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Lógica e História mundial: uma prova indireta?

À PROCURA DE UMA PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

33 Tentaremos provar que este sentido de mostrar poderia encontrar um exemplo na filosofia hegeliana, não considerando a Ciência da Lógica

3.3.3. Lógica e História mundial: uma prova indireta?

Hegel pretende que sua Lógica tome o lugar da antiga metafísica, na qual existe um acordo entre a coisa e o pensamento, ou seja, "o pensamento nas suas determinações imanentes e a natureza

verdadeira das coisas formavam um mesmo conteúdo" (WL,I,p.38) A

Lógica, é verdade, não apresentará como prova de si nada além do que seu desenvolvimento imanente; todavia, ela pressupõe que tenhamos atingido o conceito de ciência pura, na qual a cisão entre sujeito e objeto tenha sido transposta e superada:

"Nós tomamos como ponto de partida na exposição que segue o conceito de ciência pura e sua dedução, visso que pensamos que a Fenomenologia do Espírito não é outra coisa senão sua dedução. (...) A ciência pura supõe, então, que se está Hvre da oposição que perturbava a consciência. Ela contém o pensamento, na medida em que ela é, ao mesmo tempo, a coisa-em-si, ou a coisa-em- si, na medida em que ela é, ao mesmo tempo, pensamento puro." (WL,I,p.43).

A Fenomenologia do Espírito é apresentada como uma sucessão de experiências da consciência, caminho no qual é superada a rígida cisão entre o sujeito cognoscente, independente do objeto, e o objeto a ser conhecido, apartado do sujeito. Esse caminho é realizado, mostrando-se as contradições a que levam a posturas unilaterais que privilegiam, ou bem o sujeito, ou bem o objeto; o saber absoluto, culminação do processo, é exatamente a superação dessa cisão. Para que a consciência mais primitiva chegue, todavia, ao saber absoluto, é necessário que uma história sirva como fundamento para esse percurso , e essa história é o prodigioso trabalho do espírito do mundo^^.

3*3 “Visto que não somente a substância do indivíduo, mas o espírito do mundo mesmo teve a paciência de percorrer estas formas em toda

A Fenomenologia retrata o caminho da consciência que nada mais é do que uma recapitulação, por parte do indivíduo, do percurso da história mundial, percurso esse que é recapitulado sob a forma do pensamento. O imenso labor temporal do Weltgeist é abreviado, reduzido à simples determinação da consciência. Para que possa haver história da consciência é necessário, portanto, que haja uma prévia história do mundo.

A Fenomenologia é a abstração da história mundial, no sentido de recolher nesta os momentos mais importantes, que poderiam ser tomados como necessários para que a consciência vá da sua figuração mais primitiva até o saber absoluto.. A obtenção do Absoluto, enquanto saber, é feita pelo intelecto finito, através de uma sucessão de experiências da consciência. No prefácio da Fenomenologia, nos é mostrada a necessidade dessa sucessão, através da crítica ao acesso imediato ao Absoluto proposto pelo irracionalismo romântico;

"Com efeito, se o verdadeiro existe somente no que é chamado ora intuição, ora saber imediato do Absoluto,..., então, a partir de semelhante posição, o que se exige para a exposição da filosofia é justamente o oposto da forma do conceito. O Absoluto não deve ser expresso como conceito, mas somente sentido e intuído

extensão do tempo (...) assim, segundo a coisa mesma, o individuo não pode conceber sua substância por uma via mais curta e, no entanto, a pena é, ao mesmo tempo mais curta, pois, em si, tudo já está cumprido, o conteúdo é a realidade efetiva já aniquilada na possibilidade (...) a configuração já reduzida ã simples determinação de pensada. (Phãno, p.33).

Segundo Hegel, confornne vimos no capítulo 2 , nos seria vedado essa intuição intelectual do Absoluto, o que nos levaria a procurar um caminho mais árduo para obtê-lo. O intelecto finito percorre o caminho de suas diferentes figurações na história do mundo, que se tornam, na sua abstração, figuras da consciência.

