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1 PASSAGENS DE UM ROSTO NA EDUCAÇÃO

1.4 A idade adulta: o ingresso no ensino superior

Ao ingressar no curso de Educação Artística – Licenciatura Plena em Artes Cênicas da UFSM muitas foram as alegrias, os choros, as impotências, os fracassos e os sucessos. E a fuga do curso, a desistência no ano de 1994. O retorno e a descoberta da Ximia Bóia em mim. Ao recorrer à memória, lembro-me de algumas experiências como atriz. Porém, o que até os dias de hoje me mantém atenta e com

vontade de vida é a possibilidade de ser e ver o mundo com os olhos da Ximia. No próximo item deste capítulo descrevo o nascimento da clown, da palhaça, e as repercussões em minha vida desse afetar e ser afetado, nos espaços formais e em outros também.

1.4.1 O curso de clown: nascimento da palhaça Ximia Bóia

Em 1998, fiz o curso de clown com a pesquisadora Ana Elvira Wuo. A Ximia Bóia nasceu em um momento da minha vida em que eu não via qualquer conexão entre mim e o curso de Artes Cênicas. Parecia que ali não havia espaço para pensar Educação, mesmo o curso sendo de Licenciatura. Foi a partir desse curso e do exercício com a Ximia Bóia que fiquei maravilhada com a possibilidade de ser clown, dentro e fora. Foi a partir da Ximia que tive/tenho a oportunidade de brincar com as amarras sociais. É com ela que aprendo que o gordo tem um corpo e não apenas um rosto ou a simpatia. Aprendo que o gordo tem potenciais inventivos e uma liberdade pessoal transgressora. Que o gordo, ao balançar as suas partes flácidas e mostrar isso ao público, fá-lo rir! Com a Ximia aprendi a rir de mim mesma, do fracasso e também da sociedade que controla, que rege e dita normas! Com a Ximia, aprendi também a ser uma professora mais sensível, que toca e abraça seus alunos, que tem uma escuta sensível.

Aquele corpo que foi se constituindo na Escola, sentada em fila, somente apreciando a nuca dos colegas e a professora mais adiante, foi perdendo a sua força criadora. Esse corpo morto, esvaziado da vontade, coisificado pelo sistema de ensino, obediente e dócil, no nível superior e com o descobrimento da palhaça, tornou-se um corpo que deseja, ri e brinca com a própria fraqueza, com aquilo que está institucionalizado como feio ou bonito.

O nome do curso é “Clown Visitador I e II”. Foi o marco de outra história possível de vida e que tem repercussões na minha docência! O método utilizado desenvolveu-se por meio do trabalho de “desconstrução”, (de)formação e dilatação. Entende-se por desconstrução e (de)formação o rompimento das couraças físicas e emocionais para depois construir algo novo, que floresça a partir da internalização das ações físicas, outra possibilidade de invenção. A dilatação é a ampliação das ações inventivas, potência máxima dos clowns.

O curso aconteceu no mês de dezembro. E o calor que fazia naqueles lindos dias de risos e lágrimas! Quantas descobertas! Um passeio dentro de nós, desvendando os caminhos trilhados e esquecidos. Desvendando a nossa poética corporal. Quanta poesia! Depois de um longo e árduo passeio dentro de nós, éramos convidados a exteriorizar, por meio de jogos, tudo aquilo que tínhamos encontrado nessa caminhada. Nessa jornada sigo relatando como fui afetada por esse curso!

Nos nossos encontros no Anfiteatro do Centro de Artes e Letras, da UFSM, lembro que meus olhos brilhavam da mesma maneira que brilharam aos seis anos, quando fui pela primeira vez à Escola! Era um novo mundo e uma nova janela estava se abrindo para mim. Um novo olhar! Outra vida! Meu coração batia forte, sinalizando as fortes emoções que vivenciaríamos no curso. Meu coração batia forte principalmente quando éramos chamados para os jogos de clown. Batia forte quando éramos avaliados! Ao rememorar o curso, ainda hoje ressoa em meu corpo a seguinte fala de Wuo: “isso que estamos fazendo é um destrabalho sério! Não é bagunça!”.

Inicialmente, pensei que ela nos diria o que é e como se faz o clown. Ledo engano, pois o método nos desafiava a cada momento e nos lançava a uma busca incessante, não só pelo nosso interior, pelo ser, mas também por aquilo que tínhamos guardado ao longo de nossos dias, pelo ter. Desafiava-nos pelo lado mais puro das ações e das reações, por aquilo que deixamos de fazer, de sonhar e de acreditar com um corpo que cria, que se libera. Criar a partir do estímulo de que outros corpos são possíveis para além e aquém do corpo imobilizado, por muitos anos de confinamento

em salas de aula pela educação recebida.

