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A moralidade: a instância judicativa trazida pelos tempos modernos

(DA METMÍSICA WEÇELIA!m

SEGUNDA NATUREZA

4.1. A articulaçao lógica do espírito objetivo

4.1.2. A moralidade: a instância judicativa trazida pelos tempos modernos

Se o espírito objetivo é precisamente o dar-se um ser-aí da liberdade, como justificar seu segundo momento? A moralidade não seria exatamente apenas um saber-se como livre típico do espírito subjetivo? M. MüUer ^assinala a originaHdade e a novidade de Hegel frente aos seus predecessores imediatos do ideaHsmo alemão (Kant e Fichte) ao introduzir a moralidade no campo do que seria reservado à legaHdade. Ao contrário de Kant, temos a moraHdade como sucedendo -e não precedendo- o equivalente kantiano de uma Doutrina do direito e intercalada entre essa e uma doutrina das virtudes.

Se, no direito abstrato o ser- aí que a Uberdade se dá é a propriedade, qual o ser- aí que a vontade se dá na moraHdade? Na moraHdade, a vontade refletida nela mesma, tem seu ser- aí no interior dela mesma (Enz § 487). Não estaria essa afirmação a contradizer a essência mesma do espírito objetivo como a posição de um mundo, de uma segunda natureza pela vontade? Qual o significado, para a objetividade do espírito, dessa reflexão em si mesmo da vontade, de pôr seu ser-aí no interior de si?

* Utilizo-me aqui do texto da conferência do referido autor denominada "Ambiguidade e dialética da consciência moral moderna segundo Hegel", apresentada no Colóquio Franco-Brasileiro , Porto Alegre, outubro de

Uma primeira resposta à essa questão seria a própria necessidade de superar a imediatidade do primeiro momento da exposição da vontade: o direito abstrato. Se há pouco ressaltamos o aspecto positivo dessa abstração do direito- o direito é abstrato pois universal- a moralidade nessa exposição relaciona-se ao aspecto negativo do termo abstrato em Hegel: o direito privado é dito abstrato, pois incompleto, sendo necessário seu acabamento por figurações mais concretas. No que consistiria exatamente essa incompletude do direito abstrato?

Ao analisar, nas Lições sobre a Filosofia da História, na seção consagrada ao mundo romano, o nascimento histórico do conceito de

pessoa, Hegel comenta que, tanto no mimdo oriental, como no mundo grego, as regras do direito dependiam dos costumes e das relações morais concretas e subjetivas que os indivíduos mantinham entie si; elas não continham em si um princípio firme que as protegessem das variações dos costumes. Os romanos realizaram essa separação entie costumes e direito; todavia, se eles "nos deram assim um grande presente quanto à forma", seu princípio jurídico é exterior, carecendo de intenção e de alma {gesinnunglos und gemütlos, PhG, p. 351). A moralidade visa suprimir exatamente essa carência de intenção e alma, a reflexão em si mesmo da vontade visa buscar seu fiindamento de determinação, não na imediatidade dos costumes ou na abstiação do direito, mas nela própria.

Esse ponto de inflexão do próprio espírito objetivo rimio à interioridade apresenta-se historicamente como a diferença entie a antigüidade e os tempos modernos: "o direito da particularidade do

sujeito a encontrar-se satisfeito ou, o que é o mesmo, o direito da liberdade subjetiva constitui o ponto de inflexão e o ponto central da diferença entre a antigüidade e os tempos modernos" (RPh, § 124).

