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1 PASSAGENS DE UM ROSTO NA EDUCAÇÃO

1.5 A docência: uma palhaça na Educação

1.5.1 O ingresso no ano de 2003 e a disciplina de Jogo Teatral

Ingressei como docente da Universidade Federal de Santa Maria no ano de 2003. As disciplinas que ministrei até 2010 foram: MEN1186 – Jogo Teatral e Educação; MEN1188 - Jogo Teatral do Curso de Pedagogia (Diurno e Noturno) e MEN1078 - Jogo Teatral e o Contexto Escolar do Curso de Educação Especial. Todas disciplinas obrigatórias, com carga horária de 90 horas em Pedagogia, distribuídas em dois semestres e 45 horas, e no Curso de Educação Especial, em apenas um semestre.

Nas disciplinas desenvolvemos um trabalho corporal com Jogos Dramáticos baseados nos estudos de Olga Reverbel (1917-2008), considerada pioneira do Teatro-Educação no Brasil e com Jogos Teatrais baseados no sistema de Viola Spolin (1906-1994), educadora e diretora americana. Seu sistema de trabalho em teatro-educação ficou conhecido e foi divulgado no Brasil a partir da tradução de seu livro “Improvisação para o Teatro”, nos anos setenta, por Ingrid Koudela e Eduardo Amos. Essas disciplinas são ministradas no terceiro andar do Centro de Educação/UFSM, no Laboratório de Artes Cênicas “Sala Olga Reverbel”, nº 3381, carinhosamente apelidada de “Sala Preta”.

Como Docente em início de carreira, fui uma profissional que sabia fazer uso da hierarquização, da autoridade/autoritarismo. Por mais que eu houvesse estudado educadores que se preocupam com a prática da liberdade, eu acreditava na ideia de que a Professora ensina e o futuro pedagogo ou educador especial aprende. E foi dessa forma que minhas aulas aconteceram nos três primeiros anos de docência. Aos poucos, fui sendo apresentada a outras possibilidades de intervenção em sala de aula e a outras leituras. Entendo que esse início refletiu a maneira como eu vivenciei os ambientes educacionais, nos quais aquele que sabe não é o mesmo que aprende. Depois de ter contato com diferentes autores, como Foucault (1987), Corrêa (2006) e Passetti & Augusto (2008), que falam de uma prática da liberdade em sala de aula e na vida, muitos experimentos foram realizados durante esses anos. É interessante pensar como os acadêmicos e as acadêmicas desses cursos se viam diante de uma professora “libertária”. Eles muitas vezes não sabiam o que fazer ou como fazer; não entendiam uma prática que não primasse pela condução do pensamento ou do comportamento. Os acadêmicos e as acadêmicas não entendiam uma prática que problematizasse, questionasse, que trouxesse o enfrentamento de não se encontrar apenas uma única resposta ou de não se satisfazer com nada, ou não encontrar nada.

Uma prática em que o riso e a brincadeira são algo sério, que aquilo que se é proibido de fazer torna-se possível naquela disciplina. Aquilo que foi inibido da sociedade é o foco da disciplina. O riso, o corpo individual, o bocejo, o espreguiçar- se, o deitar-se, o dormir, o errar. Aquilo que não pode, na disciplina de jogo teatral pode.

Figura 7 Disciplina Jogo Teatral: jogo de sensibilização corporal com tinta guache (UFSM/2006)

No primeiro dia de aula, costumo apresentar a ementa da disciplina juntamente com a bibliografia básica a ser trabalhada durante o semestre. Após a conversa com os acadêmicos, procuro colocar algumas regras básicas para um bom convívio nas aulas.

1. A regra do não pode: subir nas paredes, pendurar-se nos canos que conduzem a luz elétrica da sala, ficar pelado e jogar-se pela janela basculante do terceiro andar.

