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Estrutura da obra

2. Fundamentos teóricos

2.2. A Análise do Discurso (AD)

Trata-se de um campo teórico que apresenta alto teor polissêmico, como destacam Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 43):

“À análise do discurso podem-se atribuir definições as mais variadas: muito amplas, quando é considerada como um equivalente de ‘estudo do discurso’ ou restritivas quando, distinguindo diversas disciplinas que tomam o discurso como objeto, reserva-se essa etiqueta para uma delas”.

A investigação optou pela escola francesa de Análise do Discurso (AD), que é vinculada ao estudo do sentido do texto. Uma proposta, portanto, hermenêutica, como destaca Maingueneau (1997, p. 10-11):

“O analista do discurso vem (...) trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, ele supõe que um sentido oculto deve ser captado, o qual, sem uma técnica apropriada, permanece inacessível”.

É uma metodologia que tem a palavra escrita como foco e a lingüística como fundamento, embora a relação com essa disciplina ocorra de um modo particular (Id., p. 17-18):

“Uma vez afirmada a inscrição da AD no espaço lingüístico, é conveniente se questionar de que forma ela deve pensar sua relação com a lingüística. 5Sobre este aspecto, a posição da AD parece delicada, já que, para retomar uma fórmula de J. J. Courtine, em AD ‘é preciso ser lingüista e deixar de sê-lo ao mesmo tempo’. De fato, por um lado, a discursividade define ‘uma ordem própria, diversa da materialidade da língua’ e, por outro, esta ordem ‘se realiza na língua’. Situação de desequilíbrio perpétuo que tanto impede a AD de deixar o campo lingüístico, quanto de enclausurar-se nesta ou naquela de suas escolas ou de ramos. A AD não é, pois, parte da lingüística que estudaria os textos, da mesma forma que a fonética estuda os sons, mas ela atravessa o conjunto de ramos da lingüística.”

Tal situação de instabilidade leva o cientista envolvido na AD a eleger quais aspectos e categorias ele considera importantes para estudar seu corpus (Id., p. 18-19):

“Frente a um corpus, o pesquisador a priori não tem nenhuma razão determinante para estudar um fenômeno em detrimento de outro, da mesma forma que nada o obriga a um determinado procedimento ao invés de a qualquer outro. Se, para atingir seu propósito, ele se interessa, por exemplo, pelos adjetivos avaliativos, por metáforas ou algumas estruturas sintáticas, isto ocorre unicamente em virtude de hipóteses, as quais repousam a um só tempo:

– sobre um certo conhecimento de seu corpus;

– sobre um conhecimento das possibilidades oferecidas ao analista pelo estudo de semelhantes fatos de linguagem”.

Desse modo, definir os conceitos de lingüística a serem empregados na pesquisa é de suma importância para construir uma pesquisa consistente, e a Teoria da Enunciação é um recurso decisivo.

2.3. A enunciação

A Teoria da Enunciação, segundo Kebrat-Orecchioni (apud CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 194), é aquela que investiga:

“(...) os procedimentos lingüísticos (shifters, modalizadores, termos avaliativos etc.) por meio dos quais o locutor imprime sua marca no enunciado, inscreve-se na mensagem (implícita ou explicitamente) e se situa em relação a ele (problema da ‘distância enunciativa’)”.

Em virtude desse foco temático, tal saber tornou-se um pré-requisito para o emprego da metodologia da Análise do Discurso (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p. 195):

“Na perspectiva da análise do discurso, a consideração da enunciação é, evidentemente, central (...) Mais precisamente, as problemáticas ligadas à enunciação são mobilizadas em dois níveis que interagem constantemente:

• O nível local das marcações do discurso citado, de reformulações, de modalidades etc. que permite confrontar diversos posicionamentos ou caracterizar gêneros de discurso. • O nível global em que se define o contexto no interior do qual

se desenvolve o discurso.

(...) Além disto, do ponto de vista da análise do discurso, a enunciação é fundamentalmente tomada no interdiscurso”.

A pesquisa selecionou os seguintes conceitos da Teoria da Enunciação para examinar o corpus: debreagem e embreagem; tematização e figurativização; actorialização; temporalização; espacialização, modalização, aspectualização, conectores argumentativos, atos de linguagem e ethos. A definição dessa terminologia está disponível no glossário desta dissertação88.

