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No período helenístico e sob o Império, o modelo pedagógico de Platão é substituído por um modelo médico. Aí ocorre uma disseminação do preceito “cuida de ti mesmo” de forma que ocupar-se de si não constituirá somente uma preparação para a vida política, mas um princípio geral. Cuidar de si passa a ser uma maneira de viver, uma incumbência que se dá ao longo da vida. Desta forma, outros modos de cuidado consigo passam a valer muito além do conhecimento de si:

As técnicas de si da filosofia estóica, como a carta dirigida aos amigos, revelando o si mesmo pelo exercício da escrita, ou o exame de si mesmo e de sua consciência, compreendendo a avaliação daquilo que foi feito durante o dia, servindo até como uma preparação para o bom sono, e a askêsis, um exercício de rememoração dos logoi, os preceitos do mestre, processo de intensificação da subjetividade, não uma mera revelação do si secreto.

Por conta desta forte disseminação do preceito epimeleisthai sautou nos séculos I e II, as três condições que caracterizavam o cuidado de si no Alcibíades – ser um

220 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 70. 221 Ibidem, p. 98.

jovem aristocrata; procurar o exercício do poder; cuidar de si tão somente através do conhecimento – vão romper-se, aparentemente desaparecendo.

Primeiro, ocupar-se consigo tornou-se um princípio geral e incondicional, um imperativo que se impõe a todos durante todo o tempo e sem condição de status. Segundo, a razão de ser de ocupar-se consigo não é mais uma atividade bem particular, a que consiste em governar os outros. parece que ocupar-se consigo não tem por finalidade última este objeto particular e privilegiado que é a cidade, pois, se se ocupa consigo agora, é por si mesmo e com finalidade em si mesmo. [...] no tipo de cuidado de si do Alcibíades temos uma estrutura um pouco complexa na qual o objeto do cuidado é o eu, mas a finalidade é a cidade, onde o eu está presente a título apenas de elemento. A cidade mediatizava a relação de si para consigo, fazendo com que o eu pudesse ser tanto objeto quanto finalidade, finalidade contudo unicamente porque havia a mediação da cidade. [...] no cuidado de si da forma como foi desenvolvido pela cultura neoclássica no florescimento da idade de ouro imperial, o eu aparece tanto como objeto do qual se cuida, algo com que se deve preocupar, quanto, principalmente, como finalidade que se tem em vista ao cuidar-se de si. Por que se cuida de si? Não pela cidade. Por si mesmo. [...] terceiro traço, o cuidado de si não mais se determina manifestamente na forma única do conhecimento de si. […]222

Desta forma, o preceito “cuida de ti mesmo” deixa de ser um imperativo ligado a um déficit pedagógico localizado entre a adolescência e a idade adulta, passando a ter como centro de gravidade esta idade adulta e a durar a vida toda.

A distinção bem marcada entre corpo e alma em Platão será repensada pelos epicuristas e pelos estoicos. O corpo emergirá como objeto de preocupação e, então, ocupar- se de si será, “a um tempo, ocupar-se com a própria alma e com o próprio corpo”223.

Também não mais se tratará, no helenismo, de fazer-se uma pedagogia cujo fim seja o bom governo de um povo, mas, independente de qualquer outro fim, de formar indivíduos que possam suportar, como convém, “todos os eventuais acidentes, todos os infortúnios possíveis, todas as desgraças e todos os reveses” que possam atingi-los.

[...] Trata-se, consequentemente, de montar um mecanismo de segurança, não de inculcar um saber técnico e profissional ligado a determinado tipo de atividade. Esta formação, esta armadura se quisermos, armadura protetora em relação ao resto do mundo, a todos os acidentes ou acontecimentos que possam produzir-se, é o que os gregos chamavam de paraskheué, aproximadamente traduzido por Sêneca como

instructio. A instructio é esta armadura do indivíduo em face [dos] acontecimentos e

não a formação em função de um fim profissional determinado. Portanto, nos séculos I-II, encontramos este lado formador da prática de si”.224

A cultura platônica do diálogo cede lugar a uma cultura do silêncio e à arte da escuta. Em Platão, o indivíduo deve descobrir a verdade que se esconde nele. Para os estoicos a verdade está nos logoi, os preceitos do mestre. O discípulo memoriza o que escutou, convertendo as palavras do mestre em regras de conduta com o objetivo de “subjetivar” a

222 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, pp. 103-104. 223 Ibidem, p. 134.

verdade. Através de uma técnica como a askêsis, que compreende certos exercícios nos quais o sujeito tenta verificar se é ou não capaz de fazer face aos acontecimentos, o sujeito vê se “assimilou suficientemente essa verdade a ponto de transformá-la em uma ética”225.

