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Em um outro momento, Foucault definirá a parresía a partir de quatro condições: uma formal, que é a democracia; uma de fato, a ascendência e a superioridade de alguns; uma da verdade, a necessidade de um logos sensato; e, uma moral, a coragem na luta. “É esse retângulo, com um vértice constitucional, o vértice do jogo político, o vértice da verdade, o vértice da coragem, creio, que constitui a parresía”349.

Ele tenta, então, compreender a questão da aparente contradição entre parresía e democracia na sua relação de mútua implicação, pois, quando uma noção depende da outra para poder atuar, surge um problema relativo ao bom desenvolvimento de ambas as práticas.

347 FOUCAULT, O governo de si e dos outros, p. 148. 348 Ibidem, p. 149.

Foucault350 se valerá de Tucídides, em seus textos consagrados a Péricles e à democracia pericliana, para responder à pergunta: “como a democracia pode suportar a verdade?” Nos três grandes discursos que Tucídides põe na boca de Péricles, nos livros I e II da Guerra do Peloponeso, tem-se um desenvolvimento do bom ajuste que pode haver entre as duas práticas.

No “discurso da guerra”, que trata da assembléia reunida em Atenas para debater o ultimato espartano sobre a Grécia para que esta renuncie a algumas de suas conquistas imperiais, Tucídides emite sua opinião em meio ao debate. A condição formal para o jogo da parresía está dada pela politeía e sua isegoria.

Péricles avança até a tribuna, utilizando-se, para tal, da sua condição para o ato parresiástico, sua ascendência como filho de Xantipo e como o homem mais influente de Atenas, hábil na palavra e na ação. Ele aconselha que não se ceda ao ultimato espartano, acrescentando que “as opiniões humanas variam conforme as circunstâncias”, mas “os conselhos que devo lhes dar são, eu vejo, sempre os mesmos, sempre idênticos”351. Este é a condição de verdade do logos sensato.

Quanto ao risco, a condição moral, ela se encontra quando Péricles irá dizer que da mesma forma que os cidadãos se atribuem a glória da vitória, deverão atribuir-se o insucesso, a derrota, quando os acontecimentos não se desenrolam da forma esperada. “às vezes os negócios públicos, assim como as resoluções individuais, frustram as previsões. Assim, se nossos cálculos se mostram falhos, costumamos atribuir a culpa disso ao destino”.

Vê-se surgir nesta passagem o problema do risco pertencente ao pacto parresiástico, pois ele diz a verdade aos cidadãos que a aceitam se quiserem, mas, se aceitarem, devem considerar que serão solidários nas consequências, quaisquer que sejam.

Esse é o bom ajuste da democracia e do dizer-a-verdade, a boa parresía.

No discurso dos mortos, Péricles diz: “no que concerne aos diferentes particulares, a igualdade a todos é garantida pelas leis; mas, no que concerne à participação na vida pública, cada um obtém a consideração em função de seu mérito, e a classe a que pertence importa menos que seu valor pessoal”352. A isegoria assegura que o direito de falar não seja função do nascimento ou da fortuna. Mas apenas o mérito pessoal garantirá a distinção, a ascendência em meio aos outros.

Segundo Foucault, a democracia, no fundo, é isso: um jogo onde se define um estatuto igual para todos. Sua articulação com a parresía se dará em um circuito formado pela

350 FOUCAULT, O governo de si e dos outros, p. 160. 351 Ibidem, p. 162.

ascendência, pelo discurso verdadeiro, pela coragem e, daí, pela formulação e aceitação de um interesse geral.

No discurso dramático da peste, os atenienses se voltam contra Péricles após os reveses militares e a peste em Atenas. O pacto parresiástico pela verdade é rompido e é necessário que Péricles convoque uma assembléia para fazer ver aos atenienses o que é uma boa democracia. Ele dá quatro características para o exercício da boa parresía: saber distinguir o interesse público; apontá-lo nitidamente a seus concidadãos; ser dedicado ao interesse do Estado; não ser corrupto.

O que seria a má parresía, neste caso? A má parresía seria a “supressão da diferença do dizer-a-verdade no jogo da democracia”, caracterizando-se no fato de que qualquer um pode falar, a partir de isegoria, e onde o mérito não conta mais como forma de ascendência sobre aqueles que não possuem qualidades ou nascimento. Caracteriza-se, também, pelo dizer a opinião mais corrente, conformidade com o que qualquer um pode dizer e pensar. Em vista disso, buscam-se os resultados dessa prática que são o sucesso e a segurança de adular a opinião da maioria.

A questão que resta é que a possibilidade de dizer-a-verdade “não se reparte e não pode se repartir igualmente na democracia, de acordo com a forma da isegoria”, ou seja, “não é porque todo o mundo pode falar que todo o mundo pode dizer a verdade”353. Para Foucault o discurso verdadeiro estaria na própria raiz do processo de governamentalidade.

[...] São esses, a meu ver, os dois grandes paradoxos que estão no centro das relações entre a democracia e o discurso verdadeiro, no centro das relações entre a parresía e a politeía: uma dynasteía indexada ao discurso verdadeiro e uma politeía indexada à exata e igual divisão do poder. Pois bem, numa época, a nossa, em que se gosta tanto de colocar os problemas da democracia em termos de distribuição do poder, de autonomia de cada um no exercício do poder, em termos de transparência e de opacidade, de relação entre sociedade civil e Estado, creio que talvez seja bom recordar essa velha questão, contemporânea do próprio funcionamento da democracia ateniense e das suas crises, a saber, a questão do discurso verdadeiro e da cesura necessária, indispensável e frágil que o discurso verdadeiro não pode deixar de introduzir numa democracia, uma democracia que ao mesmo tempo torna possível esse discurso verdadeiro e o ameaça sem cessar. […]354

Para ele, dois paradoxos marcam a relação entre parresía e democracia. A mútua implicação entre ambos os conceitos, sua mútua dependência, onde um serve como condição de existência ao mesmo tempo para o outro, e sua mútua contradição que decorre da sua própria relação onde a efetivação de um vai contra a efetivação do outro.

353 FOUCAULT, O governo de si e dos outros, p. 169. 354 Ibidem, p. 170.

Foucault aponta também um certo desdobramento da parresía que, de política, passará a ser psicagógica, ou seja, tratará da condução da alma dos indivíduos. Neste caso, ver-se-á a figura do filósofo como aquele que diz a verdade na cena política a fim de guiar a política da cidade, de forma indireta até, pela direção da alma daquele que dirige a cidade.

Estudando Platão, Foucault buscará dessenredar um sentido político-filosófico para a palavra parresía. É o que veremos a seguir.