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A apreensão da unidade infinita na multiplicidade finita

A REVOLUÇÃO CRÍTICA E A RESTAURAÇÃO HEGELIANA

27 Um dos exemplos seria a posição que esse toma numa de suas primeiras

2.3.2. A apreensão da unidade infinita na multiplicidade finita

34 Phãno, p. 15; trad. Hyppolite p. 9 '35 Phãno,p. 72

Se Hegel não admite a possibilidade de um acesso ao Absoluto via uma intuição intelectual, como pretende resgatar a metafísica? Seria esse um passo atrás na história da filosofia, desconsiderando os progressos da filosofia crítica? Hegel, é verdade, elogia a antiga metafísica, pois essa "considera as determinações do pensamento como determinações fundamentais das coisas" (Enz, I, §28); todavia, visto que a fílosofía não pode nunca voltar atrás no seu tempo, esse resgate da metafísica é sempre um resgate pós- crítico. Hegel, ao resgatar os objetos da antiga metafisica, enquanto objetos de um conhecimento possível, recusa, todavia, seu método. A antiga metafísica, ao contiário do que Hegel pretendia com sua filosofia especulativa, mantinha uma posição unilateral em relação ao conhecimento: a consciência era submetida ã realidade exterior a ser apreendida tal qual é. O movimento do conhecimento dava-se assim de forma univetorial, da exterioridade do objeto (fosse ele o ser, a alma, o mundo ou Deus) em direção à interioridade da consciência. Em suma, à fixidez de seus objetos correspondia uma fixidez da forma de apreensão. Hegel pretende constiuir uma filosofia que dê conta da objetividade de uma forma crítica, enquanto a metafísica antiga, nesse ponto, mantinha-se na crença da possibilidade de apreensão ingênua da verdade do mundo.

No § 28 da Enciclopédia, nos é mostiado que o problema da metafísica antiga era pensar que se pudesse chegar ao conhecimento do Absoluto atiavés da mera atiibuição de predicados finitos:

"Essa metafísica pressupimha que se pudesse chegar ao conhecimento do Absoluto, em lhe atribuindo predicados e não examinava, nem as determinações do entendimento segundo seu próprio conteúdo e valor, nem essa forma que consiste em determinar o Absoluto através da atribuição de predicados".

Ainda que considerando essa metafísica como superior à filosofia crítica, por considerar ''as determinações do pensamento como determinações fundamentais das coisas" (Enz, § 29); todavia, o erro dessa metafísica foi indicar que nós pudéssemos chegar ao conhecimento do Absoluto, atribuindo-lhes predicados que não o esgotam. Se nós permanecermos, portanto, ligados à idéia de representação (Vorstellung) do Absoluto por intermédio destes predicamentos, nada nos pode livrar do interdito crítico- não é possível um conhecimento do Absoluto, da alma, do mundo como totalidade- pela razão de que o entendimento só pode conhecer um objeto como aquele ao qual pode ser atribuído predicados típicos dos entes finitos. "Tais predicados são, por exemplo"- afirma Hegel- "ser-aí, como na proposição 'Deus tem um ser-aí'; finitude ou infinitude, na questão de saber se o mundo é finito ou infinito; simples ou composto na proposição 'A alma é simples'; ou ainda 'A coisa é um todo, é una, etc'." (Enz,§28)

Se atribuímos a entidades infinitas predicados típicos de entidades finitas, cairemos inevitavelmente em contradição e Kant fora bastante hábil para mostrá-lo nas suas antinomias. Como conhecer.

então, o infinito, que não por meio de atribuição pelo entendimento de predicados dos entes finitos, sob o modo da representação? Hegel responde: "A diferença entre representação e pensamento possui uma importância especial, pois pode-se dizer que a filosofia nada mais faz que transformar {verwandeln) representações (Vorstellungen) em pensamentos {Gedanken). (Enz § 20)"''6.