Os tempos modernos trazem consigo a idéia de homem como sujeito moral, para o qual a obrigação não é dada por algo exterior, mas pelo próprio saber interior do que é justo e bom; "essa mais profunda solidão interior consigo" (diese tiefste innerliche Einsamkeit mit

sich), "o completo retraimento dentro de si mesmo" (diese durchgängige

Zurückgezogenheit in sich seihst) constituem a consciência moral que sabe que seu pensar é o único que obriga (RPh § 136 Zu). Trata-se de uma capacidade de julgar interior, independente de instituições, que determina, por si mesmo, o que é justo e bom. Temos aqui uma apresentação daquilo que, segundo Hegel,^ veio à luz na história mundial com o cristianismoio g fQj tematizado filosoficamente pela filosofia kantiana: a vontade livre deve-se expressar como sujeito moral autônomo, cujas leis são dadas pela própria consciência do que é o dever. Ainda que criticando a moral kantiana- crítica essa que aparecerá como a contradição da moraHdade e sua necessária

Devemos ressaltar aqui que as várias interpretações históricas que dará o nosso texto procuram, antes, ser a apresentação do pensamento hegeliano, do que um retrato fiel da época. Assim se passa com o cristianismo, a interpretação hegeliana é que esse traz, ao desenvolvimento do espírito, a idéia da consciência moral. Poderíamos objetar que esse não é o lugar de nascimento da subjetividade, e até mesmo que ela já existe como tal desde os primórdios da civilização grega. Nosso objetivo, todavia, não é refutar a

opinião hegeliana, nem defendê-la como uma verdade histórica

inquestionável, mas tentar compreender, a partir da sua própria

interpretação dos fatos históricos, a articulação entre os vários momentos históricos e as etapas do desenvolvimento do espírito.

^0 O cristianismo operaria historicamente essa separação entre legalidade e justiça, já que seus preceitos iniciais opunham-se a todo tecido institucional romano.

superação na eticidade- Hegel reconhece que o princípio de autodeterminação da vontade é a raiz do dever e que o conhecimento da vontade tem seu ponto de partida na filosofia kantiana, graças à idéia da autonomia infinita da vontade. Com Kant, aprendemos que "devo praticar o dever em vista dele mesmo, e o que eu realizo plenamente no dever é a minha própria objetividade no sentido verdadeiro: ao cumpri-lo permaneço junto de mim e sou livre" (Rph, &133, Zu)^i. A mais alta contribuição kantiana foi, portanto, mostrar que a vontade que permanece junto de si- e realiza o dever pelo dever- é uma vontade livre.

Se Kant, todavia, na construção do seu sistema de filosofia prática, tem a moralidade como fundamento da doutrina do direito e da doutrina das virtudes, Hegel inverte essa ordem intercalando entre um e outro sua doutrina da moralidade. As razões dessa inversão não devem ser buscadas historicamente- ainda que Hegel localize o princípio da subjetividade como posterior ao direito abstrato romano- mas numa necessidade de justificação dos conteúdos éticos, sejam eles leis, costumes, instituições, pela consciência moral. A consciência moral tem, portanto, um aspecto de justificação objetiva dessa esfera do espírito, os conteúdos normativos, para que sejam considerados como efetivação da idéia da liberdade, devem passar pelo julgamento da consciência moral. Como bem ressalta M. Müller:

"Ao intercalar a Moralidade entre a Doutrina do direito e a Doutrina das Virtudes (Kant), ou a Doutrina dos Costumes JFichte), Hegel pretende realçar o caráter ético do Estado e a necessidade de

Utilizo a tradução de M.Müller, publicada na revista Idéias, ano 1, n° 2, julho/ dezembro 1994, p.47.

que as instituições éticas sejam aceitas, não só por uma conformidade externa, mas, também, por um discernimento autônomo e uma livre afirmação de sua validade objetiva e da sua efetividade".

Pode-se afirmar que o momento da moralidade tem a função de juiz das duas outras esferas do espírito objetivo ( direito abstrato e eticidade). Toda lei e toda instituição só podem ser consideradas como expressão de uma vontade racional se seu conteúdo for objeto de assentimento por parte da consciência moral.

