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1 PASSAGENS DE UM ROSTO NA EDUCAÇÃO

1.2 A escola e a rua: outras aprendizagens possíveis

Vocês que fazem parte dessa massa6, Que passa nos projetos, do futuro É duro tanto ter que caminhar E dar muito mais, do que receber. E ter que demonstrar sua coragem À margem do que possa aparecer. E ver que toda essa engrenagem Já sente a ferrugem, lhe comer.

(RAMALHO, 1980)

A entrada dessa pesquisadora no meio escolar é marcada pelo governo militar no Brasil, ano de 1974, último ano do mandato do presidente gaúcho, nascido na cidade de Bagé, General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e início do mandato do também gaúcho, nascido na cidade de Bento Gonçalves, General Ernesto Beckmann Geisel (1974-1979), ambos, presidentes pela "Aliança Renovadora Nacional” (ARENA). Esse período no Brasil é marcado pelo “milagre econômico”, gerador de um aumento significativo no Produto Interno Bruto, na Inflação, e uma maior Concentração de Renda. Esse impulso na economia brasileira também gerou muitas desigualdades sociais.

Era um mundo novo, pois o que sabia essa criança da vida? O que sabia sobre trabalho? Para que e por que tão nova já estava marcada? Por que a lei obrigava o ensino escolar a partir dos sete anos de idade? Por que esse corpo estaria fadado ao confinamento?

Um corpo cuja primeira marca está no braço direito, uma cicatriz da vacina BCG (Bacilo Calmette-Guerin). Saímos da sala de aula em fila e nos encaminharam para uma peça onde deveríamos aguardar a nossa hora de sermos vacinados. Aos seis anos de idade, para que servia essa vacina? O que se passava no pensamento de uma criança em uma semana de chegada à instituição escolar? Quais ações infantis estavam sendo banidas desse universo? O riso? A brincadeira?

Um corpo vivo/morto estava anunciado! Vivo porque ainda conservava o riso, a brincadeira, a alegria, o prazer de estar livre. Morto porque seria um corpo

6Parte da letra da música Admirável Gado Novo (Vida de Gado), de Zé Ramalho (1949-), baseada no livro “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, publicado em 1932. Ramalho grava essa música para seu segundo LP, lançado no início dos anos 80, auge do governo militar brasileiro. Período em que muitos artistas foram perseguidos por este regime político, vigente à época.

parafusado nas carteiras escolares, recebendo a instrução que levaria esse indivíduo ao mercado de trabalho. Um corpo mofado pelo pensamento do “futuro”!

Um corpo em que os seus pensamentos e suas expressões não poderiam mais ser livres. Elas teriam que ser adestradas, vigiadas, e caso necessário, punidas. Um corpo marcado pela disciplina, pelo respeito, pelo medo, pela vontade de perguntar e ter “vergonha” de ser ridículo ou ignorante. Como afirma Foucault (2006, p. 119), “a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados corpos dóceis”. Mas como educadora e por insistência do orientador desta pesquisa, também tenho a obrigação de me perguntar: Por que há esta dimensão disciplinadora dos corpos e como isso de alguma maneira molda, engendra um modelo de sociedade e de soberania?

Ingressei no Colégio Sant’Anna, uma escola privada e católica, administrada por freiras franciscanas. Nesse lugar, fui alfabetizada, ensinada e adestrada. O medo e o respeito orientavam uma educação salvacionista, regida pela moral, religião, disciplina, obediência e pelos bons costumes. A sala de aula da primeira série era no último andar, o sótão do colégio. Ao passarmos em fila e até chegarmos à sala de aula, havia uma espécie de corredor. Naquele lugar havia uma sala em que as portas estavam sempre fechadas. Nós, com os olhos curiosos de criança, perguntávamos o que tinha dentro da sala. A professora nos falava que ali era uma sala escura, que os alunos que não fizessem os temas de casa ou que não obedecessem seriam levados de castigo para lá. Isso, para nós da turma, por si só, fazia com que fôssemos alunos doces e queridos.

Nas classes as crianças ficavam em duplas. Os corpos parafusados em duplas. Algumas manhãs esses corpos desparafusavam-se para cantar o Hino Nacional, em fila, em pé, em frente à bandeira a ser hasteada no mastro no pátio da escola. Esse ato simbolizava o respeito e o amor à pátria, tão enfatizados no período da ditadura militar.

