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O sentido desta palavra população, até então, guardava relação com o repovoamento de uma área arrasada por alguma mortalidade dramática. Guardava um sentido de “repovoamento”. A partir do século XVIII, com o surgimento das ideias dos fisiocratas e dos economistas, a população aparecerá como um fenômeno da natureza, o que quer dizer que ela vai ser considerada um conjunto de processos que será preciso administrar no que ele tem de natural. Esta sua “naturalidade” se caracterizará pelo fato de, em sua essência, depender de uma série de variáveis para ser influenciada, nada como a simples imposição de uma lei, de uma obrigação legal para que se possa agir sobre sua vontade. A verdadeira influência sobre sua ação e vontade deverá ser dirigida ao seu desejo. Sob a ação do soberano, este desejo dos indivíduos era negado, vilipendiado em favor do desejo de um só. A população, pelo contrário, deverá ser afetada a partir do respeito a este seu desejo, dever-se-á dizer sim ao desejo dos indivíduos nesta população, este será o meio de atingí-la, tendo em conta a série de variáveis que a influenciam e tendo em conta, também, a regularidade dos acontecimentos dentro dela, a regularidade de seus fenômenos. Portanto, a população será103:

[…] um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e regularidades até nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do

102 FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 86

103 Este tipo de análise é o que chamamos de genealogia: descaracterizar um conceito, despedaçando-o, fazendo

desejo produzindo regularmente o benefício de todos e a propósito do qual pode-se identificar certo número de variáveis de que ele depende e que são capazes de modificá-lo. […] Tem-se uma população cuja natureza é tal que é no interior dessa natureza, com ajuda dessa natureza, a propósito dessa natureza que o soberano deve desenvolver procedimentos refletidos de governo.104

Assim, o gênero humano passará a figurar ao lado de outras espécias animais, tratadas na forma biológica própria de uma população cujos fenômenos poderão ser observados e trabalhados em sua regularidade. Para Foucault, o problema político moderno estará absolutamente ligado à população. Esta será o objetivo daquele. Os indivíduos em sua multiplicidade já não mais serão pertinentes enquanto objetivo, apenas enquanto instrumento, intermédio ou condição para obter algo no nível da população.105 A própria posição que a família ocupava dentro deste problema já assumirá outro nível, abaixo do nível que a população passará a ter.

Quanto a isso, Foucault dirá que a família, tratada separadamente das razões da soberania, pois que estas razões se dirigiam à própria lei enquanto meio e fim da soberania, terá papel fundamental para as artes do governo: a família será o modelo de ação dos governantes, os governos atuarão como o pai da família na sua atenção com a casa e seus residentes.106

Se “economia”, à época, consistia simplesmente no governo da família, a arte de governo virá a ser aquilo que pode responder à pergunta:

como introduzir a economia – isto é, a maneira de administrar corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas, como fazê-lo no seio de uma família, como pode fazê-lo um bom pai de família que sabe dirigir sua mulher, seus filhos, sua criadagem, que sabe fazer prosperar a fortuna da sua família, que sabe arranjar para ela as alianças que convêm –, como introduzir essa atenção, essa meticulosidade, esse tipo de relação do pai de família com sua família na gestão de um Estado?107

Foucault analisa a referência que uma obra como “O príncipe” de Maquiavel tem dentro do debate e da conjuntura política da modernidade. Esta obra traz, em sua grandiloquência política e moral de Estado, conselhos para que um soberano mantenha seu território. O território consistiria no elemento fundamental nesta obra. Houve um movimento contrário a “O príncipe” de Maquiavel, na figura de muitos autores e tratados anti-Maquiavel, indo na direção do pensamento de uma arte distinta para o Estado moderno, arte esta que

104 FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 98. 105 Ibidem, pp. 437-438.

106 “[…] Em outras palavras, até o surgimento da problemática da população, a arte de governar não podia ser

pensada senão a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. […] de modelo, a família vai se tornar isntrumento, instrumento privilegiado para o bom governo. [...]”. In: FOUCAULT, op. cit., p. 139.

buscava atender à questão sobre o governo de Estado baseado no cuidado que aquele que governa uma família tem para com esta última.