Foucault observa, ainda, que o preceito “cuida de ti mesmo” implicava uma escolha de um modo de vida, de modo que não se estabeleceu como uma lei de fato. Na cultura helenística e romana, tomou forma em práticas, instituições e grupos que eram distintos entre si, quase sempre fechados e excludentes uns dos outros. Portanto, este se manifestava e era praticado somente no interior e na distinção de um grupo, o que impede que se pense numa universalização deste preceito afinal226.

Para resumir as características da prática de si durante os séculos I e II de nossa era, podemos fazer os seguintes apontamentos:

1) imbricação da prática de si com a fórmula geral da arte de viver, deixando de ser aquela “espécie de juntura entre a educação dos pedagogos e a vida adulta”, passando a caracterizar uma exigência que devia acompanhar toda a extensão da existência, tendo como “centro de gravidade” a idade adulta. A função mais crítica que formadora que o cuidado de si passa a ter tornaria mais claro o parentesco com a medicina, desvinculando-o um pouco da pedagogia. Enfim, preparação para a velhice, que aparece como um momento privilegiado da existência, ponto ideal da completude do sujeito. “Para ser sujeito é preciso ser velho”227;

2) o cuidado de si é formulado como um princípio ou regra incondicionado, ou seja, aplicável e praticável por todos, sem nenhuma condição prévia de status e sem nenhuma finalidade técnica, profissional ou social. O objetivo da prática de si é a relação consigo, é o eu, que se perfaz como a meta terminal da vida para todos, mas, ao mesmo tempo, um forma rara de existência. “Meta terminal da vida para todos os homens, forma rara de existência para alguns e somente alguns”.228 Existiam formas de rarefação desta incondicionalidade do

225 “Quels sont les principaux traits qui caractérisent l’askêsis? L’askêsis comprend un certain nombre

d'exercices, dans lesquels le sujet se met en situation de vérifier s'il est capable ou non de faire face aux événements et d'utiliser les discours dont il est armé. Le but est de tester la préparation. Le sujet a-t-il suffisamment assimilé cette vérité pour la transformer en une éthique et se comporter comme il le doit en présence d'un événement?” Cf. Les techniques de soi. In: FOUCAULT, Michel. Dits et écrits III. Paris: Galimard, 1994b, p. 800.

226 Ibidem, p. 145. Para Pierre Hadot, segundo Jurandir Freire Costa, Foucault utiliza indevidamente o material

histórico da antiguidade na pressa de fundamentar suas próprias crenças, não sendo verdade que o pensamento estoico sustente a ideia de uma ética sem universais. Para Hadot, a ética da alegria dos estoicos não se centrava no “eu” singular de cada sujeito, mas era expressão da “melhor parte do eu”, daquela orientada pelo “bem verdadeiro”, de acordo com a “razão e a natureza universais”. “Havia, segundo este autor [Hadot], um apelo ao universalismo moral nos estóicos (sic) que Foucault desprezou, em benefício de suas concepções.” Cf. COSTA, Jurandir Freire. O sujeito em Foucault: estética da existência ou experimento moral. Revista Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, Nº 7, V. 1-2, São Paulo, Outubro de 1995, p. 124.

227 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 155. 228 Ibidem, p. 156.

princípio, tais como o pertencimento a um grupo religioso, a segregação pela cultura. “Somente alguns são capazes de si, muito embora a prática de si seja um princípio dirigido a todos”229;

3) Para que a prática de si alcance seu objetivo, a saber, o eu, o outro se faz

indispensável na medida em que o mestre é o operador na reforma do indivíduo e na sua

formação como sujeito. A relação ao outro era tão necessária no período helenístico e romano quanto fora na época clássica, fundando-se, “ainda e sempre”, no fato da ignorância. Mas, nestes séculos, de acordo com Foucault, virá a se fundamentar no fato de que “o sujeito é menos ignorante do que malformado, ou melhor, deformado, vicioso, preso a maus hábitos”.230 Portanto, “não é para um saber que substituirá sua ignorância que o sujeito deve tender”, mas “para um status de sujeito que ele jamais conheceu em momento algum de sua existência”.231 É com o fim de atingir tal estatuto que o mestre virá intervir, não mais como o “mestre de memória”, aquele que, sabendo que o outro não sabe, ou transmite-lhe o que não sabe ou mostra-lhe como proceder. “Não é mais neste jogo que o mestre vai inscrever-se. Doravante, o mestre é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o mediador na relação do indivíduo com sua constituição de sujeito.”232