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O Blog do Observatório da Imprensa (Bloi): “a imprensa não sabe e não quer saber”

Estrutura da obra

4. O Blog do Observatório da Imprensa (Bloi): “a imprensa não sabe e não quer saber”

Neste capítulo analisamos a seção do Observatório da Imprensa. Para isso, selecionamos enunciados produzidos no decorrer de 2003. O principal achado da investigação hermenêutica é que, no discurso, as empresas jornalísticas não tem competência para saber e a explicação para isso está no fato de que elas não se interessam em conquistar essa habilidade. A coluna dirige sua atenção para jornais impressos brasileiros e praticamente ignora a Internet, a televisão e o rádio.

4.1. Apresentação, descrição e interpretação da seção

O Blog do Observatório da Imprensa (Bloi) teve início em novembro de 2002. Foi criado como um desdobramento do site Observatório da

Imprensa, que começou suas atividades em abril de 1996. A publicação

está abrigada no portal iG (http://www.ig.com.br). Lá são inseridos textos de diversos colaboradores do site. O objetivo é avaliar a postura de vários meios de comunicação, sobretudo das grandes empresas jornalísticas.

O Observatório da Imprensa tem sido um foro privilegiado para refletir sobre a prática do jornalismo brasileiro. Trata-se de um título que tem, inclusive, uma versão produzida para a televisão aberta.

O registro do domínio www.observatoriodaimprensa.com.br, segundo dados disponíveis no site Registro.br, data de 6 de outubro de 1999 e pertenceu inicialmente à empresa Automolas Pampulha Ltda, sediada em Belo

Horizonte (MG) e cujos responsáveis eram Maria Rosa Campos Magalhães e Victor Fernando Ribeiro. Desde 6 de janeiro de 2002, o domínio pertence à empresa Jornalistas Associados AYZ S/C Ltda, sediada em São Paulo e, na ocasião da consulta, efetuada em 5 de novembro de 2005, tinha como responsáveis Alberto Dines e Luiz Egypto de Cerqueira.

A página de hipertexto estabelece convergência entre duas aplicações do formato blog na imprensa: apresenta-se em ordem cronológica reversa e busca, na ferramenta de comentários, a criação de um espaço de discussão. O Bloi mantém o estilo discursivo do site do Observatório da

Imprensa, marcado pela circunspecção, pelo senso crítico e modalizado

Figura 8: O Blog do Observatório da Imprensa

Como é possível observar na figura, no topo da página há uma caixa de cabeçalho com as cores amarela e branca em gradiente, em que o amarelo predomina à esquerda e o branco, à direita. À esquerda da caixa, em tipologia manuscrita e sobre um fundo amarelo, está, em azul, a palavra “Bloi”. À direita, sobre fundo branco, as palavras “Blog do Observatório da

Imprensa”. A frase é entrecortada pela imagem de um olho aberto. As

palavras “Blog do” estão à esquerda, em letras menores; a seguir, vem a imagem do olho; e, por fim, a logomarca do Observatório. Embaixo da representação visual da publicação, e ainda no cabeçalho, o slogan: “Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. A caixa de texto não contém links.

Com base no bordão supracitado e na escolha lexical, é possível traçar algumas considerações. O que se nota primeiro é o slogan: “Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. A frase exprime uma convicção – a locução verbal “vai ler” substitui a forma menos coloquial “lerá” e, no caso, o emprego do tempo no futuro do presente cria um efeito de sentido de certeza (CUNHA, 1975, p. 438). Pelo sentido do discurso, a publicação vai instaurar no enunciatário um marco divisório: antes, a pessoa lia jornal de um jeito, depois, passa a ler de outro. Cria também, por extensão, a idéia de que, ao conhecer a publicação, o leitor não mais a deixará. Por meio desses procedimentos, o enunciado semantiza o tempo e euforiza-se.

O discurso também sinaliza uma propensão a privilegiar a imprensa escrita, pelo uso do verbo “ler”, em vez de “assistir”, “ouvir” ou “navegar”, e de seu complemento verbal, o “jornal”, em vez de “telejornal” ou “radiojornal”, por exemplo.

O nome da publicação – “Observatório da Imprensa” – constrói uma cena enunciativa modalizada no “saber-fazer”. O vocábulo “observatório” dá a idéia de uma instituição científica – isto é, detentora do conhecimento – habilitada a observar, a dirigir um olhar de conhecedor ao objeto de estudo.

