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Na referida tripartição proclamada em muitos momentos por Foucault, tentamos identificar um caminho, uma lógica, uma estrutura, como bem fazem todos os estudantes quando de sua intenção de abarcar um autor e sua obra. Por mais que o próprio Foucault se desobrigasse de facilitar qualquer ação neste sentido ao proclamar o “ensaio” como o “corpo vivo da filosofia” e ao colocar seus motivos sob o âmbito puro e simples da curiosidade como aquilo que permite ao autor “separar-se de si mesmo”73, nós, caros estudantes, fazemos as vezes de algozes do discurso alheio, buscando digerir o pensamento de outrém, triturando a fala temporalmente diversa da nossa com o fim de absorver um alimento muito específico, um alimento que supra nossa vontade de verdade, de nossa própria verdade, a única que faz valer a pena da escrita de si mesmo.

A rigor, as fases ou momentos teóricos de Foucault consistem numa mudança de perspectiva referente aos métodos de se fazer a análise histórica, mantendo-se, segundo ele próprio, um eixo temático em sua obra. Isto é o que ele afirma, já no final de sua vida, no texto intitulado “O sujeito e o poder”, escrito em inglês:

[…] Eu gostaria de dizer, em primeiro lugar, qual tem sido o objetivo do meu trabalho durante os últimos vinte anos. Não tem sido para analisar os fenômenos de poder, nem para elaborar as bases de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, tem sido a de criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos são feitos assuntos. Meu trabalho tem lidado com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. [...] Assim, não é poder, mas o sujeito que é o tema geral da minha pesquisa.74

Utilizando-se desta categoria de modos de subjetivação do ser humano, Foucault quer ultrapassar a importância do tema do poder em suas pesquisas. Tanto que ele relaciona, a cada modo de subjetivação, um momento do direcionamento de seus estudos, um momento teórico seu. De modo que, à sua conhecida fase arqueológica, ele relaciona o estudo do sujeito do discurso, da produção e do “homem” como fato biológico puro, como bem

73 Vide FOUCAULT. O uso dos prazeres, p. 13.

74 “I would like to say, first of all, what has been the goal of my work during the last twenty years. It has not

been to analyze the phenomena of power, nor to elaborate the foundations of such an analysis. My objective, instead, has been to create a history of the different modes by which, in our culture, human beings are made subjects. My work has dealt with three modes of objectification which transform human beings into subjects. […] Thus, it is not power but the subject which is the general theme of my research.” (FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: Critical Inquiry, Vol. 8, No. 4, Summer, 1982. The University of Chicago Press, pp. 777-795). Em francês em Dits et écrits: 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994a, Vol. IV, pp. 222-243. Em português cf. DREYFUS, Hubert L; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, pp. 231-249.

estudado na obra “As palavras e as coisas” de 1966. Nesta obra, ele descreve o fato historicamente localizado do sujeito falante, trabalhador e vivente e as condições apriorísticas das ciências humanas sob o fundamento maior da figura do Homem.

Um segundo momento de objetivação do sujeito é estudado na “sociedade disciplinar”, termo com o qual ele classifica a época de irrupção das formas de domínio e controle do corpo dos indivíduos, não mais na qualidade de ornamento para a soberania. Nesta “sociedade disciplinar”, conforma-se de fato o sujeito humano, individualmente capaz de exercer o papel de engrenagem da máquina social, cuja subjetivação significará mais a dotação do cimento dos corpos para que suportem, ao mesmo tempo em que automatizem, o açoite do treinamento disciplinar, como formação da “alma” individual, como curamento dos sinistros sobre o corpo (incapacitando-o a servir à “grande máquina”) e como adestramento manual das habilidades corpóreas para a correta execução das atividades laborais.

Foucault chama isso de “práticas divisoras”, onde o sujeito é dividido “em seu interior e em relação aos outros”. As categorizações sociais acerca do sujeito, ou tipificações sujeitantes, subjetificantes, passariam a “existir” a partir daí, tais como as qualificações de louco ou são, doente ou sadio, criminoso ou “bom menino”75. Identidades, almas, instituídas para os indivíduos na moderna sociedade disciplinar.

Como última instância ou modo de objetivação dos seres humanos, ter-se-ia aquele por meio do qual o ser humano se torna um sujeito em sentido próprio, ou seja, reconhece a si mesmo como sujeito. Neste terceiro momento, Foucault ensaia um novo passo que é a genealogia do si mesmo. Não mais do sujeito falante, vivente e trabalhador, para a auferição de legitimidade dos saberes. Não mais dos “corpos martirizados” e sujeitados pela vigilância sobre a ação do binômio corpo/alma individualizante e individualizada. Agora, o procedimento se dará sobre o sujeito de e para si mesmo, o que significaria dizer que se trata de um momento anterior ao da instituição dos discursos de saber modernos e das táticas de poder individualizantes. Não o sujeito que legitima uma consciência que, na medida em que responde como condição a priori de todo saber humanístico, é perseguida na condição de objeto, portanto, sujeito e objeto de conhecimento. Muito menos o sujeito que vai de espectador/vítima a elemento, nervo, ligamento das amarras de uma relação de poder que se irradia para objetificar os corpos e as “almas” dos indivíduos.

Aqui Foucault quer caracterizar o atual estágio de suas pesquisas, desenredadas da analítica do poder. Neste último modo de objetivação, residiria nosso propósito nesta etapa

75 DREYFUS, Hubert L; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do

estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231.

de nossa tese, que é a análise da governamentalidade, pois esta adviria de procedimento genealógico específico sobre certos termos e problemas teóricos de nosso autor, termos e problemas referidos como de uma analítica do poder.