Assim, a inspiração na metafísica antiga não significa uma volta a esta, pois, ainda que venha a reintroduzir os objetos banidos do conhecimento pela filosofia crítica, a filosofia hegeUana inova quanto à forma de apreendê-los (não mais através de representações, mas de pensamentos), e quer designar-se como pura filosofia especulativa, filosofia essa que deve apontar para a superação do conhecimento sob o único modo da representação.

A representação é o modo de conhecer típico do entendimento, no qual as determinidades dos objetos são tomados isoladamente:

"Ora, a representação, ou bem permanece na afirmação que o direito é o direito. Deus é Deus,- ou bem, mais cultivada, avança algumas determinações, por exemplo, que Deus é o criador do mundo, que ele é soberanamente sábio, todo-poderoso, etc. Aqui são colocados, umas após as outras, várias determinações simples isoladas na sua singularidade, que, a despeito da

3ôSobre essa passagem ver o interessante artigo de M.Rosen "From Vorstellung to Thought: Is a non-Metaphysical view of Hegel possible?”, in:

relação que lhes é atribuída, elas permanecem exteriores umas as outras.

O problema do conhecimento sob o único modo do entendimento consiste em que o objeto é visto como o somatório de várias determinações isoladas. O entendimento procura apreender a significação dos objetos de conhecimento através da atribuição de predicados. Se esse conhecimento não é inadequado no que toca aos objetos finitos, ele é impotente para apreender o movimento incessante do Absoluto; a necessidade de representar o Absoluto como sujeito utiHzou as proposições nas quais o verdadeiro é posto como sujeito apenas indiretamente, mas não é representado como o movimento do refletir-se em si mesmo.

A mera atribuição de predicados não dará conta desse incessante movimento; trata-se somente de um somatório de atribuições; "O sujeito é tomado como um ponto fixo ao qual os predicados estão presos como ao seu suporte, por meio de imr movimento que pertence a quem tem um saber do sujeito, mas que não deve ser considerado como pertencendo igualmente ao ponto" (Phãno, 723,p.l5)

Pctra superar a parciaÜdade do entendimento nos é proposta a filosofia especulativa. O sentido do que Hegel entende por pura filosofia especulativa deve ser buscado no § 79 da Enciclopédia,

por ocasião da exposição da divisão da lógica: "O lógico tem, segundo a forma três lados: a)o lado abstrato, ou lado do entendimento; b)o lado dialético [die dialektische] ou negativamente racional; c) o lado especulativo [die speculative] ou positivamente racional". Estes vários "lados" do lógico não significa que a apreensão do mundo se daria segundo um ou outro, de forma excludente; ao contrário, o lado especulativo ou propriamente racional (que designaria a filosofia especulativa) seria uma unidade do lado abstrato do entendimento (que apreende as determinações de modo imediato) com o lado dialético (que as apreende na sua oposição estrutural). A atividade especulativa deve ser, portanto, como a imidade da unidade (ou da fixidez do entendimento) e da diferença (o dialético ou negativamente racional).

A filosofia especulativa não rejeita o "lado do entendimento", apenas mostra que ele não dá conta de toda realidade, pois sua forma de apreensão através de determinações estanques e singularizadas, colocadas uma ao lado da outra, é inadequada para o conhecimento do Absoluto. Para explicar o conhecimento do infinito, devemo-nos ater ao momento dialético. O momento dialético é aquele que, frente a uma aparência de contradições, as supera através da compreensão da passagem das determinações aos seus opostos, sendo que a multiplicidade da realidade não impediria o conhecimento dessa.

Esse modo de conhecer não é novo, lemos no Zusatz ao § 81 da Enciclopédia: Platão, no seu Pamiênides, já mostrara a unidade presente na multiplicidade. É verdade, Hegel nos alerta na abertura de sua análise sobre Platão nas Lições sobre a História da filosofia, os ensinamentos do filósofo grego não haviam chegado à essência da verdadeira concepção da dialética: aquela que mostra o movimento necessário dos conceitos e unidade obtida a partir de determinações opostas. O filósofo grego, todavia, já superara a maneira de pensar a dialética como arte da sofistica: dizer do que é, que não é; do que não é, que é. Platão teve o mérito, portanto, de dar outro sentido à palavra dialética, ela deixa de ser a "arte do engano" para transformar-se na ciência que mostra a exposição do movimento dos conceitos.