O olho que aparece na logomarca evoca esse saber (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1993, p. 653-656). O discurso invoca também a idéia hermenêutica de que o jornal tem significados ocultos, que serão revelados na publicação. A dêixis actancial, portanto, é de alguém que conhece o assunto, o que pressupõe, igualmente, um enunciador que se projeta em uma posição superior.

Logo abaixo do cabeçalho há uma barra branca e, a seguir, uma barra azul

com um link para o site do Observatório da Imprensa

(http://www.observatoriodaimprensa.com.br).

À esquerda da página há uma coluna com os dizeres: “Sobre o observatório”. Abaixo, lê-se:

“O Observatório da Imprensa é uma entidade civil, não- governamental, não-corporativa e não-partidária que acompanha desde 1996, primeiro pela internet e depois pela TV, o desempenho da mídia brasileira. O BLOI (Blog do Observatório da Imprensa) pretende funcionar como um fórum complementar, para que os usuários comentem o dia-a-dia da nossa imprensa. Sejam bem- vindos!”.

A instituição apresenta-se como atópica, pois rejeita o estatuto de entidade governamental, de entidade corporativa – ou seja, de entidade que defende os jornalistas – e de entidade partidária. O texto usa o verbo “acompanhar” no sentido de “compreender ou assimilar através dos sentidos e/ou da inteligência o que é dito, pensado etc. por outrem” (DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2001). Ou seja, a

instituição se apresenta como alguém que sabe como a mídia brasileira se comporta.

A seguir, há o ícone de uma carta aberta, com o sinal de arroba (@) em vermelho. Logo abaixo, vêm os dizeres “Blog do Observatório”. Tanto a imagem quanto a frase estão vinculadas a um link para o e-mail

obsimp@ig.com.br. Segue-se uma logomarca com a palavra BliG e, abaixo,

a expressão “Powered by” (provido por).

A coluna termina com uma lista de links intitulada “Semanas Anteriores”, que é organização cronológica da página pelos meses mais recentes; “Página Principal”, cujo link remete à página de abertura do site, e a seção “Arquivos antigos”.

Cada notícia é demarcada na página por uma data em vermelho, seguida de um texto em azul escuro, que é o título da notícia.

No enunciado a seguir, poderemos observar como o título trata encara a qualidade da cobertura da imprensa na posse do presidente Lula:

08/01/2003 15:34 Posse e abobrinhas 182

No OI183 desta semana, Alberto Dines lamenta, em ‘Pernas da senadora, tênis do comandante’184, ver confirmada sua previsão de

182 O enunciado tem 534 caracteres, 85 palavras e cinco parágrafos.

183 O trecho sublinhado apresenta um link para [http://www.observatoriodaimprensa.com.br/], o site

do Observatório da Imprensa.

184 O trecho sublinhado apresenta um link para

[http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/bal080120031.htm]. Trata-se do artigo referido na nota.

que a mídia entra na Era das Irrelevâncias. Na cobertura da posse, dois exemplos: o ‘provinciano deslumbramento com o vestido curto da senadora Heloísa Helena (PT-AL)’ e a ‘perversa’ fixação nos tênis de Fidel Castro. ‘Nos dois casos, o desbunde é evidentemente pequeno- burguês’, diz o editor do OI.

Qual sua opinião sobre esse apego da mídia às abobrinhas? enviada por Moderador

O tema da nota é a forma como a imprensa destaca os assuntos em seu noticiário. A referência do enunciado, o fundamento da informação, é um artigo de Alberto Dines publicado no site do Observatório da Imprensa. Trata-se, portanto, de um discurso metafrástico, ou seja, é um esforço de condensação de um artigo em uma nota. É, igualmente, uma narrativa de encaixe.

O texto reproduz, na forma de discurso indireto, o enunciado de Dines, que repreende a imprensa por destacar o vestido da senadora Heloísa Helena e o tênis de Fidel Castro. Trata-se de uma narrativa, pois o ator do enunciado – a “mídia” – desenvolve a ação – ilocutória – de “entrar” na Era das Irrelevâncias. O discurso é, igualmente, parafrástico, pois reformula o artigo de Dines, e configura-se como comentário, porque estabelece coerções semânticas para as atitudes do actante “mídia”, o que o torna também um digesto. O tom do discurso, compreendido aqui como forma de construção da cena enunciativa, como ethos, é de crítica, no sentido de alguém que julga atitudes e, no caso, condena-as.

Já no título da nota, “Posse e abobrinhas”, a conjunção coordenativa “e” é aplicada no sentido de contraste entre os dois elementos, uma das possibilidades semânticas do termo (NEVES, 1999, p. 739). De um lado, há

algo que se pressupõe grandioso – a “posse” referida é uma elipse185 que remete à investidura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva –, de outro, algo que remete à pequenez186, a “abobrinha”, cujo significado no contexto é de “conversa superficial” (DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2001).