Em relação aos conceitos de debreagem e embreagem, mecanismos discursivos que disjungem ou instauram o enunciador no enunciado, a pesquisa quis demarcar efeitos de objetividade e subjetividade.

Já no que se refere à tematização e à figurativização, o estudo procurou identificar os assuntos abordados, os tropos e as escolhas lexicais dos enunciados. Nos dois objetos, a seleção dos temas, as figuras de retórica e o uso de palavras influenciaram significativamente o processo de decodificação semântica.

No caso dos conceitos de actorialização, temporalização e espacialização, a pesquisa buscou efeitos de sentido para compreender o modus operandi (o modo de fazer) e o modus essendi (o modo de ser) dos sujeitos do discurso e da enunciação, e os efeitos de sentido temporais e espaciais nos enunciados. Por extensão, lançou mão do conceito de dêixis89. O foco da pesquisa foi o modo pelo qual os blogs descreviam as ações dos meios de comunicação e como as semantizaram na narrativa.

Quanto às categorias de modalização e aspectualização, a pesquisa procura analisar os elementos patêmicos discursivizados. Como o corpus caracteriza-se pela primazia nos efeitos de subjetivização nos discursos, o trabalho enfatizou a identificação de processos emocionais e a forma como os tempos verbais constroem efeitos de sentido em relação aos fatos narrados.

Com relação aos conectores argumentativos, o estudo procura identificar recursos lógicos empregados nos enunciados para a construção de sentidos e valores.

Quanto aos atos de linguagem, exploram-se os conceitos de ato ilocutório e perlocutório. Ambos foram examinados para identificar o modo pelo qual as publicações constroem suas tessituras argumentativas e como os verbos performativos são associados aos personagens narrados.

Há, por fim, o conceito de ethos, que exige uma explanação mais extensa. Toda manifestação de linguagem é uma construção que reflete uma ideologia. A esse processo chamaremos de ethos ( ),palavra que vem do grego e, conforme Aristóteles (1979, p. 67) na obra Ética a Nicômaco tem sua origem etimológica no termo “hábito”. Na Retórica, o termo é empregado no sentido de “caráter” (ARISTOTLE, 1994, p. 12).

Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 220) definem o ethos como a “imagem de si que o orador produz em seu discurso, e não de uma pessoa real”. O enunciador, contudo, se apresenta como fiador dos valores expressos no enunciado. Tal tarefa envolve, contudo, um estilo de enunciar. Para este vocábulo, a pesquisa adota a conceituação de Greimas e Courtés (1986, p. 213):

“Le style se situe, dans le processus de reconnaissance et d’identification qu’est la lecture, au terme d’une chaîne interpretative complexe, par où les récurrences formelles, que l’analyse peut séparer comme autant de sédimentations, produisent un effet d’individuation. Dire le style d’un objet sémiotique quelconque, c’est donc intégrer dans le seul movement d’un énoncé la totalité des éléments signifiants par lesquels on définit cet objet, et à travers lesquels on designe um sujet (...). Celui-ci, stipulant le parcours d’un Destinateur engagé dans une sanction cognitive articule, semble-t-il, un process constitué de trois composantes: topologique, axiologique et aspectuelle”90.

90 “O estilo se situa, no processo de reconhecimento e de identificação que é a leitura, ao fim de

uma cadeia interpretativa complexa, por meio das recorrências formais que a análise pode separar como sedimentos e que produz um efeito de individuação. Diz-se que o estilo de um objeto semiótico qualquer é portanto incorporado, ao fim de um enunciado, à totalidade dos elementos significantes pelos quais se define tal objeto, e por meio dos quais se designa um sujeito (...) Este, ao estipular o percurso de um destinatário comprometido em uma sanção cognitiva articulada, ao que parece, constitui um processo de três componentes: topológico, axiológico e aspectual.” [Tradução do autor].