Mas é o terceiro momento- o especulativo- que apreende realmente a unidade das determinações na sua oposição. É ao pensamento especulativo, que cabe a total superação da abstração e formalidade do entendimento na apreensão da "unidade das determinações diferentes". O resgate da metafísica só é possível, portanto, mediante xmia filosofia especulativa para a qual a aparente dispersão e multiplicidade do mundo finito nos possa levar a uma imidade da diferença, imidade essa que é a Razão, ou o Absoluto.

Em suma, para Hegel, o acesso ao conhecimento do Absoluto não pode-se fazer através de uma operação do entendimento.

ou seja, através da representação (Vorstellung) de um objeto supra- sensível, visto que não há intuição desse. Como falar do Absoluto e não utiHzar o modo de predicação do entendimento? Criaria Hegel imi novo discurso para dar conta do movimento próprio do Absoluto? Poderíamos responder afirmativamente a essa questão: a Ciência da

Lógica propõe em si mesma novas categorias e novos encadeamentos categóricos que dão conta desse movimento. Através dessa nova lógica, pode-se dar conta da exposição (Darstellung) do Absoluto na multiplicidade do mundo. E a ciência filosófica nada mais é senão a compreensão desse processo de auto-exposição, que significa também uma autodicção do Absoluto.

A noção de exposição parece ser a chave de compreensão de uma. filosofia que não se quer dogmática e , portanto, reivindica para si os progressos da filosofia crítica, ao mesmo tempo em que procura evitar os interditos trazidos por essa teoria. Uma filosofia baseada na Darstellung do Absoluto seria a única possível, aos olhos

hegehanos, de atender aos objetivos kantianos de superar

filosoficamente a cisão sujeito/ objeto, típica do realismo transcendental ou de um idealismo empírico, ao mesmo tempo em que reincorpora os objetos postos para fora do campo do conhecimento; a filosofia especulativa procuraria uma superação dos limites das filosofias do entendimento.

Nossa estratégia de abordagem dessa noção de capital importância para uma filosofia que se pensa como um resgate do

''santuário onto-teológico", será, num primeiro momento, mostrar o deslocamento operado entre o idealismo transcendental e o idealismo absoluto; num segundo momento, ao indagar sobre a prova de tal Absoluto que é ele mesmo subjetividade e objetividade, mostrar que é a noção mesma de Darstellung que substituirá um procedimento argumentativo das provas da existência de Deus.

Hegel concebe a filosofia crítica como aquela que, dentio da tiadição filosófica que o antecedeu, antecipou a correta identidade entie lógos e ser. Kant chegaria ao limite da apreensão dessa identidade entie pensamento e reaHdade, sem, no entanto, lograr sua total compreensão, sendo visto como aquele que não ousou dar um passo em direção a essa identidade originária. Paul Guyer explica-nos corretamente esse misto de elogio e crítica que Hegel dirige a Kant:

"Na visão de Hegel, Kant deu uma contribuição indispensável ao progresso da filosofia, ao reconhecer que os princípios mais básicos do pensamento himiano refletem a estiutura das nossas próprias mentes. Mas, assim como o Moisés que podia ver, mas não entiar na terra prometida, ele não pode apreender a verdade última, entendida pelo próprio Hegel, de que a natureza do nosso próprio pensamento e da realidade à qual Kant a contiastava, era de fato, a mesma.

Ao entiar na terra prometida que o Moisés crítico apenas avistou, terra essa que exibiria a pretensa identidade entie a natureza do nosso pensamento e a realidade, Hegel fará uma passagem entie uma identidade permitida por Kant a uma outia jamais sonhada por ele. A seguinte passagem da Intiodução à Ciência da Lógica, mostia-nos que Hegel, em alguns momentos de sua obra, realmente se pensa como aquele que continua o projeto da filosofia crítica: "A filosofia crítica, é