O mesmo excerto constrói um efeito cômico para qualificar a atitude de valorização das irrelevâncias: “Nos dois casos, o desbunde é evidentemente pequeno-burguês”. O efeito cômico surge do contraste da escolha lexical: o termo “desbunde” é um disfemismo e pressupõe um socioleto informal e vulgar, que contrasta com o termo “pequeno-burguês”, que conota familiaridade com um vocabulário mais sofisticado. O discurso repudia a tematização do noticiário em torno daquilo que poderia ser chamado de face negativa de sujeitos187 do enunciado onomastizados como Heloísa Helena e Fidel Castro (MAINGUENEAU, 2002, p. 38).

O enunciatário do discurso, por sua vez, é aquele que acompanha o noticiário e desaprova o procedimento. O antienunciatário é o que o sujeito da enunciação chama de “mídia”, que seria a imprensa em geral.

185 A elipse, como podemos ver em Chareaudeau e Maingueneau (2004, p. 181), é um recurso

associado ou ao laconismo ou à emoção.

186 Aliás, no enunciado, o verbo “lamentar” reforça a tessitura argumentativa de uma imprensa

preocupada com o que não é importante. De Heloísa Helena e Fidel Castro, portanto, a imprensa só teria se atido à forma, e não ao conteúdo. Esse efeito de sentido é reforçado por meio de uma espacialização do enunciado: o actante “mídia” olha para baixo, pois se preocupa com as “pernas da senadora” e com o “tênis do comandante”. O actante é também disforizado na espacialização pela pequenez, pela baixeza, pois pratica um “desbunde”, um calembur com a palavra deslumbre, mas que também aponta para o sentido de “perder a bunda”, o que reforça a disforização do baixo no enunciado. Tal “desbunde”, por sua vez, é figurativizado como “pequeno-burguês”, o que também enfatiza a projeção do actante mídia na baixeza e disforiza-o.

No discurso, além disso, o actante “mídia” – um termo com forte efeito de generalização – é figurativizado pejorativamente como provinciano, o que pode ser interpretado no contexto como desprovido de sofisticação, ao se deslumbrar com o vestido da senadora, e dotado de uma “fixação ‘perversa’”, ou seja, o enunciado emula um diagnóstico psicológico de um actante com desvio de comportamento. Tais procedimentos conotam um sujeito da enunciação que se outorga a competência do “saber-fazer” e, por meio dela, desautoriza os dois procedimentos citados. Acrescente-se que as referidas atitudes, no discurso, são apresentadas como modelo do comportamento do actante “mídia”.

A escolha lexical, do mesmo modo, indica um “processo”. Pela construção semântica, pressupõe-se que antes a mídia não estava na “Era das Irrelevâncias”. Pode-se inferir no discurso uma proxemia que evoca deslocamento em direção a algo, um gesto, acrescente-se, volitivo. O actante “mídia”, nesse contexto, tem a intenção de ser irrelevante, o que é denunciado, depreciado, pelo sujeito da enunciação.

Há, portanto, um nunc, um agora, disfórico, o que constrói também uma idéia de anterioridade que se contrapõe à idéia de irrelevância, uma “Era das Relevâncias”. Pela construção semântica, é possível inferir uma lógica no discurso da imprensa: ou ela se dirige a assuntos relevantes ou a assuntos irrelevantes. Pela aspectualização temporal, depreende-se que, no governo anterior, a imprensa estava na “Era das Relevâncias” e que, no atual, entrou na “Era das Irrelevâncias”.

O discurso emprega um estilo axiomático para construir a argumentação. O enunciador figurativiza o ator do enunciado, Alberto Dines, como alguém que prevê e acerta a previsão ao dizer: “Alberto Dines lamenta (...) ver confirmada sua previsão de que a mídia entra na Era das Irrelevâncias”. Isso constrói uma isotopia actancial com a personæ de Cassandra, referência ao mito da profetiza que prediz com insistência desgraças ou situações indesejáveis e que não é acreditada. Os casos são apresentados como exemplos, amostras do cenário criado no discurso.

O texto constrói da mesma forma, na tessitura argumentativa, uma associação entre a posse do presidente da República e o início de uma “Era de Irrelevâncias”, que acontecem concomitantemente, construindo no discurso um cruzamento semântico entre os dois acontecimentos: entra-se na “Era das Irrelevâncias” quando o presidente toma posse. A “Era das Irrelevâncias” poderia, portanto, ser vista no discurso como uma extensão metonímica da “Era Lula”.