Portanto, podemos afirmar que o enunciador se constrói no enunciado, como afirma Roger Fowler (1994, p. 42) ao refletir sobre a ideologia na produção jornalística:

“Ideology is already imprinted in the available discourse (all discourse). It is obligatory to select a style of discourse which is communicatively appropriate in the particular setting (…) and the accompanying ideas follow automatically (...). The fundamental principle is that, to repeat, the writer is constituted by the discourse”91. A enunciação, entretanto, é um processo interativo e não uma relação intransitiva. O escritor é constituído pelo discurso, mas a enunciação pressupõe a alteridade, como ressalta Mikhail Bakhtin (1977, p. 123):

“En effet, l’énonciation est le produit de l’interaction de deux individus socialement organisés (...) Le mot s’adresse à un interlocuteur (...) Il ne peut y avoir d’interlocuteur abstrait; nous n’aurions pas de langage commun avec un tel interlocuteur, ni au sens propre ni au sens figuré” 92.

A assertiva de Bakhtin expõe o fundamento dialógico da enunciação. A alteridade é, portanto, parte constitutiva do discurso. Contudo, como se dá essa relação? Segundo as conclusões de Berelson e Steiner (1964, p. 529) sobre a transitividade da enunciação, o discurso depende da sanção cognitiva dos enunciatários:

91 “A ideologia já está marcada no discurso disponível (em todo discurso). É obrigatório selecionar

um estilo de discurso que seja comunicativamente apropriado ao ambiente específico (...) e as idéias seguem automaticamente (...) O princípio fundamental é o de que, repetimos, o escritor é constituído pelo discurso”. [Tradução do autor].

92 “De fato, a enunciação é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados (...). A

palavra dirige-se a um interlocutor (...). Não pode nem há um interlocutor abstrato; não haveria linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado”. [Tradução do autor].

“People tend to see and hear communications that are favorable or congenial to their predispositions; they are more likely to see and hear congenial communications than neutral and hostile ones. And the more interested they are in the subject, the more likely is such selective attention”93.

Conseqüentemente, o ethos do enunciador gera um efeito reflexivo, que é a construção do ethos do enunciatário. O discurso do enunciador encontra sua afinidade com uma determinada audiência, em uma relação de empatia/consonância com o sentido do enunciado. Esse ethos reflexivo não se manifesta, necessariamente, como sanção cognitiva. Ele pode também ser antagônico, como expressa Courtés (1998, p. 38-39):

“Face à un roman ou à un film, le lecteur ou le spectateur s’identifieront au héros, par exemple partageant alors sans reserve le point de vue de l’énonciateur (position de l’adherent), ou au contraire, se distancieront, se montreront plus ou moins rétifs (tel est le role du ‘méfiant’), voire rejetteront totalement la manière de voir que leur este proposée (position de l’opposant), tout en comprenant ce qu’ils lisent ou ce qu’ils voient. De son temps, Picasso, par exemple, n’a guère été apprécié de la plupart de ses contemporains que contemplaient ses œuvres...! Naturellement, un parcours inverse est prévisible: celui qui, au départ, eu égard par exemple aux préjugés qui le prédéterminent, est ‘opposant’, devient progressivement um ‘sympathisant’ (grâce par exemple au recours à des éléments convaincants, aux clés de lecture qui peuvent lui être fournies pour la lecture d’un tableau, etc.) avant que d’adhérer réellement à la ‘croyance’ qui lui est proposée. Entre ces deux pôles – ’adhérent’ et ‘opposant’ – beaucoup de positions intermédiaires sont prévisibles pour le lecteur ou le spectateur, avec tout un jeu de va-et-vient entre les deux extremes, selon les moments de l’ouvrage ou du film: on sera plus ou moins ‘adhérent’ ou

93 “As pessoas tendem a ver e ouvir mensagens que são favoráveis às suas predisposições; elas

são mais propensas a ver e ouvir informações afins que as neutras ou hostis. E quanto mais interessadas estiverem em um assunto, maior será essa atenção seletiva.” [Tradução do autor].

‘opposant’, ‘sympathisant’ ou ‘méfiant’ au fil du temps, selon les séquences”94.