2. O restante, tudo pode. Bem aos moldes dos jogos clownescos. O que pode um/uma palhaça?

3. Explico que sou deficiente auditiva e que caso me vejam com uma “cara de que não entendi nada” do que falaram ou se eu ficar olhando com “cara de cachorro”, pode ter certeza de que nada ouvi. Então, é bom falar alto e articular bem as palavras. Nesse “defeito” auditivo está consolidado o riso aos moldes do filósofo Bergson (2004). É a docente palhaça sutilmente tomando conta da disciplina em conjunto com seus futuros educadores.

É interessante como essas regras movimentam o pensamento dessas meninas e meninos. No instante em que eles entram na sala, algo começa a mudar. Eles vêm de outras disciplinas, nas quais sempre estão sentados em carteiras escolares. Na “Sala Preta”, a primeira desconstrução corporal dá-se justamente pela

ausência de carteiras escolares. Eles terão de aprender a sentar-se no chão. Nesse momento, o corpo começa a dar sinais de desconforto, então, eles passam da posição sentado para a posição deitado. Os corpos começam a liberar-se sensivelmente até que a aula de jogo inicia.

Figura 8. Lab. Artes Cênicas “Sala Olga Reverbel” (UFSM/2011)

Acredito, como docente dessas disciplinas, que os jogos são relevantes para as meninas e para os meninos que as frequentam. Nesses anos de docência (2003-2010) fui percebendo e também fortalecendo alguns pensamentos. Como esses jovens que vão atuar com crianças, jovens e adultos podem ter corpos tão aprisionados (como o meu era), engessados, sem vontade ou sem disposição para o jogo? Que tipo de ensino elas vão praticar com seus educandos? Será que, em pleno século 21, essas moças e esses rapazes repetirão e reproduzirão aquilo que foi ensinado para mim na década de 70/80 do século passado? É possível a experimentação nesse contexto de jogo-educação, visto que o ensino não prevê muito tempo de brincadeiras, jogos, riso e comicidade?

1.5. 2 Cia Candoca de Teatro do CE/UFSM

Em 2004 fundamos a Cia. Candoca de Teatro do CE/UFSM8. A proposta

da companhia é de experimentarmos nossos corpos e inventarmos outras possibilidades de ensino. A Cia. Candoca é um grupo que pesquisa as possíveis intervenções do corpo na Educação. Trabalha com as diversas linguagens cênicas e

8 Candoca era o apelido do meu avô materno. O nome era Cãndido. O significado da palavra cândido é, candura, pureza, inocência. Esses vocábulos vão de encontro com os estudos coordenados por esta pesquisadora.

depois de concluída a presente tese, serão realizadas pesquisas com a linguagem clownesca.

As pessoas que fizeram parte do primeiro ano eram das seguintes áreas: Odontologia, Fisioterapia, Direito, Arquitetura, Matemática, Artes Visuais, Artes Cênicas, Química, Pedagogia, Educação Especial, Física. Nos anos subsequentes, ficaram apenas as áreas mais próximas às artes e algumas licenciaturas.

Nossos encontros aconteciam uma vez por semana, totalizando uma carga de quatro horas. Em cada encontro, um participante apresentava uma proposta aos demais para jogarmos, brincarmos e problematizarmos a importância dessas experimentações no campo educativo. A dificuldade de descobrirmos e firmarmos espaços pedagógicos que não primassem uma hierarquia era o que nos unia naquele momento. A vontade e o desejo de estar na Companhia eram transparentes. As pessoas faziam o que queriam fazer. Aprendíamos com as leituras que eram, muitas vezes, realizadas fora da Cia., mas trazidas como uma possibilidade de troca para o grupo. Os participantes da Cia. Candoca de Teatro do CE/UFSM apresentaram-se em eventos, levando algumas performances, que foram resultados dos nossos encontros e pensamentos. Nem todos gostavam de fazer a apresentação, mas trabalhavam com afinco nos bastidores.

