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Uma mudança de si, em si, é tema apropriado por toda a filosofia antiga. Esta é a ideia de que o acesso à verdade, como prometido pela filosofia, só poderá dar-se através da mudança de nosso modo de ser.

Da aproximação entre arte de viver e cuidado de si nos séculos I e II da era cristã, deflagrou-se uma verdadeira cultura de si. A partir disso, perguntar pela melhor forma de viver passa a ser, no limite, idêntico à pergunta pela melhor forma de buscar a si próprio, de buscar o eu. “Cada vez mais a tékhne toa bíou (a arte de viver) vai agora girar em torno da pergunta: como devo transformar meu próprio eu para ser capaz de aceder à verdade?”256

Foucault acata a percepção de Pierre Hadot de que a conversão tem dois grandes modelos na cultura ocidental: o da epistrophé platônica e o da metanoia cristã. Estes dois modelos são apresentados como uma “polaridade permanente no pensamento, na espiritualidade e na filosofia ocidentais”. A questão, para Foucault, é que dentro destes modelos não se consegue abarcar o que se passou nos séculos I e II: “parece-me muito difícil fazer valer estes dois modelos, estes dois esquemas como crivo de explicação e de análise capaz de fazer compreender o que se passou no periodo que, de modo geral, vai de Platão ao cristianismo”257.

Entre Platão e o cristianismo, foi concebido o “movimento pelo qual o sujeito é chamado a converter-se a si, a dirigir-se a si mesmo ou a retornar a si”258. Entre epistrophé e

metanoia haveria uma ponte que teria propiciado a mudança de um a outro. A ponte, aquilo

que se encontra no meio, o que foi apagado do processo, o passo cujas pegadas foram ocultadas, esta é a conversão, nos séculos I e II, nos pensamentos epicurista, cínico e estóico.

A epistrophé, o modelo da conversão platônica, seria uma maneira de desviar- se das aparências, fazendo um retorno a si, através das reminiscências, e constatando sua própria ignorância para, daí, decidir-se pelo cuidado de si. A conversão seria dada, neste caso, pela rememoração, pela reminiscência, movimento fundamentado nas concepções de realidade dividida entre este e outro mundo, de divisão do ser do homem entre corpo e alma, com a decorrente liberação da alma em relação ao corpo-prisão, e pelo privilégio do conhecimento como motor de acesso à verdade.

256 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 219. 257 Ibidem, p. 266.

Na cultura de si helenística e romana, não são essas separações que dimensionam, que ditam a noção de conversão do indivíduo. Não se busca um mundo anterior, ao mesmo tempo em que ulterior, em relação ao mundo material para que a arte de vida seja alcançada. Almeja-se, isso sim, alcançar aquilo que, de fato, dependa de nós. A liberação é de si em relação ao mundo das necessidades. O corpo, neste caso, não é denegrido. Estabelece-se “uma relação completa, consumada, adequada de si para consigo”, não havendo cisão com o corpo, mas “adequação de si para consigo”. Quanto ao conhecimento, “será o exercício, a prática, o treinamento, a áskesis, que constituirá o elemento essencial”259.

A metanoia cristã implica uma súbita mutação, um acontecimento que, de uma só vez, transforma o modo de ser do sujeito, ocasionando uma passagem entre duas realidades contrárias, “da morte à vida, da mortalidade à imortalidade, da obscuridade à luz”. Estas características levam à percepção de uma última condição para a conversão cristã, a ruptura no interior do próprio sujeito, pois o eu que se converte é um eu que renuncia a si mesmo, ou seja, que renasce em outro após morrer para si mesmo e que “nada tem a ver, nem no seu ser, nem no seu modo de ser, nem nos seus hábitos, nem no seu éthos, com aquele que o precedeu, é isto que constitui um dos elementos fundamentais da conversão cristã”260.

No helenismo, na época romana, não há ruptura, pois o eu é o fim. A ruptura ocorre naquilo que cerca o eu, “para que ele não seja mais escravo, dependente e cerceado”, de modo que ele, o eu, retire-se diante do inimigo, fuja daquilo que possa vir a escravizá-lo. Na metanoia cristã ocorreria como que um processo de trans-subjetivação, uma mutação no interior do próprio eu. Nos séculos I e II, uma auto-subjetivação.