Ao definir como “pequeno-burguesas” as ações da imprensa, ele qualifica ambos, a “mídia” e o novo presidente, como acanhados, mesquinhos, preconceituosos e reacionários, as acepções da locução adjetiva citada. O sujeito da enunciação exclui-se da cena enunciativa: ele não é a mídia que entrou na Era das Irrelevâncias, mas alguém que denuncia a atitude.

O texto, da mesma forma, elabora em seu desfecho uma pergunta perlocutória: “Qual sua opinião sobre esse apego da mídia às abobrinhas?” O enunciado já qualifica a “mídia” – entendida aí como “imprensa” – como

apegada a superficialidades. O que parece uma oração calcada na função fática, de uso de um marcador conversacional, é, de fato, uma função conativa, que quer agir sobre o enunciatário, levando-o a sancionar cognitivamente que as publicações jornalísticas são “apegadas às abobrinhas”.

O enunciado, por fim, pressupõe um leitor que acompanha o noticiário político principalmente no jornalismo impresso e que quer compreender as questões deontológicas que envolvem a cobertura desses eventos.

É possível observar como a coluna avalia a cobertura do noticiário científico no texto seguinte:

08/01/2003 15:43

Clone em mingau perigoso 188

No artigo ‘Religião e ciência, mingau perigoso’189, o escritor Deonísio da Silva acha que a imprensa brasileira está levando muito a sério os experimentos genéticos da seita que alega, sem provas, ter clonado os primeiros seres humanos. Para ele, as editorias brasileiras de ciência dirigem-se a chefes de departamento, diretores, autoridades, e não aos pesquisadores. ‘Seria como cobrir a Renascença, por exemplo, sem ouvir Leonardo Da Vinci, e pautar apenas o chefe dele.’ A nossa cobertura de ciência pode ser considerada satisfatória?

enviada por Moderador

O tema é a forma como a imprensa cobre a ciência. A referência do enunciado, o fundamento da informação, é um artigo de Deonísio da Silva

188 O enunciado tem 582 caracteres, 90 palavras e quatro parágrafos..

189 O trecho sublinhado apresenta um link para

[http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/jd080120031.htm]. Trata-se do artigo referido na nota.

publicado no site do Observatório da Imprensa. É, portanto, um discurso metafrástico. O texto reproduz, do mesmo modo que o primeiro, de forma reduzida e por meio de discurso indireto, um artigo e, por extensão, um comentário, um digesto.

O actante “imprensa brasileira” – ou seja, um ator com grande efeito de generalização – desenvolve uma ação – ilocutória – que é “levar a sério os experimentos genéticos” de uma seita, isto é, atribuir-lhes valor de verdade, uma atitude reprovada no enunciado.

O discurso defende o valor do conhecimento, construindo uma dicotomia e uma generalização. De um lado, há aqueles que produzem o saber, os “pesquisadores”, genericamente assim figurativizados, e de outro, os burocratas que os comandam, os chefes de departamento, diretores e autoridades, de tal modo generalizados. O enunciado articula uma categoria tímica eufórica para a primeira classe, os cientistas, e coloca sob uma articulação tímica disfórica os segundos. O enunciado embute uma prótase e uma apódose, que poderiam ser expressas do seguinte modo: “para se conhecer a ciência (prótase), é preciso ouvir os cientistas (apódose)”.

Para elaborar esse jogo, é criada, sob a forma alegórica, uma isotopia actancial entre o antropônimo onomastizado Leonardo da Vinci, apresentado no contexto como expoente da arte e da ciência renascentista, e os pesquisadores.

Já os burocratas passam por uma actorialização desfavorável. No caso, a seita é associada semanticamente à posição de burocrata da ciência.

Observa-se o fato na seqüência frasal, que estabelece uma relação semântica na sintaxe narrativa (GREIMAS e COURTÉS, 1989, p. 434). Primeiro, o sujeito da enunciação afirma que a referida seita anunciou uma clonagem e, no aposto “sem provas”, desqualifica o ato, situando a atitude no modo de mentira para, em seguida, por justaposição na frase consecutiva, igualar os burocratas da ciência aos primeiros actantes do enunciado. Ou seja, por meio da parataxe, o sujeito da enunciação cria uma solidariedade actancial entre os membros da seita e os burocratas da ciência.