Hegel nos alerta, porém, que a moralidade, deixada ao seu formalismo, pode inverter o bem em mal; essa é sua contradição, contradição à qual a própria moralidade kantiana parece estar exposta. Hegel acusa o imperativo categórico de formal, pois ele não nos dá o conteúdo da lei moral, é apenas um critério de avaliação das máximas: "A forma kantiana ulterior, a capacidade de uma ação ser representada como máxima universal, traz certamente a representação mais concreta de uma situação, mas, por ela mesma, não contém nenhiom outro princípio que não seja essa ausência de contradição e a identidade formal". (RPh § 135) Nesse comentário de Hegel sobre a moralidade kantiana, comentário que será estendido a outros autores que expressam essa concepção moral da modernidade, podemos perceber qual a pretensão hegeliana. Se Kant e outras matizes da filosofia moral de sua época pretendem apenas uma regra de discriminação de máximas morais, Hegel, ao contrário, vai em busca de uma teoria que Lhe forneça uma concepção total de Bem e não apenas um critério de determinação de conteúdos já dados.

Ora, que o imperativo categórico seja formal, essa é uma crítica que não atinge as bases da teoria moral de Kant, pois esse é claro quanto ao caráter meramente discriminatório de máximas que pretende atribuir àquele- ele deve ser necessariamente formal, o conteúdo das máximas deve ser buscado nos costumes e não ser objeto de dedução. A crítica de Hegel tomar-se-ia, frente àquele que defende a teoria kantiana, mais um elogio das virtudes da sua filosofia prática e a certeza de ter alcançado seu objetivo de uma independência da matéria de lei para a determinação do princípio da moralidadei^.

Vemos, então, que o princípio da moralidade deve ser independente do objeto desejado; a dependência do livre-arbítrio em relação a seus objetos não é capaz de fundar nenhuma teoria moral, nos diz Kant. O livre- arbítrio deve determinar-se, não pela matéria de lei, mas pela forma da lei, forma legisladora universal. É essa ênfase na forma da lei, que exclui a matéria do juízo moral, que Hegel criticará como formalismo;

"Pode-se, certamente, introduzir de fora um material e, graças a ele, chegar a deveres particulares; porém, a partir daquela determinação do dever enquanto ausência de contradição e concordância formal consigo, que nada mais é do que a fixação da indeterminidade abstrata, que não pode passar à determinação de deveres particulares, nem reside naquele princípio, se netra em

A teoria moral kantiana não tem a pretensão de deduzir deveres; seu formalismo constitui-se num objetivo claramente almejado, conforme

podemos ver, entre outros textos, no teorema FV da Crítica da Razão

Prática: "Com efeito, na independência a respeito de toda matéria (ie, de

um objeto desejado) e, ao mesmo tempo, na determinação do livre- arbítrio pela simples forma legisladora universal, de que uma máxima deve ser capaz,é que consiste o princípio único da moralidade".

consideração um tal conteúdo particular para o agir, critério algum se ele é ou não imi dever"(RPh, &c 135).^'^ A crítica ao formalismo seria inócua, não fossem as consequências que Hegel daí extrai- o imperativo categórico, por ser formal, nada mais é do que uma indeterminidade abstrata, da qual não se pode passar a deveres particulares, não podendo ser tomado como critério suficiente para distinguir o bem do mal^^ ^ pura certeza de si da consciência moral é a "potência judicativa de determinar por si mesmo se um conteúdo é bom" (RPh § 138) e, nesse sentido, ela é capaz de fazer a crítica das determinações fixas do direito e do dever, nisto residindo sua necessidade para a averigüação da racionalidade de qualquer conteúdo ético. Hegel cita o exemplo de Sócrates como aquele que, num mundo onde a exterioridade dos costumes tomou-se infiel ã Idéia de liberdade, soube encontrar essa potência judicativa numa orientação em direção ao interior. A dissolução de todo conteúdo exterior, todavia, acarreta o risco de tomar o particular como o universal e cair no mal: " a consciência moral como subjetividade formal não é outra coisa senão estar prestes a cair no mal" (RPh § 139). O mal e a moralidade tem, portanto, uma raiz comum: o formalismo de uma certeza que "existe, conhece e decide por si" (RPh § 139).