A Lógica pressupõe a Fenomenologia, afirma Hegel, porque as categorias iniciais da primeira (o puro ser e o puro nada) são o produto de uma abstração do processo fenomenológico, que teve lugar nesta; trata-se, no vocabulário técnico hegeliano, de uma imediatidade mediata, que abstraiu sua própria mediação. A Ciência da Lógica abstrai seu próprio processo de obtenção: ela aparecerá inicialmente como indeterminação, mostrando paulatinamente seu conteúdo, ou seja, suas determinações internas. Ao abstrair sua própria mediação, ela (a

Lógica), põe-se do ponto de vista do intelecto infinito, pois as categorias que são, ao mesmo tempo, do ser e do pensar, são categorias do próprio Absoluto. É apenas neste sentido que a Ciência da Lógica pode ser tomada como prova: trata-se do próprio Absoluto- obtido pelo intelecto finito na Fenomenologia- desdobrando-se nas suas categorias internas e expondo suas determinidades:

"A Lógica deve, então, ser concebida como o sistema da razão pura, como reino do puro pensamento. Esse reino é o reino da verdade, como ela, sem máscara, é em -si e para si mesma. Pode-se dizer que esse conteúdo é a exposição de Deus (die Darstellung Gottes), tal como

ela é na sua essência eterna, anteriormente à criação da natureza e de um espírito finito". (WL, I,p.44)

Enquanto a Fenomenologia apresenta o caminho pelo qual a consciência deve passar para superar a cisão sujeito / objeto, a Ciência

da Lógica nos ofereceria uma compreensão do próprio Absoluto, alcançado através do percurso da consciência finita.

O procedimento da Ciência da Lógica consistiria, conforme vimos, numa exposição de categorias, numa seqüência de progressivas determinidades, que vai da indeterminação primeira do ser/ nada até a completude da Idéia absoluta. Para aqueles que desejam uma prova da objetividade do idealismo absoluto, entendida como prova de que a Idéia absoluta (Deus) não é apenas im\a idéia reguladora- tal qual o intelecto intuitivo de Kant- mas realmente informa o mundo, talvez essa mera exposição não seja suficiente. A Dartellung das categorias mostraria, no máximo, um sistema categorial coerente; sua possibilidade, portanto, mas não sua efetiva realização no mundo.

Para aqueles, portanto, que não consideram que a mera exposição da coerência interna seja suficiente como prova da objetividade dessas categorias, indicar-se-á o que se poderia chamar uma prova indireta. Poderíamos pensar que, ainda que não tenhamos uma prova da objetividade das categorias da Lógica, elas seriam

desenvolvimento histórico. A prova proposta segue, em grandes linhas, o argumento de Aristóteles no livro F , 4 da Metafísica ^^para demonstrar o princípio de não-contradição. Aquele que nega este princípio deve abdicar do sentido de suas proposições.Esta forma de argumentação chamar-se-ia de argumentação por refutação: o autor da petição de princípio- que algo é e não é ao mesmo tempo- não será o que demonstra, mas o que sofre a demonstração, pois, ao destruir a demonstração, ele se presta à demonstração.

Analogamente , aquele que nega a tese da filosofia especulativa deveria abdicar do sentido do mundo e declarar que não há racional a ser procurado no real, que os eventos do mimdo são contingentes e arbitrários. Não podemos dar conta do que acontece e aconteceu na história - no sentido de expHcá-lo racionalmente- sem considerar a pressuposição categorial da Ciência da Lógica, bem como a tese, nesta implícita, de que o lógico informa o real. A história mundial complementaria a exposição da Lógica, oferecendo-se como o terreno de sua demonstração indireta.

Ao mesmo tempo, o olhar do filósofo articula os momentos históricos, conforme uma finalidade que os transcende. Estaríamos, neste caso, frente a uma prova pelos efeitos, aos moldes da prova físico- teológica; prova esta que, todavia, substituiria a teleologia natural por uma teleologia histórica.

A consideração dessas duas vias- a Weltgeschichte como prova indireta e como prova teleológica - pressupõe uma análise minuciosa da relação entre categorias lógicas e percurso temporal do espírito, o que será objeto da segunda parte deste trabalho. Consideramos, contudo, que não essamos necessariamente presos a uma disjunção e que o texto hegeliano poderá tornar plausíveis ambas as hipóteses.

Deve-se ressaltar que Hegel abdica da filosofia do entendimento, a qual sustentava o rigor demonstrativo de uma prova por puros conceitos. Uma exposição imanente de categorias, tal como a apresentada na Lógica, baseada num critério de verdade como coerência interna, não nos oferece a evidência e o rigor da prova ontológica da tradição; ela deve ser complementada pela história, a qual cumprirá o papel de complementar a exposição categorial, seja como prova indireta, seja como prova teleológica. Nesse momento, Hegel revela sua veia trinitária42: a história mundial é a incarnação da Razão. Ainda que haja, quanto a este ponto, uma certa ambigüidade do texto hegeliano, podemos afirmar que essa incarnação é parte essencial da prova do idealismo absoluto, seja como o percurso que é abstraído na Fenomenologia, seja como momento de uma prova indireta, que viria a complementar a exposição da Ciência da Lógica, seja

42 D.Rosenfíeld chama a atenção para a raiz trinitária das provas