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Estrutura da obra

1. Jornalismo e ciberespaço: o blog

1.7. Uma relação paradoxal

A partir desses pressupostos teóricos, poder-se-ia inferir que o conceito de

blog surge como uma expressão da difusão dos microdiscursos que marca

especificidade e tornarem-se empresas industriais e comerciais comuns. A perda de tal especificidade põe em jogo uma competência essencialmente narrativa. De fato, a mídia tradicional se distingue das empresas que fabricam sabão e meias por sua participação específica no campo da comunicação institucional e pela subordinação de sua dimensão econômica aos princípios transcendentais formulados sob os termos do discurso político-institucional. Sua competência narrativa está intimamente ligada a tal dependência. Não mais apenas a sua capacidade e habilidade de relatar os fatos e os comentar, mas sobretudo de colocá-los a serviço das ‘grandes narrativas de legitimação’ da modernidade (...) O mesmo vale para a prática jornalística. A teoria do ‘jornalismo indesejável’ não pode ser defendida senão ao postular que a transmissão do saber pode ser feita sem a mediação da narrativa”. [Tradução do autor].

75 “As narrativas midiáticas não recontam mais que histórias particulares: ‘histórias de familia’,

‘histórias de vida’, ‘autobiografias’, testemunhos correspondentes ao ‘novo jornalismo’ etc. Essas ‘micronarrativas’ que põem em cena as subjetividades perdem o poder de continuar a produzir o Sujeito fictício da sociedade burguesa (público esclarecido, Nação, Povo...). Quanto à polivalência, ela resulta de um esfacelamento de sua função. Elas pulverizam o espaço social ao articular ao desconhecimento uma infinidade de campos de ação particulares onde se movem indivíduos e grupos”. [Tradução do autor].

a condição pós-moderna. O jornalismo, um dos mediadores privilegiados da sociedade democrático-burguesa, vive uma crise justamente pela falência dos metadiscursos que o legitimava. A assimilação dos blogs surge, portanto, no contexto de estratégias que visam adaptar a práxis da imprensa ao momento. Para isso, buscou-se no conceito de blog aproximações com práticas já estabelecidas na profissão e a coluna jornalística, principalmente sob a forma de digesto, vem sendo o modo mais corriqueiro dessa adaptação.

O jornalismo surgiu com a criação dos estados nacionais e a progressiva perda do poder político pela igreja na Europa nos séculos XVI e XVII. É um fenômeno portanto associado à “agonia de Deus”, cuja “morte” foi proclamada solenemente por Nietzsche em seu Zaratustra. Como Quéré76 destaca, o jornalismo ganhou corpo e importância com o declínio da função religiosa do clero. O ideal dessa atividade ou, para ser mais preciso, seu fundamento ideológico, foi e ainda é a intransitividade do sentido, que pode ser expresso no famoso adágio de Gertrude Stein: “Rose is a rose is a rose is a rose”77: nada além de uma rosa, nenhuma anagogia78 sob a pele das palavras, na contramão dos versos de Carlos Drumond de Andrade79.

Negar a transcendência tornou-se, com a consolidação da atividade da imprensa, a razão de ser da profissão, expressa na famosa metáfora do espelho, que propaga a idéia do jornalismo como reflexo elementar da

76 C.f. p. 64-65.

77 “A rosa é uma rosa, é uma rosa é uma rosa”.

78 Anagogia deve ser compreendida, no âmbito dessa dissertação, como a passagem do sentido

literal ao místico.

realidade. Uma idéia força80 que inspirou inclusive Otto Groth (1928, p. 43) em sua obra:

“Politische, religiöse, wissenschaftliche, pädagogische, ästhetische, technische, hygienische, juristische, steuerliche, wirtschaftliche, unterhaltende, gesellige, familiäre Dinge, alles, alles erscheint in dem ‘spiegel’ der Tagespresse”.81

Fundou-se portanto um mundo calcado nos sentidos, nas percepções, cuja tradução mais precisa é uma certa idéia de empirismo, do Veritas est

adaequatio rei et intellectus82 (AQUINO, 1979, p. 26), um axioma tomista que assumiu um novo significado no mundo secular que surgia. Por extensão, a verossimilhança é o fundamento que dá sentido a essa ordem de discursos.

E qual o papel do jornalismo nesse novo mundo profano? Com base no fundamento daquilo que parece real, seja por se fundamentar na modalização83 veridictória do parecer e ser, seja baseando-se na modalização alética do “dever ser” verdade, esse discurso associou-se a um determinado tipo de saber fundamentado na denotação (LYOTARD, 2002,

80 Idéia força deve ser compreendida, no contexto dessa dissertação como conceito no qual que se

unem inseparavelmente um caráter intelectual e um caráter ativo; peça fundamental de um raciocínio deflagrador de ação.

