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1.3 A Estética marxista: a arte como chave de compreensão do mundo

1.3.3 Determinando a posição do fenômeno artístico no

1.3.3.1 A apreensão de uma estética marxista em relação à sua

Se até agora talvez ainda não tenha ficado totalmente explícito, deve então se reforçar que as ideias estéticas de Marx, por mais que não constituam um corpo orgânico de doutrina, aparecem ao longo de sua obra, sendo possível encontrar algumas delas sobretudo em seus trabalhos de juventude (VÁZQUEZ, 2011, p. 11). Insistindo neste ponto, pode-se inclusive sustentar que as considerações estéticas ocupam um lugar muito importante na teoria de Marx como um todo; elas estão tão intimamente ligadas a outros aspectos de seu pensamento que é impossível compreender adequadamente até mesmo sua concepção econômica sem entender suas ligações estéticas (MÉSZÁROS, 2006, p. 173-174).

Nesse sentido, diversas foram as tentativas empreendidas de consolidação de uma estética marxista, as quais apresentam os mais diversos resultados justamente por partirem de pressupostos diversos. O exemplo de Kautsky, primeiro grande pensador marxista a desenvolver um pensamento acerca do fenômeno artístico, concebendo a arte em termos ainda bastante restritos, constitui talvez uma das formas menos frutíferas de análise da questão. Deixando as questões estéticas sob a guarda de uma “filosofia emprestada”, que completava o vazio que o materialismo histórico deixava, a única coisa que o marxismo poderia oferecer nestes termos seria uma explicação do condicionamento da arte por fatores econômicos (VÁZQUEZ, 2011, p. 13). De fato, qualquer perspectiva reducionista de tratamento do problema estético está, de início, fadada ao fracasso. Mesmo Plekhanov, que sempre defendera com “notável firmeza” o princípio da dependência da arte em relação à vida social objetiva29, esforçando-se por desenvolver essa ideia tão cara ao materialismo histórico sem, no entanto, recair numa apreensão

29 “O ideal de beleza que impera em momento dado em determinada sociedade

ou em determinada classe da sociedade depende em parte das condições biológicas do desenvolvimento do gênero humano, que são as que determinam, entre outras cousas, as peculiaridades raciais; e em parte, das condições históricas em que surgiu e existe essa sociedade ou classe. E por isso, precisamente, dito ideal é sempre muito rico, de um conteúdo

inteiramente condicionado e nada absoluto. Quem rende culto à ‘beleza pura’ nem por isso se liberta das condições biológicas e histórico-sociais que determinaram seus gostos estéticos. É cerrar mais ou menos conscientemente os olhos a tais condições.” (PLEKHANOV, 1964, p. 27- 28, grifo nosso).

utilitarista do fenômeno artístico30, parte de uma tendência no sentido de reduzir a estética marxista a uma sociologia da arte, conferindo à arte uma formulação estreita, de dependência servil da criação estética ante a ditadura implacável e mesquinha das circunstâncias socioeconômicas, esquecendo-se completamente que a arte não se configura como simples produto do meio, mas é também uma manifestação da presença ativa do homem na transformação criadora do meio (KONDER, 2013, p. 49-50; VÁZQUEZ, 2011a, p. 15).

Contrapondo-se a tal perspectiva, pode ser retomada a própria abordagem de Marx acerca da relação desigual do desenvolvimento da produção material com o desenvolvimento artístico em sua famosa Introdução de 1857. Apesar de parecer que o materialismo histórico, neste aspecto, não é aplicável à arte, a doutrina da contradição historicamente condicionada entre arte e sociedade apresenta-se como um elemento indispensável tanto à interpretação marxista da história da arte como à doutrina de sua unidade (LIFSHITZ, 1938, p. 67-68) Assim, segundo Marx (2011a, p. 62), é sabido que, na arte, determinadas épocas de seu florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o de sua base material. Aceita-se mesmo que, no domínio da própria arte, certas formas significativas da arte só são possíveis em um estágio pouco desenvolvido do desenvolvimento artístico (MARX, 2011a, p. 62-63). A arte grega, por exemplo, pressupõe a mitologia grega, ou seja, a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação popular de maneira inconscientemente artística, sendo esse o seu material. A dificuldade, no entanto, não está em compreender que a arte e o epos31 gregos estão ligados a certas formas de desenvolvimento social, mas consiste no fato de que eles ainda são capazes de nos proporcionar

30 “[...] direi ainda que qualquer poder político prefere a concepção utilitária da

arte sempre e quanto, é claro, se interesse por essa matéria. Isso se compreende fàcilmente: o poder político está interessado em pôr tôdas as ideologias a serviço da causa que êle mesmo serve.” (PLEKHANOV, 1964, p. 17). E mais adiante: “De tudo isso se depreende claramente que a concepção utilitarista da arte se compagina tão bem com o espírito conservador quanto com o espírito revolucionário. A única cousa que pressupõe necessàriamente a tendência a esta concepção é um interêsse vivo e ativo por determinada ordem ou ideal social, qualquer que seja, e

desaparece, sempre que por uma ou outra causa desaparece dito interesse.” (PLEKHANOV, 1964, p. 22).

prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável.