Este é um modo de pensar o governo para além da manutenção do território, território este que seria apenas mais um elemento dentro do “complexo de homens e de coisas” a serem administradas pelo Estado. Assim, esboça-se a diferença entre um e outro modo de operação político. A finalidade é distinta: para os teóricos da soberania, os fins, o bem comum a ser atingido, só o será com a estrita obediência à lei, portanto, sua finalidade é circular ao fazer referência ao próprio exercício da soberania. Já para os pensadores da arte de governo, não se tratará de impor uma lei aos homens, mas de utilizar táticas com o fim de maximizar os processos que ela opera, melhorando a sorte das populações108.

Desta forma, Foucault vai identificar a “meta essencial do governo”, no século XIX, como sendo a introdução desta racionalidade econômica primordial no seio do exercício político. A arte de governar será, portanto, o exercício do poder na forma e segundo o modelo da economia.

Enfim, teríamos um processo segundo o qual

a ciência do governo, o recentramento da economia em outra coisa além da família e, enfim, o problema da população estão ligados uns aos outros. Foi através do desenvolvimento da ciência do governo que a economia pôde recentrar-se num certo nível de realidade que caracterizamos agora como econômica, e foi também através do desenvolvimento da ciência do governo que foi possível recortar o problema específico da população. Mas poder-se-ia igualmente dizer que é graças à percepção dos problemas específicos da população e graças ao isolamento desse nível de realidade que se chama economia, que o problema do governo pôde enfim ser pensado, refletido e calculado fora do marco jurídico da soberania. E essa mesma estatística que, nos marcos do mercantilismo, nunca tinha podido funcionar, senão no interior e, de certo modo, em benefício de uma administração monárquica que funcionava, por sua vez, na forma da soberania, essa mesma estatística vai se tornar o fator técnico principal, ou um dos fatores técnicos principais, desse desbloqueio.109

No final desta aula, Foucault se curva ao óbvio: se pudesse mudar o nome do curso, este passaria a se chamar governamentalidade. Isto desfaz o acordado no início do curso quando apresenta seu objetivo naquele momento: começar o estudo de algo que ele havia chamado de biopoder e que apresentara no curso passado.

Assim, a governamentalidade passa a ser o objetivo em conta, deixando claro que o estudo do biopoder cedeu de fato lugar a um marco mais amplo onde aquele se inscreveria. Mas, como precisar o conceito de governamentalidade, afinal?

108 “[…] É a população, portanto, muito mais que o poder do soberano, que aparece como o fim e o instrumetno

do governo: sueito de necessidades, de aspirações, mas tambmḿe obeto nas mãos do governo. [...]”. In: FOUCAULT. op. cit., p. 140.

Por esta palavra, devemos entender: instituições, análises, cálculos e táticas para o exercício da forma de poder cujo alvo principal é a população, cujo saber é a economia política e cujo instrumento técnico essencial são os dispositivos de segurança próprios ao governo das populações.110 Portanto, esta é a noção, genealogicamente apreendida, que congrega os três elementos reunidos na forma da arte de governar moderna.

Mas, se quisermos ir um pouco mais além, ainda seguindo a trilha analítica de Foucault, daremos um passo atrás da época moderna, da formação dos Estados nacionais, e mesmo da soberania, dirigindo-nos ao momento de nascimento desta racionalidade da governamentalidade. Para isso, estudaremos a ideia de um “governo do homem” em suas origens genealógicas no Oriente pré-cristão, depois no Oriente cristão propriamente dito, e isto sob duas formas: sob a forma da ideia e da organização de um poder de tipo pastoral e sob a forma da direção de consciência ou direção das almas, utilizando-nos, para isso, ainda do curso “Segurança, território, população” de 1978.