. Geralmente a cobrança era do “Círculo de pais e mestres - CPM”, mas nem os pais ou nós mesmos fazíamos parte disso. Discutíamos a importância de uma educação pública gratuita e de qualidade. Tínhamos embates com a direção, com a polícia, com colegas de outras

escolas e até nos associávamos aos colegas da universidade para discutirmos, por exemplo, o aumento da passagem urbana.

Frequentemente nos evadíamos das salas de aula para fazer um chamamento em outras escolas. Assim, nos uníamos. Batíamos panelas em conjunto com os outros colegas. A polícia, em seu exercício de poder, nos colocava no meio, como se fôssemos o “recheio do sanduíche”. A qualquer ordem superior, os policiais estavam prontos para nos bater e nos conter! Isso aconteceu. Muita gente apanhou! Mas seguimos em frente, fomos resistentes.

Sempre, em todos os seguimentos sociais, a relação hierárquica está presente. A hierarquia faz parte da organização social e institucional, ou seja, alguém exercita plenos poderes e outros tantos submetem-se a esses poderes. Ou o exercício do poder, conforme o cargo que ocupam, são de maior ou menor grau. Estes exercícios constituem o ‘norte’ da sociedade e refletem na educação. Destes provem as polaridades ‘certo-errado’, ‘bem-mal’, ‘sucesso-fracasso’. Com isso, o fracasso sempre esteve camuflado nas instituições de ensino, da Educação Básica ao ensino superior. O fracasso, de um lado, está diretamente relacionado a minha pessoa por não ter conseguido cumprir as exigências escolares em um determinado período. O fato de não atingir a média estipulada está diretamente ligado ao como alguns professores que passaram pela minha vida, por meu rosto, ministravam suas aulas. E por outro lado, a rigidez e o pensamento competitivo presentes no interior das instituições de ensino, que não preveem o processo pelo qual o estudante passa se concentrando apenas nos resultados dados pelas melhores notas ou pelas médias mínimas atingidas pelo discente. Sendo assim, o verbete fracasso do dicionário Houaiss é bastante preciso: a ação de fracassar significa insucesso, malogro, desastre, desgraça, estrondo, fiasco, ruído e ruina.