Às vezes fazíamos uma bagunça, mas logo a nossa alegria acabava sob o olhar da professora, que perguntava quem de nós gostaria de ficar naquela sala. A bagunça é o contrário de ordem e disciplina escolar, como bem nos aponta Silva & Pfaff (2011, p. 8): “O termo geral bagunçar reafirma sempre uma determinada ordem disciplinar, ou seja, estas práticas não têm relevância isoladamente enquanto bagunça, mas apenas em contraponto com a mão forte da ordem (institucional, doméstica, etc)”. A partir do sentido de ‘bagunça’ tematizado por Pfaff (2011) percebo

que, desde muito pequena, a palhaça vem mostrando os caminhos que levarão à descoberta do nariz vermelho na idade adulta.

Não lembro exatamente o ano e nem a minha idade. Lembro apenas das sensações produzidas em minha memória, que ainda hoje perseguem o meu pensamento e são reforçadas pelo discurso materno. Naquela época, no mês de fevereiro, meu pai costumava comprar os objetos que iríamos precisar no decorrer do ano letivo. Eram cadernos, lápis, borracha, capa de chuva, sombrinha, botas de chuva. Era tudo aquilo que garantiria uma passagem de ano tranquila e sem grandes surpresas. No Estado do Rio Grande do Sul o inverno é bem rigoroso, geralmente com intermináveis dias de chuva e frio.

Em um dia quente de fevereiro ganhei as minhas botas pretas de borracha. Fiquei feliz. A felicidade era tamanha que não tive dúvidas, tomei banho, coloquei um vestido de voal e minhas botas pretas de borracha. Com certeza minha mãe deve ter feito “maria-chiquinha” nos meus cabelos - na minha infância, usei muito esse penteado. E saí a passear pela calçada da minha casa. Com uma alegria no corpo e certo exibicionismo, pus-me a caminhar de uma esquina à outra. Feliz com aquelas botas e meu vestido de voal. Eu passava na casa dos vizinhos para mostrar o presente que havia ganhado.

Essa atitude infantil, a ação de exibir algo que, aos meus olhos era lindo, talvez seja minha primeira ação clownesca. Mas meu pai, como todo adulto que preserva o lado não ridículo das pessoas, logo acabou com a minha alegria. Meu pai disse à minha mãe: “Mulher, manda essa criança entrar. Não vê que ela está fazendo um papel ridículo na rua. O dia está quente, tem sol e ela de botas de chuva”. Minha mãe respondeu: “Meu velho, deixa ela, não vê que ela está completamente feliz!”.

E assim fui crescendo nessa atmosfera doce. São lembranças e percepções que estão presentes a todo instante. Um cheiro, um tropeço, um gesto, uma fala, um som, tudo isso está ligado à memória. Essas memórias parecem apagar- se, mas quando menos esperamos, elas saltam em nossos pensamentos e nos trazem de volta imagens, lembranças de infância. Como nos diz Bergson (1999, p.12), “[...] tudo se passa como se nesse conjunto de imagens, que chamo de universo, nada se pode produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo”.

Da primeira série, fatos inusitados permanecem vivos. Como todo ingressante na vida escolar, eu aprendi a ler, a escrever e a fazer contas. Em 1974 o

método utilizado era a cartilha. Tínhamos que seguir rigorosamente as lições para aprendermos a distinguir uma porção de signos e símbolos que, para nós crianças, eram um novo mundo a descobrir. Deleuze (2010, p. 21) afirma a este respeito: “nunca se sabe como uma pessoa aprende”. E pensando na afirmativa acima, a aprendizagem se dá, ao meu ver, quando passamos pela experiência que atravessa nossos corpos, mentes e corações. Quando as percepções passam a ter significado para este corpo. Pode-se aprender a partir da sensibilização corporal, por exemplo, outros aprenderão de outras formas. A aprendizagem não é algo estanque, fixo, como se todos aprendessem da mesma formas. A aprendizagem como o filósofo nos aponta, está diretamente ligado aos ensinamentos de Lecoq (2010), quando ele nos mostra a busca pelo próprio clown! Nesse sentido o que marca o início da aprendizagem em leitura dessa pesquisadora foi justamente uma brincadeira realizada em casa.