Foi um curso em que tudo era jogo. Jogávamos com objetos como boias, garrafas, panos etc.; jogávamos com nosso próprio corpo, expúnhamos fisicamente todas as emoções, as partes que escondíamos do nosso corpo e, finalmente, jogávamos conosco mesmos. Aos poucos percebi a grandiosidade do trabalho e, principalmente, a dificuldade em estabelecer uma relação verdadeira sem cair na caricatura, deixando florescer o que está dormindo dentro de nós. Foi, então, que comecei a ver o mundo com outros olhos, com os olhos do clown. Era uma prática de liberdade e um exercício da vontade.

Esse novo olhar dá-se pelo fato do clown ter outro tipo de pensamento. Parece que o sentido é inverso ao que vivemos cotidianamente. O clown está sempre questionando as possibilidades de realização de uma proposta. Nada é realizado mecanicamente, tudo é jogo. Por exemplo, ao vestir um casaco, jamais um clown executará essa ação da mesma forma que a realizamos no dia a dia. Ele experimentará todas as possibilidades para realizar o feito. O que fascina é a possibilidade de transgressão, ou seja, aquilo que é vivenciado no cotidiano de forma muitas vezes inibidora, nas relações professor-aluno de forma hierarquizante, vem o clown e mostra que as relações podem se dar na horizontalidade. O ponto chave é o jogo improvisado, pois só assim há a possibilidade de nos revelarmos como pessoa. Lecoq (2010, p. 217) afirma que, “[...] a grande dificuldade consiste em encontrar de cara uma dimensão justa, em interpretar verdadeiramente sua pessoa, ser clown – e não fazer um clown”. Em diálogo com esse teórico pode-se pensar que a dificuldade esteja atrelada ao conjunto de forças que estão sempre controlando, regendo as ações das pessoas em qualquer âmbito. É como se estivéssemos sempre vivendo um conflito entre uma força que quer ajustar o diverso ao normal e outra que opera de modo sensível com as forças vivas e atuais.

Durante o curso, houve um momento muito especial que recebeu o nome de “Batizado dos Clowns”. Nesse momento acontece uma avaliação, a revelação de um aprendizado vivo, potente. Um aprendizado que não está contido na máquina de ensinar, como em uma escola tradicional. Há a avaliação do riso, que também pode ser chamada de pedagogia do riso ou pedagogia da palhaça! Esse é um ponto importantíssimo em um estudo de clown. Os professores são o público e se eles riem de seu fracasso, você tornou-se um clown. Isso não significa que para ser um clown o público precisa rir o tempo todo ou que o palhaço faça palhaçadas em todos os

momentos. O riso alegre acontece na medida em que a revelação do humano aparece e algum dispositivo é acionado no corpo de quem o vê.

Interessantes os dispositivos acionados no decorrer de um Curso de Clown. Quando a mestra-clown nos pedia para levarmos um objeto para realizarmos os jogos, eu não pensava em mim, mas numa professora minha do Curso de Graduação em Teatro que estava naquela formação de clown. Aos meus olhos, ela estava sempre linda demais para ser uma clown. As roupas e objetos que levava eram todos muito estilizados. Aproveitei um desses momentos de liberdade e achei que poderia esculachar com a docente. Pensei em usar uma boia. Quando a levei para a aula, tive de ficar o dia todo carregando-a para cima e para baixo. A minha intenção era “acabar” com a “beleza” daquela pessoa. Afinal, naquele momento ela, ainda investida da figura de professor, era tão aprendiz quanto eu. Então, eu poderia liberar toda a insatisfação que estava impregnada em meu corpo. Naquele momento, eu poderia dizer que estava viva! Passei o dia inteiro com a boia montando estratégias. Como eu iria desmanchar aquela imagem linda que, para mim, não era clown? Como eu poderia mostrar a essa docente que estávamos em igualdade de condições?

O engraçado nisso tudo é que eu não sabia que a nossa mestra-clown estava sempre nos observando. Ela de algum modo percebeu o meu intento. Chegou o momento de mostrarmos os objetos. Eu mostrei a boia e disse: “Eu trouxe esse objeto, mas não é para mim!” e ela respondeu: “Por que não? Eu vi você o dia inteiro com essa boia. A sua relação com a boia é muito forte. Você ficará com esse objeto sim!”. Ela riu!