A ação, no discurso, é aspectualizada para o actante imprensa como iterativa, o que pode ser observado pelo uso do verbo “dirigir” no presente do indicativo, o que, no contexto, conota hábito (CUNHA, 1975, p. 430). O título “Clone em mingau perigoso” cria uma associação entre o vocábulo “mingau” e o procedimento de não procurar os cientistas, mas sim os burocratas, para acompanhar a produção científica. O termo “mingau”, no sentido figurado, significa “coisa mole, mexida ou aguada” (HOLANDA FERREIRA, s/d, p. 926), isto é, o procedimento é qualificado de pouco consistente e, simultaneamente, perigoso. Pelo contexto argumentativo, a atitude da imprensa é sistematicamente incorreta e, por isso, inconsistente e viciosa, porque repetitiva. Simultaneamente, o procedimento é figurativizado como “perigoso”.

O discurso, por sua vez, constrói na trama argumentativa uma modalização de “saber-fazer”. A competência modal cobre a produção científica e “ensina” no discurso como fazê-lo. Há, portanto, relação antagônica de

valores: de um lado, o valor “certo”, associado ao procedimento de contatar os cientistas para a cobertura do noticiário, e, de outro, há o valor “errado”, figurativizado pelo ato de entrevistar os chefes dos pesquisadores.

Pela forma como o texto desenvolve a cena enunciativa, o ethos do discurso é professoral, o que, por extensão, leva à dedução de que o estilo é axiomático. O enunciatário, por extensão, pode ser identificado tanto como o jornalista que “incorre no erro” de procedimento quanto como o leitor.

A pergunta, ao final da notícia, torna-se perlocutória, pois o sujeito da enunciação denuncia o procedimento da imprensa e, depois, pede a opinião do enunciatário, o que implica uma coerção para o leitor sancionar cognitivamente a repreensão proposta na notícia.

Há no discurso uma crítica à face positiva da imprensa190. Ele valoriza o contato com o que seria a face negativa dos actantes “instituições de pesquisa”, ou seja, a intimidade das referidas organizações, figurativizadas como “os pesquisadores”, que são, no contexto, as fontes produtoras do conhecimento.

14/01/2003 19:11

Mídia sem indignação 191

A ausência de indignação da imprensa ao noticiar o assassinato do índio caingangue Leopoldo Crespo, de 77 anos, em Miraguaí, RS, chocou o jornalista e professor Muniz Sodré, da UFRJ. Em seu artigo

190 C.f. p. 108, n. 115.

“A morte do índio Leopoldo Crespo”192 ele diz: “O noticiário jornalístico deveria ter sido também (...) politicamente indignado. Alguma coisa de vigoroso deveria ser feito para que nenhum magistrado pudesse mais repetir a frase da autoridade gaúcha que liberou os assassinos para responder em liberdade pelo crime, segundo a qual eles estavam ‘brincando’, queriam apenas acordar o índio a pontapés. [sic] 193

Você considera a imprensa fria ao noticiar tais atrocidades? enviada por Moderador

O assunto é a cobertura do noticiário sobre um crime contra um índio no Rio Grande do Sul. A referência do enunciado é, a priori, um artigo publicado no

site do Observatório da Imprensa, mas também o conjunto de notícias a

respeito do assunto no Brasil. Sob esse aspecto, inclusive, a notícia dá a entender um enunciador e um enunciatário que acompanham com atenção a cobertura jornalística, especialmente a citada na nota. Pressupõe também um enunciatário que se interessa pelo modo pelo qual a notícia é tratada pelas empresas jornalísticas. É uma resenha de um artigo anteriormente publicado no Observatório da Imprensa.

O discurso figurativiza o antropônimo Muniz Sodré como “jornalista e professor”, o que presume um actante duplamente habilitado com a competência modal do “saber-fazer” jornalístico. O segundo ator do enunciado é figurativizado como “índio caingangue”, vítima de um assassinato. Há ainda três outros, os assassinos do índio, a imprensa e o juiz, este figurativizado como “autoridade gaúcha” e “magistrado”.

192 O trecho sublinhado apresenta um link para

[http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq150120032.htm], o site do Observatório da

Imprensa.

No enunciado, à imprensa é atribuída a modalidade deôntica do “dever-ser” indignado, uma sensibilidade definida como “sentimento de cólera ou de desprezo experimentado diante de indignidade, injustiça, afronta; repulsa, revolta” (DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2001). Trata-se, portanto, de uma modalização com forte carga patêmica e pressupõe também uma modalização volitiva: a imprensa deve ser indignada, mas não é, logo, não quer ser indignada, o que conota pusilanimidade194.

O enunciado é marcado também por uma ironia, revelada por meio de