81 “Política, religião, ciência, educação, estética, tecnologia, higiene, legislação, tributação,

economia, entretenimento, sociedade, assuntos familiares, tudo, tudo aparece no 'espelho' da imprensa diária”. [Tradução do autor, sob a supervisão de Elisabeta Santoro].

82 “A verdade consiste na conformidade entre a coisa e o intelecto”. 83 C.f. glossário, p. 250.

p. 44-50), que ordena a weltanschauung84, a “visão de mundo” contemporânea, como Barthes (1987b, p. 132-133) ressalta:

“A ‘representação’ pura e simples do ‘real’, o relato nu ‘daquilo que é’ (ou que foi) aparece assim como uma resistência ao sentido; esta resistência confirma a grande oposição mítica entre o vivido (o vivo) e o inteligível; basta lembrarmo-nos de que, na ideologia de nosso tempo, a referência obsessiva ao ‘concreto’ (naquilo que se pede retoricamente às ciências humanas, à literatura, aos comportamentos) está sempre armada, como uma máquina de guerra, contra o sentido, como se, por uma exclusão aquilo que vive não pudesse significar – e reciprocamente”.

Nesse contexto, como o discurso da imprensa se estruturou? A obra de Otto Groth (1928) forneceu pistas certeiras para a compreensão da atividade por meio de seis traços pertinentes: a periodicidade (Periodisches Erscheinen), a aparição pública (öffentliche Erscheinen), a diversidade de conteúdo (Mannigfaltigkeit), o interesse geral (Allgemeinheit des Interesses), a atualidade (Aktualität) e a produção profissional (Gewerbsmässige

Erzeugung), fruto de um empreendimento econômico (Wirtschaftliches Unternehmen).

A periodicidade e a aparição pública legitimam a ocupação do espaço coletivo pela imprensa; já a diversidade, o interesse geral e a atualidade são os elementos que atraem a audiência, além de sustentar e autenticar o estatuto de “clero leigo” dessa categoria de produtores simbólicos. Por fim, a produção profissional e o empreendimento econômico remetem tanto à

84 Weltanschauung deve ser compreendida, no âmbito dessa dissertação, como o conjunto

ordenado de valores, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, a respeito da época ou do mundo em que se vive.

laicidade da cultura burguesa quanto ao próprio estatuto capitalista do regime político-econômico.

O jornalismo, portanto, é um agente mediador entre o público, figurativizado como “opinião pública”, e os gestores políticos, econômicos, sociais, culturais e científicos dessa sociedade. O vínculo dessa atividade à idéia de Estado Nacional, tão bem exposto por Groth em sua obra, sofreu uma fissura na contemporaneidade, com a falência do metarrelato marxista (LYOTARD, 2002, p. 69), tido como o grande discurso legitimador da emancipação humana e a fragilização do sistema democrático- representativo (VERON, 1991, p. 168-170), assim como do estatuto da imprensa nesse ambiente (GANS, 2004, p. xii). Simultaneamente a isso, a Internet surgiu e vem conquistando espaço e audiência.

Essa rede mundial de computadores, principalmente sob a forma da World

Wide Web, desenvolvida a partir de 1992, caracteriza-se entre outras coisas

por uma grande participatividade, já observada por Lévy (2001b, p. 48). Se a rede criou um speaker’s corner85 em escala global, com acessibilidade ampla, tanto por parte daquele que pretende se manifestar quanto por parte dos que se candidatam a audiência desses discursos, a Internet apresenta- se como um avatar de um processo que lhe antecede e que pode ser definido como a dessacralização da palavra, conforme Bakhtin (1997a, p. 371) assinala:

“O homem moderno já não proclama nem declama, fala e fala com restrições (...) Os sujeitos falantes dos gêneros declamatórios nobres – sacerdotes, profetas, pregadores, juízes, chefes, patriarcas etc. – desapareceram da vida (...) Realizou-se uma secularização completa da literatura.”

Tal processo decorre de uma instrumentalização tecnológica observada por Walter Benjamin86 e McLuhan e Fiore87, supracitados nessa dissertação, e que ilustram a máxima de Deleuze e Guatarri (1995, p. 31): “uma sociedade se define por seus amálgamas e não por suas ferramentas”. A cada inovação tecnológica, desde a invenção da imprensa, passando pelas máquinas fotocopiadoras, as condições para qualquer um falar o que quiser para quem quiser tornaram-se cada vez mais propícias, e foi nesse sentido que os inventos se disseminaram.

Por isso, o weblog, compreendido principalmente como página de hipertexto pré-moldada, é o produto por excelência dessa palavra dessacralizada do ambiente on-line. Mais até que pura e simplesmente profana, é também a palavra banalizada. Sob esse aspecto, é interessante observar o papel do

blog jornalístico. Qual seria, nesse contexto, a idéia de imprensa que esses

projetos expressam? Para tentar responder a essa pergunta, a pesquisa apóia-se nos fundamentos da Análise do Discurso.

86 C.f. p. 68-69. 87 C.f. p. 69.