No estudo desta conversão que se encontra depois de Platão e antes do cristianismo, Foucault, tenta caracterizá-la, inicialmente, através do problema do “volver o olhar para si mesmo”. Volver o olhar para si é o mesmo que desviar o olhar do outro. Que é o outro? É a agitação cotidiana, é o mundo chamando para que se dê atenção a ele. E porque se há de buscar o mundo? Por curiosidade que é a qualidade de dar mais atenção aos outros do que a si mesmo. Também é, segundo Plutarco261, a capacidade de imiscuir-se no que não lhe diz respeito, capacidade esta que poderia ser redirecionada, através de exercícios, para coisas “mais agradáveis do que os males ou os infortúnios do outro”: exercitar a memória, praticar caminhadas sem olhar para os lados e recusar-se a satisfazer o apelo ocasional da curiosidade, são os conselhos de Plutarco, exercícios de não-curiosidade para “ser como um cão preso à coleira, ter o olhar bem reto, pensar somente em um objetivo e uma meta”. E para quê? Para

259 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 259. 260 Ibidem, p. 260.

concentrar-se em si mesmo, desviando-se dos outros e escutando unicamente o “guia interior”.

De acordo com Foucault, nada disso tem a intenção de tornar o sujeito um objeto de conhecimento, mas uma “consciência permanente e sempre atenta desta tensão com a qual nos dirigimos à nossa meta. O que nos separa da meta, a distância entre nós e a meta deve ser o objeto, repito, não de um saber de decifração, mas de uma consciência, uma vigilância, uma atenção”262.

Mas desviar o olhar do mundo em direção a si quer dizer que o mundo e o si mesmo são duas realidades distintas e, portanto, para que haja a conversão do olhar, faz-se necessário buscar as “coisas da natureza humana” a partir de um conhecimento que seja de fato útil ao homem? Foucault dirá que não e que “a distinção está no modo do saber e na maneira como aquilo que conhecemos sobre os deuses, os homens, o mundo, poderá ter efeito na natureza do sujeito, ou melhor dizendo, na sua maneira de agir, no seu êthos”263. Neste caso, o que há a conhecer são as relações do sujeito com tudo o que o cerca, como se fossem prescrições de conduta para o indivíduo. Para o cínico Demétrius, uma vez que se possua tais conhecimentos, o modo de ser do sujeito se achará transformado. O saber útil, portanto, será o saber “etopoético”, aquele que transforma o êthos do sujeito. “O conhecimento útil, o conhecimento em que a existência humana está em questão, é um modo de conhecimento relacional, a um tempo assertivo e prescritivo, e capaz de produzir uma mudança no modo de ser do sujeito”264.

Nos epicuristas, tem-se a physiología, modalidade do saber da natureza enquanto filosoficamente pertinente para a prática de si, distinguindo-se da noção de paidéia. Esta noção, para Epicuro, é aquele de um saber da cultura cuja finalidade é a glória, a ostentação que constrói a reputação das pessoas, uma espécie de saber de jactância, formadora de “artistas do verbo”. A physiología, pelo contrário, prepara, equipa, arma o sujeito contra todas as circunstâncias possíveis da vida, na medida em que o dota da coragem necessária para abolir o temor, da autárkeia suficiente para depender somente de si mesmo e do orgulho para com os produtos de sua própria ação e não daquilo alferido de modo circunstancial. Afinal, a physiología é:

[…] o conhecimento da natureza, da physis, enquanto conhecimento suscetível de servir de princípio para a conduta humana e critério para fazer atuar nossa liberdade; enquanto é também suscetível de transformar o sujeito (que era, diante da natureza, diante do que lhe haviam ensinado sobre os deuses e as coisas do mundo, repleto de

262 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 272. 263 Ibidem, p. 290.

temores e terrores) em um sujeito livre, um sujeito que encontrará em si mesmo a possibilidade e o recurso de seu deleite inalterável e perfeitamente tranqüilo. […]265