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2.2 O governo dos homens

2.2.2 A direção de consciência ou das almas

115 FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 173. 116 Ibidem, p. 174.

Quanto à diferença entre o pastorado como encontrado no Oriente pré-cristão e sua forma assumida com o cristianismo, Foucault vai notar que o tema do pastorado será bem enriquecido pelo pensamento cristão, principalmente pelo fato de no cristianismo se desenvolver uma imensa rede institucional “que de fato foi coextensiva à Igreja inteira, logo à cristandade, a toda a comunidade do cristianismo”118. Em vista disso, desenvolveu-se “uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo da sua existência”119.

Fazendo uma análise mais pormenorizada, Foucault questionará: “O que especifica, o que distingue o pastorado, tanto da magistratura grega quanto do tema hebraico do pastor, do bom pastor?”. Para tanto, ele apresentará três elementos pertinentes à estrutura conceitual do pastorado na forma assumida antes de sua apreensão pelo cristianismo: a condução para a salvação, a prescrição da lei e o ensino da verdade. Salvação, lei, verdade, estes são os elementos característicos do pastorado mediterrâneo. Para nosso autor, o pastorado cristão é especificado noutro plano.

O pastor tem a obrigação de conduzir o rebanho para a salvação. No pastorado cristão, esta responsabilidade se complexifica, pois o pastor será responsável pela integridade de todos e de cada um em particular, responsabilidade integral ao mesmo tempo em que paradoxal, dado que a saúde de um em particular pode vir a ser mais importante do que a de todos. No final, o pastor sacrifica sua vida, sua saúde, seu corpo, em favor da ovelha, aceitando tomar sobre si o pecado das ovelhas para que estas não tenham de pagar. Ele pagará120. As fraquezas das ovelhas irão constituir o seu mérito enquanto guia para a salvação daquelas.

O pastor deve zelar para que os indivíduos se submetam à ordem divida, à lei de Deus. Porém, o cristianismo não é uma religião da lei, mas da pura vontade de Deus para cada ovelha em particular. O pastorado cristão, distinto da prática grega, organizará uma “instância da obediência pura”, a obediência como tipo de conduta unitária, conduta altamente valorizada e que tem o essencial da sua razão de ser nela mesma121, dotando a relação da ovelha com seu pastor de um caráter de dependência integral: obedecer passa a ser “pôr-se inteiramente na dependência de alguém por ser alguém”; relação sem finalidade, sem resultado, a não ser a pura e plena obediência às ordens tanto mais absurdas quanto se queiram (o fim da obediência é a obediência enquanto fim).

118 FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 218. 119 Ibidem, p. 219.

120 Ibidem, p. 227. 121 Ibidem, p. 230.

[…] o pastorado faz surgir toda uma prática da submissao do indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é claro, mas fora do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhuma generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que não leva a nenhum domínio, nem de si nem dos outros. É um campo de obediência generalizada, fortemente individualizado ern cada urna das suas manifestações, sempre instantâneo e limitado, e tal que mesmo os pontos de domínío nele presentes ainda são efeitos de obediência.

O pastor ensina a verdade, a única que suas ovelhas podem aceitar para que consigam aceitar alcançar a salvação. No pastorado cristão, o pastor ensina, mas com o seu próprio exemplo: “se ele não dá uma boa lição com sua própria vida, o ensino teórico, verbal, que vier a ministrar se verá obscurecido por isso mesmo”122. Também não ensinará de forma geral, mas particular, em acordo à ovelha, sua condição, seus aspectos, de forma a dirigir sua conduta cotidiana, toda ela. E, a partir desse cotidiano, que ele vigiará, construir um saber perpétuo sobre a conduta de suas ovelhas: “ensino integral que implica, ao mesmo tempo, um olhar exaustivo do pastor sobre a vida das suas ovelhas”123. Ademais, não se deve simplesmente ensinar a verdade, mas dirigir a consciência de quem é ensinado. Não de forma circunstancial e voluntária, como na antiguidade grega, onde os sofistas armavam barracas para serem pagos por aqueles que queriam ser dirigidos, ser guiados em sua consciência, circunstancialmente.

Com o cristianismo, e sua prática pastoral de direção de consciência e de conduta, a coisa é outra. Não há essa voluntariedade do dirigido, e sim a obrigação de ter um diretor de consciência. Nem há uma circunstância motivadora. A direção é permanente, “a propósito de tudo e a pessoa vair ser dirigida durante toda a vida”124. Além do que o produto da direção de conduta e de consciência não é um maior controle de si, mas a extração de uma verdade de si mesmo a partir da produção de certo discurso para seu diretor de consciência. São essas novas relações, dos méritos e dos deméritos sacrificiais do pastor, da obediência absoluta da ovelha, da produção das verdades ocultas, é isso que constitui o “essencial, a originalidade e a especificidade do cristianismo, e não a salvação, não a lei, não a verdade”125.

Para Foucault, o pastorado vai consituir-se em um prelúdio da governamentalidade exatamente por não fazer agir os princípios da salvação, da lei e da verdade, por lhes dar uma nova roupagem e modo de ação sobre os indivíduos, perfazendo o seu governo. Uma responsabilidade integral e paradoxal por todos e cada um, a obediência

122 FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 238. 123 Ibidem, p. 239.

124 Ibidem, p. 241. 125 Ibidem, p. 242.

enquanto fim da ação, a produção de verdade por uma direção permanente de consciência, isto tudo elementos que favoreceram a governamentalidade ocidental.

Além disso, estes princípios discutidos acima vão potencializar o que Foucault chama de “modos de individualização” que se darão pela exclusão do egoísmo como forma central e nuclear do indivíduo e pela produção de uma verdade interior, secreta e oculta. Para Foucault, na história do pastorado está contida a história do sujeito, dada esta constituição típica do sujeito ocidental, fazendo com que o pastorado seja sem dúvida um dos momentos decisivos na história do poder nas sociedades ocidentais126.