Naquela época, eu tinha reforço de leitura em casa, ou melhor, de tentativa de leitura, pois o aprendizado se dava pela cópia e repetição das palavras. Até conseguíamos pronunciar aquilo que estava escrito no quadro-negro (que era verde) ou no caderno. Numa tarde, em casa, aprendi a ler. Minha mãe desenhou cada letra do alfabeto em um quadrado branco de cartolina. Eu tinha dificuldade em identificar as letras. Com o método caseiro, fui salva. Minha mãe colocava as letras e juntava algumas. Nesse “acolherar” de letras, eu precisava descobrir que palavra estava se formando. Foi uma tarde intensa, de muitos risos e choros. Ela escolheu as letras em separado, como quem mexe com peças de jogo. As palavras que eu tinha que formar eram casa, bola, uva, pai, mãe. Quando eu comecei a juntar os quadrados, percebi a palavra e soletrei “CA = CA, SA = SA; tudo isso é CASA!”. E foi assim que fui aprendendo a ler e, aos poucos, o soletrar não fazia mais parte da minha leitura.

No dia seguinte, eu fui à escola e minha “vertente” palhaça disse à professora que eu já sabia ler. Ela, então, colocou-me sentada ao seu lado e fez-me ler o que estava escrito. Eu li tudo e fiquei feliz. A felicidade era tão grande que cheguei a atrapalhar os ensinamentos da professora. Ela pedia aos meus colegas para lerem o que estava escrito e eles não acertavam. Eu, palhaça-exibida, como os clowns excêntricos, saía da minha carteira e ficava atrás da professora e do colega, espiando as letras. Comecei a “assoprar” a palavra ao colega. Resultado: fiquei de castigo! Aqui, embora tenha realizado uma “boa ação”, embora tenha ajudado os colegas a aprenderem a ler, fracassei quando a professora me deixou de castigo por estar sendo

solidária. A partir dessa lembrança, dessa passagem da minha infância, leio esse fragmento do texto de Burnier (2009, p. 206) sobre o augusto: “o augusto [no Brasil, tony ou tony-excêntrico] é o bobo, o eterno perdedor, o ingênuo de boa-fé, o emocional”.

Pelo fato de estudar em uma instituição católica, todas as manhãs rezávamos “Ave- Maria”, “Pai-Nosso”, “Creio” e, para finalizar, “Santo Anjo do Senhor”, isso para que pudéssemos ter um dia bonito e também abençoado por Deus. Além das orações, quando alguém muito importante entrava na sala de aula, levantávamos em sinal de respeito e dizíamos em coro: “bom dia, seja bem-vindo(a) a nossa turma!”. Na sala de aula, o respeito e a boa educação configuravam-se nessas ações desprovidas da mínima conexão com o mundo infantil. Eram ações impositivas, não questionadas, não dialogadas entre os partícipes.

Concomitante à escola, sempre brinquei na rua, no campo de futebol e em casa. Nessas brincadeiras reproduzíamos o aprendizado em sala de aula. Uma vez, na peça dois do porão, brincando de aula, eu e uma amiga comemos muitas bergamotas. Contamos quantas cada uma tinha comido e foram 17. Portanto, comemos 34 bergamotas. Assim, brincando fora da escola, aprendi a adição. Gil (1991, p. 22) argumenta que, “[...] nos seus jogos, as crianças não se limitam a recordar experiências vividas, mas reelaboram criativamente, combinando fatos entre si e construindo novas realidades de acordo com seus gostos e necessidades”.

Na rua, a gente tinha a liberdade que não era encontrada na escola e, tampouco, nas carteiras escolares. Lembro que, nesse período de ingresso, os meus pés não alcançavam o chão, pois as carteiras eram muito altas. Minhas pernas ficavam penduradas e, para aliviar as tensões do cansaço por ficar quatro horas sentada em carteiras enfileiradas, em que eu apenas via a nuca do colega da frente e a professora mais adiante, eu brincava de balanço com as pernas. Adorava fazer isso. Na rua, o nosso tempo era outro. No verão, o nosso horário era até às 22 horas ou meia noite, conforme os pais se retiravam da frente das casas. Era um tempo bem bonito, a liberdade era soberana para as crianças. O brinquedo, o jogo, as disputas, os choros eram uma constante na nossa vida de criança.

A rua era um contraponto ao método escolar, que era severo e imposto, que educava pela obrigação e não pela liberdade. Essa situação se conecta às palavras de Gallo (1995, p. 148).

[...] na verdade, o método da severidade, que defende que a criança só aprende e se forma através de uma educação severa, dura, cheia de imposições, é a pedagogia do ajustamento social, que procura moldar a criança para a vida em sociedade, afirmando que, em caso contrário, a criança se perderia nas perversidades, ingressando a uma marginalidade perigosa.

