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Foucault forja a palavra aleturgia a partir do grego alêthourguês que designa alguém que diz a verdade. Aleturgia, neste caso, irá significar “um conjunto de procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se atualiza isso que é colocado como verdadeiro por oposição ao falso, ao oculto, ao invisível, ao imprevisível etc”151. Porém, Foucault aponta que esta “verdade” ultrapassa os conhecimentos meramente úteis para o governo, consistindo em uma necessidade não utilitária. As “operações da ordem da verdade” são:

[…] sempre excedentes em relação a isso que é útil e necessário para governar de uma maneira eficaz. É para além da finalidade eficaz, da finalidade em governar de modo eficaz, é sempre para além disso que a manifestação da verdade é requerida ou implicada ou ligada a uma atividade de governar e de exercer o poder.152

151 FOUCAULT, Do governo dos vivos, p. 46. A aleturgia seria, etimologicamente, a produção da verdade, o

ato pelo qual a verdade se manifesta. Cf. FOUCAULT, op. cit./, p. 46, nota 43.

Porque esse excesso? Por que ultrapassa os objetivos imediatos da governamentalidade, tendo que ser buscado genealogicamente no “regime de verdade” aí imperante. Afinal

[…] pode haver poder sem adorno? Dito de outro modo, pode haver efetivamente um poder que se passaria sem jogos de sombras e de luzes, de verdade e de erro, do verdadeiro e do falso, do oculto e do manifesto, do visível e do invisível? Ou ainda, pode haver exercício de poder sem um [clarão] de verdade, sem um círculo aleturgico que gira em torno dele e que o acompanha?153

Sua resposta só poderá ser “não, não haveria!”, pois, para ele, a arte de governar está fundamentalmente ligada à descoberta de uma verdade e ao conhecimento objetivo dessa verdade, implicando na constituição de um saber especializado e na formação de uma categoria de indivíduos também especializados no conhecimento dessa verdade.154

[…] dispêndio puro de verdade, uma forma de manifestação pura da verdade: lá onde existe poder, lá onde é preciso que exista poder, lá onde se quer mostrar que é efetivamente ali que reside o poder, e bem, é preciso que exista o verdadeiro; e lá onde não existe o verdadeiro, lá onde não existe manifestação do verdadeiro, então é porque ali o poder não está, ou é muito fraco ou é incapaz de ser poder. A força do poder não é independente de qualquer coisa como a manifestação do verdadeiro entendido para além disso que é simplesmente útil e necessário para bem governar.155

Isso que está para além do simplesmente útil e necessário para bem governar, esse suplemento de força consistiria no regime de verdade156 a este último atrelado. As manifestações da verdade, suplementares a toda manifestação de poder, devem correr pari

passu com a governamentalidade posta. Como no exemplo dado por Foucault em relação à

governamentalidade moderna157: o caso de Jean Bodin, teórico da razão de Estado ao mesmo tempo em que opositor da demonomania, travando uma batalha contra os rituais de manifestação da verdade pertencentes ao antigo poder principesco em vias de derrocada: o adivinho, a bruxa, o astrólogo. Na constituição da nova razão de Estado, foi preciso eliminar estas aleturgias do entorno do Príncipe e da corte para que viesse a Razão de Estado e ocupasse o seu lugar. O advinho, o astrólogo, deveria ser substituído por um “verdadeiro ministro que [fosse] capaz de fornecer ao Príncipe um conhecimento útil”, daí eliminando “aquele tipo de saber, aquele tipo de manifestação do verdadeiro, aquele tipo de produção da

153 FOUCAULT, Do governo dos vivos, p. 59. 154 Ibidem, p. 56.

155

Ibidem, p. 48.

156 Conjunto de procedimentos e instituições pelas quais os indivíduos são engajados e constrangidos a colocar,

sob certas condições e para certos efeitos, atos bem definidos de verdade (FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 78). Confira próxima seção 3.3. Ato e regime de verdade.

verdade, aquele tipo de aleturgia, tanto das camadas populares quanto, e com mais razão, do entorno do Príncipe e da corte”158.