Na leitura de Adolfo Sanchez Vázquez (2011, p. 16-17), as coisas teriam mudado um pouco de aspecto com a ascensão do pensamento político de Lênin, o qual teria permitido se falar de uma concepção da arte como forma de reflexo da realidade32, que proporcionaria verdades dotadas de certa validade objetiva apesar de seu condicionamento histórico33, teoria esta que – vale ressaltar – não deve ser transplantada mecanicamente do campo científico para o artístico. Trata-se apenas de uma compreensão de que o artista, ao refletir a realidade, reflete-se a si mesmo e, através dele, a sua época e sua classe, de maneira que a arte não pode ser reduzida – como o demonstra sua história – a seu valor cognoscitivo. (VÁZQUEZ, 2011, p. 17). De maneira muito salutar, seria aqui encontrada uma superação de uma visão subjetivista e mesmo de uma concepção sociológica vulgar em relação à arte. Salientando que é impossível afastar o elemento subjetivo da criação artística, o qual é constituído, em grande parte, pela concepção do mundo do escritor, Lenin não teria se limitado a conceber a arte como mera expressão ideológica, de modo a sublinhar o fato de que todo grande artista supera o marco de suas limitações ideológicas e nos fornece uma verdade sobre a realidade (VÁZQUEZ, 2011, p. 17). Mesmo admitindo-se que a arte possua um conteúdo ideológico, toma lugar a ressalva de que não se pode situar a arte e a política no mesmo plano, de modo a se permanecer fiel à tese marxista da arte como forma ideológica que expressa os interesses de classe, sem ignorar que não se pode reduzir a criação artística a uma expressão direta e imediata de ditos interesses (VÁZQUEZ, 2011, p. 18).

A estética de Lukács, por sua vez, condensa uma teoria que representa, no campo marxista, a mais fecunda realização da concepção

32 “Nuestras sensaciones, nuestra conciencia son sólo la imagen del mundo

exterior, y de suyo se comprende que el reflejo no puede existir sin lo reflejado, mientras que lo reflejado existe independientemente de lo que lo refleja. El materialismo pone conscientemente en la base de su teoría del conocimiento la convicción ‘ingenua’ de la humanidad.” (LENIN, 1983, p. 66-67).

33 “El dominio de la naturaleza, que se manifiesta en la práctica de la

humanidad, es el resultado del reflejo objetivo y veraz, en la cabeza del hombre, de los fenómenos y de los procesos de la naturaleza y constituye la prueba de que dicho reflejo (dentro de los límites de lo que nos muestra la práctica) es una verdad objetiva, absoluta, eterna.” (LENIN, 1983, p. 205- 206).

da arte como forma de conhecimento. Para Lukács, a arte constitui uma das formas possíveis de que dispõe o homem para refletir ou captar o real, cuja peculiaridade consiste justamente na categoria de particularidade, compreendida como “ponto médio” em que se supera tanto o singular quanto o universal. A partir de uma análise da apropriação destes termos pela teoria marxista, Lukács (1978, p. 87) ressalta a dialética que se introduz na relação entre singularidade e universalidade, criticando o aspecto de autonomização do universal presente na concepção idealista de tal relação. A manifestação histórica desta dialética, que pode ser extraída da exposição anterior acerca do pensamento de Marx, dá conta de demonstrar que o universal, enquanto, por um lado, é apenas uma diferença pensada, é ao mesmo tempo uma forma real e particular ao lado da forma do particular e do singular. Neste sentido, na dialética entre universal e particular na sociedade, o particular funciona como a expressão lógica das categorias de mediação entre os homens singulares e a sociedade, ou seja, expressão da indistinção, da unidade entre a vida social e a vida individual dos sujeitos. Desse modo que, quanto mais profundamente as leis e contradições da realidade vierem concebidos sob a forma da universalidade, tanto mais concretamente poderá ser compreendido também o singular (LUKÁCS, 1978, p. 104). Ainda que se encontre numa relação muitas vezes contraditória, o singular é, no fim das contas, o universal, não existindo senão em sua relação com o universal, do mesmo modo que o universal só existe através do singular (LUKÁCS, 1978, p. 109).

Esse movimento de um em direção ao outro sempre se apresenta mediatizado pelo particular, o qual possui características bastante específicas, constituindo-se não tanto como um “meio-termo” fixo, mas como um meio mediador que não se estrutura como uma amorfa e inarticulada faixa de ligação entre universal e singular (LUKÁCS, 1978, p. 112-116). Esta categoria adquire especial importância para a estética na medida em que é compreendida mais claramente como um ponto de convergência entre os termos figurados no reflexo estético, que busca “compreender, descobrir e reproduzir, com seus meios específicos, a totalidade da realidade em sua explicitada riqueza de conteúdos e formas” (LUKÁCS, 1978, p. 161). A arte é apresentada como uma atividade de superação da universalidade na sua particularidade específica (artística), um instrumento para uma compreensão mais profunda, rica e ampla dos fenômenos da vida, capaz de conservar no particular, ao mesmo tempo em que a supera, a singularidade de um fenômeno ou obra determinados (LUKÁCS, 1978,

p. 163-164). Ela é, assim, uma das formas pelas quais o mundo, a realidade, revela-se ao homem: um modo de ser da essência que não pode conservar sua autonomia fora do fenômeno (VÁZQUEZ, 2011, p. 36). A “realidade” da obra artística, esta sua “forma autônoma” criada pelo homem, é colocada diante de nós como uma realidade sensível, uma superação da singularidade imediata que é, tal como deve ser no reflexo artístico (que nisto se diferencia do reflexo científico), também a sua conservação no sentido mais literal; a particularidade, portanto, não recebe aqui uma forma autônoma como oposição à singularidade, mas sim como o universal que se faz presente na realidade objetiva, que se faz presente nas formas fenomênicas da singularidade imediata de modo indissociável (LUKÁCS, 1978, p. 176-177). Dito de outra maneira, a universalidade do objeto particular (a obra de arte) não pode se desenvolver fora do objeto, ou seja, aquele “conhecimento sensível” que a arte permite obter não comporta uma separação entre o “fenômeno” e o “universal”. Como bem salienta Leandro Konder (2005, p. 9), o universal está embutido no objeto singular, ou não está em parte alguma.