É nesse sentido que o que fica à margem é perigoso, pois não se deixa dominar pela instituição. Resiste e rebela-se! Não cabemos mais nos espaços marcados e definidos pela maquinaria escolar e suas engrenagens sempre bem dispostas na produção de imobilização do corpo. Não cabemos mais nos lugares em que para sermos felizes temos que ser marcados, condicionados e justificados. Não cabemos mais nos lugares em que o riso e a brincadeira, o rir de si mesmo e dos erros, são percebidos como deboche, afronta. E quando esse riso acontece é o trabalho do clown aparecendo. Não podemos mais seguir como na letra de Zé Ramalho (1949 -) “Eh, ôô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz”.

Minha primeira decepção com o ensino aconteceu em 1977, quando cursava a antiga quarta série do primeiro grau. Tive, efetivamente, minha primeira experiência de fracasso. Fui reprovada pelo fato de não ter atingido “uma relação saber-capacidade”. Na nebulosidade da lembrança, paro e olho o boletim escolar. Nele estão registradas as notas que não atingiram a média, ou melhor, a quantificação da inteligência? A quantificação da aprendizagem? Não sabemos ao certo como aprendemos, só sabemos que o não atingir a meta proposta pelo sistema de ensino é um processo rumo ao aprender a fracassar. É doloroso!

A brincadeira com o fracasso/sucesso vai mostrando, aos poucos, que estamos sempre em busca de algo ou da verdade. Essas condições imbricadas à vida vão pontuando e delineando os aprendizados. Eu, desde a infância um sujeito de corpo gordo, fora dos padrões estéticos instituídos, deficiente auditiva em maior grau no ouvido direito, desde os três anos de idade, aprendo “o avesso e o direito” de uma vida escolar e de uma educação. Nos jogos teatrais, chamamos essa expressão de tirar e colocar o chapéu.

O segundo fracasso deu-se na sétima série, no ano de 1981. Outra reprovação. No primeiro dia de aula, a professora de matemática caminhava de um lado para o outro da sala de aula, em frente a todos nós e nos olhando. Com uma caneta “bic” batendo nos dentes, ela nos olhava como quem iria escolher algum de nós para algo. Quando ela parou na minha frente, apontou com a caneta e falou:

"Tu,esse ano, vai rodar". De fato, isso aconteceu. Fui reprovada por falta de média! Ela havia sido minha professora nos anos anteriores. Eu sempre ia para a recuperação e passava. Mas naquele ano eu não me esforcei, também depois desse “estímulo” declarado...

Nesse período começo a tomar consciência da estruturação das carteiras escolares em fileiras. A disposição dos alunos em sala de aula era conforme à classe social. Na primeira fila, eram os filhos de médicos, de professores da Universidade Federal de Santa Maria e de outras instituições. Eu fazia parte da terceira fila. Devido a deficiência auditiva, nesse período também comecei a perceber que não entendia muito bem o que o professora falava. Sempre perguntava ao colega o que a professora havia dito e frequentemente era repreendida por estar conversando.

Com esse segundo fracasso, aliado ao alto valor das mensalidades escolares, no ano de 1982, meus pais me transferiram para o Instituto Estadual de Educação Olavo Bilac. Mesmo sendo parte de uma educação formal, cujo sistema de ensino prima pela relação unilateral entre professores e alunos, em que também há punição, um vigiar e uma luta pela obediência, naquele lugar minha vida deu uma virada.

Naquela escola, sentada em carteiras dispostas de tal forma que víamos apenas a nuca do colega, não tínhamos lugares fixos. Podíamos sentar em qualquer lugar, da primeira fila à última. Para mim, isso soou como uma liberdade de escolha. Nessa escola, até que minhas notas eram boas. Em matemática, tirava “Muito Bom” e “Ótimo”. E, além disso, ainda fiquei amiga da professora. A mesma disciplina, o mesmo conteúdo, mas uma forma diferenciada de trabalhar. Acabei me apaixonando pela matemática. Acho que nunca gostei de relações de mão única.

Na concepção de vários autores que pensam uma Educação para a liberdade, a educação formal prevê somente aquilo que as leis garantem como sucesso de ensino-aprendizagem, não pressupondo a potência do aluno. Nesse sistema, não importa a vontade e os outros interesses do educando. É como se não coubesse a liberdade, pois, temos que enfrentar uma certa “camisa de força” dos Parâmetros Curriculares. Em 1983, termino o antigo primeiro grau. No ano seguinte, ingresso no antigo segundo grau nessa instituição, na modalidade magistério.

No próximo item deste capítulo há um caminhar junto com o leitor pelas salas escolares, pelos anseios, pelas percepções, pelas perdas, pela desistência e

pelo fracasso. É a vida mostrando-se, a vida pessoal atrelada à estudantil ancorando as próximas linhas.