A certeza de querer o bem por parte do sujeito não assegura a universalidade de suas máximas, o livre poder de determinar por si mesmo o que é bom ou mal não é suficiente para

Trad. M.M”uller, op. cit., p.49

15 No § 135 da Rph, não apenas são criticados a indeterminidade e

formalismo do imperativo categórico, ou seja, sua ineficiência, mas nos é apontado seu maior risco: apresentar uma justificativa para o agir ilícito ou imoral.

realmente diferenciar um do outro. Como bem assinala D. Rosenfield^^ "Com efeito, se a vontade moral permanece encerrada em um poder somente subjetivo de determinação do que é 'bom' ou 'mau', ela inevitavelmente cairá nas armadühas próprias de uma subjetividade que não consegue 'superar' as suas oposições naturais".

Hegel aponta para o fato de que concepções de Bem baseadas em critérios formais não nos apresentam um princípio suficiente -ainda que possa ser julgado como necessário- para a distinção entre bem e mal.^^

A dificuldade apontada por Hegel consiste na averigüação da conformidade da máxima (enquanto princípio da ação particular) à condição de sua universalização. Ao examinar o exemplo da promessa falsa^^, Kant mostra como decidir se uma ação é conforme ao dever: devo perguntar "ficaria eu satisfeito de ver a minha máxima tomar o valor de lei imiversal?" O exemplo da promessa mentirosa não resiste, por certo, à exigência de universalidade: tomar como lei universal "deve-se fazer uma promessa toda vez que alguém se encontra em apuros" anularia a própria idéia de promessa.

Rosenfield, Política e Liberdade em Hegel, p. 127.

Hegel consagra o § 140 dos Princípios Fundamentais da Filosofia do Direito à análise destas armadilhas da subjetividade, estendendo sua crítica a várias correntes da filosofia moral moderna: a filosofia da subjetividade absolutizada de Fries, a hipocrisia, o probabilismo, a crítica da convicção,... A justificativa da necessária suprassunção da moralidade na doutrina da eticidade (incluindo aí a própria história universal como momento último do espírito objetivo) tem nesse parágrafo um momento crucial, nele são apontadas as carências que o momento subsequente visa suprir.

A subsunção, todavia, do "conteúdo particular de uma ação" sob o que Hegel denomina de "determinação geral do Bem" (RPh § 140, p. 176) não se faz sem problemas. Se alguém rouba para dar aos pobres, sua máxima de ação pode ou não ser universalizada? Poder-se- ia pensar que, se essa máxima fosse elevada à condição de lei universal, a pobreza seria eliminada. Hegel nos dá outros exemplos de máximas cuja imiversalização é discutível. Se tomarmos, como ação moral, aquela que indica im\a resposta positiva à questão "Posso querer ver a máxima da minha ação tomar o valor de lei universal?", ações tais como "fugir ao combate para ocupar-se de sua família" ou " matar um homem mau para satisfazer o sentimento de direito em geral" poderiam ser tomadas como ações morais, pois não há contradição imediata em leis gerais do tipo "deve-se fugir ao combate toda vez que seja necessário cuidar de sua própria família" ou "deve-se sempre matar um homem mau". Em suma, sem uma concepção de bem, sem um pano-de- fundo de costumes, neiú\um critério formal pode ser eficaz.

O diagnóstico hegeliano da insuficiência da subjetividade moderna como medida do Bem e da possibilidade de cair no mal leva- o a um momento lógico subsequente ao espírito objetivo, onde a concepção de Bem deve ser construída numa coletividade e objetivar- se nxmia vida ética, sempre mediado pela subjetividade moral.

4.1.3. O Estado moderno: um produto lógico de uma obra