Era um tempo em que tudo fervilhava no Centro de Educação. A Cia. Candoca era a nossa janela. Nossa oportunidade de legitimarmos espaços onde o riso, a alegria e a desconstrução de si e do outro se tornassem presentes em vários setores do Centro. Fizemos intervenções em eventos na Universidade Federal de Santa Maria, como também na comunidade e em cidades do Rio Grande do Sul. Da performance Ximia Bóia e Toni Torrado em: a Praia (2006) surgiu um texto apresentado na ABRACE, intitulado Ximia Bóia e Toni Torrado em “A Praia”: do Improviso à Educação9.

O processo de construção dessa pesquisa em teatro começou quando fomos convidados para apresentar um espetáculo cênico no Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, no ano de 2006. Naquele momento, professora e alunos participariam como “colegas” e “amigos”. E é nesse contexto, de uma

9Disponível

em:http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/pedagogia/LuciadeFatimaRoyesNunes/XIMIABÓIA

educação para além da academia, que pretendo tecer algumas considerações sobre o que chamamos de experimento.

O jogo improvisado está embasado nos comediantes da Idade Média. Nos Canevas (roteiros para improvisações dos atores, em particular na Commedia Dell’Arte) buscamos todo o aporte para a criação das cenas, afinal, trabalhamos na perspectiva clownesca. Insiro algumas imagens ao longo do presente texto, a fim de resgatar alguns momentos dos encontros que tivemos com os diferentes grupos. Caminhos que Ximia Bóia e Toni Torrado percorreram, não somente no ano de 2006, mas também nos anos subsequentes.

Figura 9. “Ximia Bóia e Toni Torrado em: a Praia”, minutos antes da apresentação (Centro de Educação/UFSM/2006)

Como tínhamos um caminho em comum no que se refere ao estudo de clown, não pensamos em outra coisa senão afirmarmos ainda mais essa linguagem. Desde que nos conhecemos, discutimos com muita frequência a lógica, bem como o processo do clown. E certamente não poderíamos ter feito outra escolha ou mesmo outra proposta senão esta. Com um tempo considerável para nos prepararmos para a apresentação, dialogamos muito sobre o que faríamos. Muitas ideias vieram e é nesse momento que nossa euforia aumenta. Analisando a linguagem do clown, voltamos a teorizar sobre suas atitudes, bem como sua identidade. Como estaríamos dentro de uma instituição de ensino, refletimos e questionamos sobre como seria a aceitação da apresentação e o que poderíamos planejar.

Concordamos que poderíamos fazer a apresentação em uma praia onde tudo poderia acontecer. Como seria a Ximia Bóia e o Toni Torrado curtindo uma praia? Decidimos utilizar alguns objetos que poderiam nos ajudar a desenvolver a cena. Pensamos em comer, tomar banho de sol, nadar, namorar, brigar, cantar, dançar - pensamos, pensamos e pensamos. Mas cadê os ensaios? Afinal, ambos os atores tinham se formado em um curso no qual só poderíamos fazer uma apresentação teatral depois de termos passado por longos e exaustivos ensaios. Mas naquela realidade que estávamos vivendo, isso não nos preocupava. Obviamente, a cabeça girava em torno da proposta que tínhamos decidido executar. O que poderia acontecer naquela praia?

Na véspera da estreia, nosso envolvimento tornou-se mais próximo, pois teríamos um grande desafio: jogar e construir um espetáculo teatral, tendo apenas algumas ideias que poderíamos ou não colocar em prática. Naquele momento, nos lembramos de todos aqueles pensamentos propostos e analisados por grandes autores e estudiosos da linguagem teatral, como Burnier (1994), Fo (1998), Stanislavski (1984), entre outros. Autores que se preocuparam com a formação do ator, pois, desde a concepção das ações psicofísicas até a brincadeira simplória do clown, existe um mundo adverso em que há muito que fazer, tanto pelo Teatro quanto pela Educação.

No dia da apresentação estávamos curiosos. Começamos a alongar o corpo e a brincar com objetos que tínhamos decidido utilizar. Colocamos algumas músicas e deixamos o jogo acontecer naturalmente. Durante o jogo, descobrímos o que poderia funcionar no espetáculo. Uma acadêmica do curso de Pedagogia responsabilizou-se em ser a sonoplasta. Portanto, jogamos e criamos nossas ações a partir das músicas que escolhemos.