Fiquei com o objeto e feliz também. Essa felicidade era por eu perceber empiricamente, pela ação de Wuo, que aquele objeto era para mim. De maneira indireta, fui percebendo essas nuanças do palhaço. Quando a mestra-clown firmou o objeto em mim, lembrei-me dos meus tempos de infância. Eu, quando criança, adorava ir a um clube na minha cidade e brincar com a boia. Talvez as estratégias de destruição do outro tenham servido como revelação para o meu clown, para minha criança, para minha pessoa.

A ação da mestra Wuo foi muito importante, pois por meio dela aconteceu o nascimento da Ximia Bóia. A estrutura do clown começou a revelar-se em mim quando encontrei a horizontalidade, podendo transitar em ambos os polos, surgem aspectos importantes da minha palhaça. Essa horizontalidade cria condições para o irromper da energia anárquica (não hierarquizada) de qualquer clown. Eu poderia ter

permanecido fixa àquela situação, todavia, a intervenção certeira da mestra liberou- me disso e a Ximia Bóia pôde nascer irreverente, brincalhona e livre de ressentimentos.

No decorrer do curso, durante os jogos de clown e a intensa viagem pelo nosso ser, nossa pessoa-clown se mostra. Surgiu em mim uma pessoa doce, que não tem nada a ver com a docilização de corpos, fui então batizada de Ximia. No Rio Grande do Sul é comum chamarmos a geleia, um doce pastoso feito de frutas, de chimia. Essa palavra tem origem na palavra alemã schmier. A palavra Ximia foi grafada com “X” porque somos palhaços e podemos brincar com as palavras. Escrever de modo significativo e comunicar aos outros o aspecto emocional da pessoa-clown também é um desafio para quem é clown. A Boia refere-se ao corpo grande, gordo, pesado, que come bastante, e ao objeto que utilizei durante os jogos de clown,

Enfim chegou o grande dia. O batizado (1998). A nossa mestra-clown colocou algumas músicas e tínhamos que fazer alguma cena ou jogo, ou mesmo dançar. Ficamos em fila atrás das coxias, aguardando o momento para entrarmos em cena e sermos desafiados. Foi com a música Flashdance (What a feeling) de Giorgio Moroder, Keith Forsey e Irene Cara, que também a interpretava, que fui batizada. Lembro que a Ana Elvira Wuo colocou a música e eu sem saber o que fazer, dancei. Não a dança estilizada do filme, mas a dança do coração da Ximia. Aproveitei o meu corpo, gordo e flácido, e dancei como nunca. Aliás, quando criança, eu gostava de dançar. Só não fui para uma academia de dança em função do meu corpo grande!

É interessante o deslocamento que o clown provoca. Tudo aquilo que normalmente não se pode fazer como pessoa, para um clown pode. É uma forma de transgredir, de desvelar aquilo que estamos sempre escondendo. É possível afirmar que a transgressão descortina outra beleza. A beleza de ser clown! De mostrar um corpo liberto, mas que muitas vezes está aprisionado.

Figura 5. Monólogo Ximia Bóia, (Theatro Treze de Maio, Santa Maria, RS, 2001)

As figuras acima revelam o encontro da Lúcia-criança, ingênua, que muito

usou maria-chiquinha nos cabelos, que sempre foi gorda e com um riso largo, com a Lúcia-Ximia que se apropriou do corpo gordo e da maria-chiquinha para criar a sua clown-palhaça. No corpo da Ximia Bóia vivo a recriação da Lúcia-criança. E ao compararmos uma foto com a outra, acredito que essa relação construída se revela através daquilo que ainda é uma marca corporal, o corpo gordo, a ingenuidade, a alegria, o sorriso largo e um jeito brincante de ser.

Em 1999, fiz a minha última disciplina do curso. Como estava maravilhada com a linguagem do palhaço, propus à professora orientadora que eu realizasse o projeto de encenação III e IV com o texto Ato sem palavras, de Samuel Beckett e a linguagem clownesca. Inicialmente, apresentei o solo da Ximia Bóia baseado nesse texto. A professora assistiu o ensaio e falou: “Não, tu não vai montar esse texto, não cabe nesse texto a linguagem que estás me propondo. Se quiseres montar fora dessa linguagem, tudo bem, mas de clown não!”

E é assim que termina essa história de longos oito anos no curso de Educação Artística – Licenciatura Plena em Artes Cênicas/UFSM.