Estudando o Édipo de Sófocles, Foucault159 resgasta duas formas originais de aleturgia na Antiguidade: a aleturgia divina e a escrava. Cada uma caracterizava-se de modo particular quanto aos procedimentos de manifestação da verdade. Na primeira, a divina, a verdade manifestada consistia em uma proclamação, em um decreto saído da boca de um homem, mas em nome da divindade. O homem é apenas o emissário, o emissor da verdade e todos a esta verdade devem se curvar pela sua autoridade. Na segunda, a verdade vem de um testemunho cuja autoridade não reside em nada a não ser na declaração de consciência, “eu vi, eu estive lá”, que é toda autoridade que um escravo pode apresentar, a autoridade do seu testemunho pessoal, da sua certeza mais íntima acerca do que seus olhos, sua presença, possibilitaram-lhe apossar-se.

Na obra, quando Édipo, após ter prometido a seu povo a descoberta do assassino de seu pai, pede a presença de um conhecido vindente, este último, valendo-se da autoridade divina a qual ele quer ou diz representar, acusa Édipo de ser quem ele mesmo está procurando. O rei recusa a autoridade do adivinho. Em um momento posterior é chamado à presença do rei uma testemunha que diz ter presenciado o assassinato e visto o assassino, neste caso, novamente, o próprio Édipo.

Não adentrando aos detalhes da peça, apenas indicamos a conclusão de Foucault quanto à manifestação plena da verdade: ela, a verdade, só aparece em sua totalidade com o suplemento que o testemunho do escravo doa ao conjunto aletúrgico. Para Foucault, esta peça representa bem o tipo de aleturgia, o tipo de manifestação da verdade que ele quer estudar, aquele que necessita de um novo elemento cuja autoridade reside não no divino, mas no “eu”, no testemunho que esta consciência pode dar. A inclusão do eu, a manifestação de uma verdade a partir de uma subjetividade que se basta enquanto elemento vivo no mundo, entidade de consciência e de “dizer verdadeiro”, este é o termo que, incutido na ritualística da verdade, poderá servir para a analítica foucaultiana acerca do governo dos homens.

Um outro aspecto é ainda trazido por Foucault. Nosso autor vê no fechamento da peça um caráter adicional da ritualística da verdade sob a égide da subjetividade e isto especificamente quanto àquele suplemento, àquele excedente, àquele mais-além dos conhecimentos necessários ao poder. O oráculo, “vencido” por Édipo, exigiu exílio ou morte para o culpado, pois só assim Tebas estaria finalmente libertada. Quando a verdade emergisse,

158 FOUCAULT, Do governo dos vivos, p. 51.

que tal punição fosse aplicada ao criminoso. Porém, não é o que acontece quando se chega à verdade do parricídio cometido pelo rei. Porém, como atesta Foucault, “é suficiente que a verdade se mostre no seu ritual, se mostre em seus procedimentos, se mostre na sua aleturgia regrada, para que subitamente o problema da punição não se coloque mais e para que Tebas seja efetivamente liberada”, o que quer precisamente dizer, “espera-se nessa manifestação da verdade sob a forma da subjetividade efeitos que estão para além da ordem do conhecimento, mas que são da ordem da salvação e da libertação para cada um e para todos”160. Para além do conhecimento praticado ou da regra estrita, existiria um ganho final, uma recompensa derradeira para o sujeito quando sujeitado, constrangido a manifestar sua verdade pura e plena em consciência.

Sendo assim, consolida-se o objetivo de Foucault nesse curso em específico: o estudo do governo dos homens pela manifestação da verdade sob a forma da subjetividade. Ou, mais especificamente, o estudo das razões que levam os homens a dizerem “eu obedeço” enquanto manifestam a verdade de si mesmos, como se dissessem “eis aquilo que eu sou, eu que obedeço; eis o que eu sou, eis o que eu quero, eis o que eu faço”161.