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A parresía, o fato de tudo dizer com franqueza, a abertura de coração, de palavra, de linguagem, que faz com que se diga o que se tem a dizer, o que se tem vontade de dizer e o que se pensa dever dizer porque é necessário, útil, verdadeiro, é essencialmente uma qualidade moral que se requer de todo sujeito que fala. “Posto que falar implica dizer o verdadeiro, como não impor, à maneira de uma espécie de pacto fundamental, a todo sujeito que toma a palavra, que diga o verdadeiro porque o crê verdadeiro?”288.

A parresía serve ao filósofo como regramento dos elementos verbais de que ele disporá para agir sobre a “alma” do outro. O que a tékhne é para a retórica, a parrehsia

286 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, p. 433. 287 Ibidem, pp. 438-439.

será para a filosofia. Será uma técnica, mas também uma ética, será uma arte, mas também uma moral.

[…] Para que o silêncio do discípulo seja um silêncio fecundo, para que, no fundo deste silêncio, se depositem como convém as palavras de verdade que são as do mestre, e para que o discípulo possa fazer destas palavras algo de seu, que o habilitará no futuro a tornar-se ele próprio sujeito de veridicção, é preciso que, do lado do mestre, o discurso apresentado não seja um discurso artificial, fingido, um discurso que obedeça às leis da retórica e que vise na alma do discípulo somente efeitos patéticos. É preciso que não seja um discurso de sedução. É preciso que seja um discurso tal que a subjetividade do discípulo possa dele apropriar-se e que, apropriando-se dele, o discípulo possa alcançar o objetivo que é o seu, a saber, ele próprio. Ora, para isto é preciso que, do lado do mestre, haja um certo número de regras, regras que, uma vez mais, incidam não sobre a verdade do discurso, mas sobre a maneira pela qual o discurso de verdade será formulado. E estas regras da formulação do discurso de verdade constituem a parresía […]289

O discípulo, para efetivamente receber o discurso verdadeiro da forma que convém, precisa recebê-lo na forma geral da parresía, esquivando-se de dois inconvenientes, de duas adversidades para os fins almejados pela técnica/ética parresiástica: uma, a adversidade moral da lisonja; outra, a adversidade técnica da retórica.

A lisonja impede que se conheça a si mesmo como se é. O lisonjeador é aquele que impede seu superior de ocupar-se consigo mesmo da forma que convém, uma vez que, como diretor, estará exposto a uma falsa imagem de si mesmo, colocando-se em um condição de inferioridade em relação ao lisonjeador. A lisonja torna impotente e cego aquele a quem se dirige.

Na parresía o discurso verdadeiro trasmitido será interiorizado pelo receptor na forma da apropriação daquele discurso, de modo que este último não mais necessitará da figura do transmissor da mensagem. Esta lógica parresiástica consistirá na própria antilisonja, pois seu resultado final será a dispensa da relação com o outro: “a verdade que na parresía passa de um ao outro sela, assegura, garante a autonomia do outro, daquele que recebeu a palavra relativamente a quem a pronunciou”290.

Já a retórica é a arte da persuadir sobre a verdade de uma não-verdade, e vice- versa. O objetivo é convencer o ouvinte de que uma coisa é outra coisa que não ela mesma. A arte de vencer uma disputa verbal. Como na parresía só pode haver verdade, como ela consiste na transmissão nua da verdade, percebe-se a clara incompatibilidade de propósitos e de usos. Por outro lado, ela, a parresía, não é organizada de forma a poder ser ensinada ou transmitada enquanto arte consolidade para a verdade, pois trata do conteúdo do discurso, e não da forma deste discurso. As regras da parresía são definidas por kairós, a ocasião,

289 FOUCAULT, A hermenêutica do sujeito, pp. 442-443. 290 Ibidem, p. 458.

ocasião que é exatamente a situação dos indivíduos em relação uns aos outros e o momento escolhido para dizer a verdade.

Em ambas as formas, trata-se de agir sobre os outros, contudo, na parresía não se trata de convencê-los a fazer algo que interesse ao mestre, àquele que fala, “para dirigi-los ou incliná-los a fazer uma ou outra coisa”, mas “de conseguir que cheguem a constituir por si mesmos e consigo mesmos uma relação de soberania característica do sujeito sábio, do sujeito virtuoso, do sujeito que atingiu toda a felicidade que é possível atingir neste mundo”291.

A oposição, portanto, é clara. Diferença técnica da lisonja, diferença moral da retórica.

A parresía parte do princípio de que nunca se pode curar sem saber do que se deve curar, o que leva à necessidade de recorrer a um outro para curar as próprias paixões e erros. Portanto, o outro consiste em uma necessidade estrutural. A única condição é que este outro não tenha em relação a nós nenhum sentimento de indulgência ou de hostilidade, sendo, portanto, um desconhecido, mas a cujas qualidades morais, como franqueza e ser um homem de bem, o dirigido possa estar sujeito.

Na parresía nunca se tratará de impressionar por grandes arroubos. A verdadeira relação ou elo entre quem dirige e quem é dirigido se dá na medida do acordo entre linguagem e conduta daquele que se utiliza de linguagem, daquele que discursa. Portanto, edificação de uma oposição entre eloqüência popular e franco-falar, entre um discurso violento e enfático e conselhos que devemos dar uns aos outros, lançando “na alma pequenas sementes que quase não são visíveis, mas poderão germinar ou ajudar a [fazer] germinar, as sementes de sabedoria que a natureza depositou em nós (as sementes, os germes de razão)”292.