A improvisação10 era a base da criação. No momento em que saímos da

sala de preparação já estávamos criando. No caminho da sala até o local onde ocorreria a apresentação, jogávamos com todas as pessoas que passavam e quando entramos no auditório, repleto de adultos e crianças, percebemos que o espetáculo

10 Improvisação: entende-se por improvisação o jogo e ou a brincadeira sem algo pré determinado. A

improvisação faz parte dos jogos clownescos. Sobre um aprofundamento consultar Chacra, Sandra. A natureza e o sentido do jogo teatral. São Paulo: Perspectiva, 1983.

se concretizara. Com o roteiro que havíamos programado, tínhamos a missão de construir um espetáculo.

Figura 10. Os personagens no Centro de Educação, dirigindo-se para a apresentação Ximia Bóia e Toni Torrado em: a Praia (CE/UFSM/2006)

Foi importante perceber o que estava acontecendo com a plateia à medida que jogávamos, pois o tempo todo, o público atuou junto com os atores. Essa triangulação11 foi extremamente importante porque dependíamos, muitas vezes, das

reações do público, podendo estas ser as mais imprevistas possíveis. Acreditamos que o Toni Torrado e a Ximia Bóia eram cúmplices de uma situação que eles mesmos estavam criando, junto com o público.

O interessante do espetáculo é que tanto um como o outro chamavam a atenção pelo físico. A Ximia Bóia possui um corpo grande, desengonçado, com a pele um tanto flácida pela gordura localizada e generalizada. Isso contrasta com o Toni Torrado, que tem um corpo magro, franzino. Infalivelmente, isso chegou ao cômico. Segundo Bergson (1999, p. 12-13):

[...] mas um defeito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modificar-se, pelo menos exteriormente. [...] Podemos dizer desde já: é nesse sentido que o riso “castiga os costumes”. Ele nos faz tentar imediatamente parecer o que deveríamos ser, o que sem dúvida acabaremos um dia por ser de verdade.

11 Triangulação: é a possibilidade do público intervir junto com os palhaços. Para um aprofundamento sobre o tema consultar: Wuo, Ana Elvira Clown e linguagem. Blog, Campinas. Abril 2009. Disponível em

Em conjunção com a afirmativa acima, outro aspecto merece ser comentado. Em nenhum momento as crianças ficaram com medo dos clowns. Uma empatia tomou conta do ambiente. Elas riram muito das nossas ações, dos nossos jogos, de nós mesmos. Talvez esse seja o sentido indicado pelo filósofo.

Os momentos aconteciam organicamente, no sentido da entrega e do despojamento do ator, que precisa deleitar-se com o que está fazendo para que as coisas aconteçam com naturalidade. Isso, eu diria que é o poder do jogo. O jogo dá substância à técnica do ator, tornando-o excêntrico e perspicaz. Nessa apresentação, percebemos a relevância da pesquisa sobre o jogo teatral, sobre os jogos de clown e suas intervenções no contexto educacional.

O espetáculo aconteceu a partir do método da construção, isto é, à medida que jogávamos, o quebra-cabeça ia sendo encaixado. Sandra Chacra (1983, p. 17- 18) diz que podemos fazer uma análise sobre o fenômeno teatral a partir da tríade básica ator, texto e público, sendo possível averiguar a improvisação nos seus diferentes ângulos.

Dentro do jogo, a falta de saber por parte da plateia (que não é a mesma em cada espetáculo) gera no ator um sangue novo, uma disposição, energia e presteza que emanam da simples “presença” do espectador. Embora preparados para jogarem, os artistas só saberão o resultado do jogo, jogando diante dos espectadores. São estes que dão sentido e alimento à arte o ator. Prefigura-se deste modo a improvisação [...].

Creio que os clowns, ao se mostrarem para este público infantil, questionando, brincando com o tema/situação “a praia”, encontraram neles os cúmplices para os jogos clownescos.