Para Joseph Courtés, o ethos do enunciatário se constrói a partir da adesão ou da oposição ao ethos do enunciador. Para ilustrar essas relações, o autor estabelece, com base no conceito do quadrado semiótico greimasiano, quatro categorias para a relação entre o enunciador e o enunciatário (Id., p. 38):

Tabela 1: Quadrado semiótico do enunciatário proposto por Courtés Observa-se, portanto, que cada grupo dirige sua atenção àqueles discursos cujo teor está em sintonia com suas próprias crenças e valores. Tal relação

94 “Diante de um romance ou um filme, o leitor ou espectador se identificará com o herói, por

exemplo compartilhando sem reservas o ponto de vista do enunciador (posição de adesão) ou, ao contrário, se distanciará, mostrando-se mais ou menos reticente (posição de desconfiança), até mesmo rejeitando totalmente a maneira de ver que lhe é proposta (posição de oposição), ainda que compreenda o que lê ou vê. Em seu tempo, Picasso, por exemplo, não foi muito apreciado pela maioria dos contemporâneos que contemplaram suas obras...! Naturalmente, um percurso inverso é previsível: aquele que, no início, em razão dos preconceitos, se opõe, torna-se progressivamente antes um ‘simpatizante’ (graças, por exemplo, aos elementos persuasivos das ‘chaves de leitura’ que lhe são fornecidas para a compreensão de um quadro etc.) do que alguém que realmente aderiu à ‘crença’ que lhe é proposta. Entre esses dois pólos, ‘adesão’ e ‘oposição’ – muitas posições intermediárias são possíveis para o leitor ou espectador, com todo um jogo de vaivém entre os dois extremos, de acordo com os momentos da obra ou do filme: ele será mais ou menos ‘adesista’ ou ‘oposicionista’, simpatizante ou desconfiado no decorrer do tempo, conforme as seqüências.” [Tradução do autor].

implica também uma afinidade de ordem afetiva, como observa o Grupo (mi):

“O ethos é assimilável ao que Aristóteles chama de πατοζπατοζπατοζπατοζ [pathos] em sua Poética e aos Rasas95 da Índia clássica. Nós o definimos como um estado afetivo provocado no receptor e por uma mensagem particular e cuja qualidade específica varia em função de um certo número de parâmetros” (DUBOIS, 1974, p. 204).

Esse estado afetivo chega ao enunciatário, ao co-enunciador, por meio do que Maingueneau (1999, p. 78-79) denomina de “tom”, que seria o modo como a cenografia construída na enunciação evoca uma forma de dizer.

Tal relação de fiança do enunciador com o seu enunciado tem, por sua vez, um “caráter” e uma “corporalidade”, estabelecidos por meio de coerções estereotipizadoras. Maingueneau (2001, p. 139) assim define os conceitos de caráter e corporalidade:

“O caráter corresponde a um feixe de traços psicológicos. É claro que são apenas estereótipos específicos de uma época, de um lugar, que a literatura contribui para validar e nos quais se apóia. Quanto à corporalidade, é associada a uma compleição do corpo do fiador, inseparável de sua maneira de se vestir e se movimentar no espaço social. O etos [sic] implica portanto um policiamento tácito do corpo, uma maneira de habitar o espaço social. Longe de surgir todo armado

95 Rasa: Na literatura sânscrita, o conceito de aroma estético, ou de qualquer elemento essencial

de qualquer obra de arte que pode ser apenas sugerido, mas não descrito. É um tipo de contemplação abstrata na qual a interioridade dos sentimentos humanos expande-se para o mundo em volta das formas corpóreas. (in: Britannica.com, disponível em [http://www.britannica.com/eb/article?eu=137834&tocid=0&query=rasa&ct=], acessado em 6 de julho de 2004. No original: “In Sanskrit literature, the concept of aesthetic flavour, or an essential element of any work of art that can only be suggested, not described. It is a kind of contemplative abstraction in which the inwardness of human feelings suffuses the surrounding world of embodied forms.”

do imaginário pessoal de um autor, constitui-se através de um conjunto de representações sociais do corpo ativo em múltiplos domínios”.

Para a Análise do Discurso, conforme a entende Dominique Maingueneau (1999, p. 78), toda enunciação, de uma lista telefônica a um discurso político, contém um ethos:

“Ma première déformation (d’aucuns diraient trahison) de l’ethos a consisté à le reformuler dans un cadre d’analyse du discours que, loin de le réserver à l’éloquence judiciaire ou même à l’oralité, pose que tout discours écrit, même s’il la dénie, possède une vocalité spécifique qui permet de le rapporter à une source énonciative, à travers d’un ton qui atteste ce qui est dit”96.

A identificação dessa propriedade discursiva ajudou no reconhecimento dos princípios ideológicos de cada discurso.