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1.3 A Estética marxista: a arte como chave de compreensão do mundo

1.3.1 A dialética e a existência cingida do homem: trabalho e

1.3.1.2 O real e o imaginário na configuração materialista do

Muito embora o sistema hegeliano não se limite à esfera da mera liberdade abstrata que experimenta o escravo (o qual não vive efetivamente como um homem livre, embora tenha uma consciência interior de sua liberdade, de modo que só é livre por e para o seu pensamento, e não como Ser-para-si), há um aspecto em sua concepção da atividade humana que impede a efetiva superação deste estado de não liberdade.

Conforme se depreende dos Manuscritos de Marx (2010a, p. 126), redigidos durante o ano de 1844, Hegel teria estabelecido a relação da consciência-de-si com o mundo como se fosse um retorno da consciência-de-si a si mesma, que suprassume a exteriorização e a objetividade: o mundo pertence ao seu ser, e a exteriorização da consciência-de-si põe este objeto enquanto coisidade na sua autoexteriorização (Selbstentäusserung), um mundo efetivo pertencente ao seu ser, muito diferente da forma natural da externalidade

(Äusserlichkeit). Os objetos estranhos, mediante a sua exteriorização (Entäusserung), são as forças essenciais do homem, que, para Marx (2010a, p. 126-127; 129), no entanto, só enquanto ser objetivo (assentado mediante objetos) é capaz de assentar objetos – quer dizer, só é capaz disso enquanto natureza. E assim seu produto objetivo confirma sua atividade objetiva, que através do saber vem-a-ser para a consciência. Neste sentido, portanto, a consciência-de-si estaria junto de si em seu ser-outro, expondo-se, por meio de tal explicação, o movimento da vida que se constitui através da autoconfirmação em contradição consigo mesma (MARX, 2010a, p. 129-130).

O homem se apropria de seu ser objetivo “mediante sua suprassunção na sua existência (Dasein) estranhada” (MARX, 2010a, p. 132), isto é, mediante a retomada, de volta em si, da exteriorização. Marx (2010a, p. 132) reconhece, portanto, que Hegel apreende o autoestranhamento, a exteriorização da essência enquanto autoaquisição, objetivação; em suma, teria ele apreendido – ainda que abstratamente – o trabalho como o ato de produção de si do homem. Como afirma Ranieri (2011, p. 79), “o trabalho é o momento primordial da saída-de-si da consciência, assumindo um papel originariamente plasmador, que é o espírito que sai de si e penetra no elemento estático da natureza”. Entretanto, com Marx (2010a, p. 124, grifo do autor) compreende-se também que “o trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual”, quer dizer, o ato de auto-objetivação do homem é apreendido apenas formal e abstratamente, pois é negação da negação enquanto abstração absoluta, novamente fixada como tal (MARX, 2010a, p. 133). Nessa atividade, a relação com a natureza é a relação com um puro nada, já que a sua intuição abstrata significa a criação de um ser-Outro que é produto puro do trabalho do pensar, ou seja, esta intuição é apenas a confirmação de sua abstração da intuição da natureza, é mera forma do ser-Outro da consciência. Fora destas abstrações, a natureza tem apenas o sentido de uma externalidade a ser suprassumida, uma debilidade que não deve ser, pois o verdadeiro é a Ideia (MARX, 2010a, p. 135-136). Desta maneira, a alienação ou exteriorização (Entäusserung), momento em que o espírito sai de si, objetivando-se, para retornar a si suprassumindo-se, não envolve a superação material da objetividade em prol de uma objetividade nova e mais rica, mas estabelece a síntese da objetividade no plano do Espírito (RANIERI, 2011, p. 88-89).

Para que se possa superar esta perspectiva unilateral, que, na prática, altera as coisas apenas no plano da consciência, deixando a realidade efetiva do jeito que está, deve ser adotado um ponto de vista

totalmente diverso. Conforme Marx e Engels (2007, p. 31) destacam veementemente n’A ideologia alemã, a percepção que o ser humano possui do mundo é algo condicionado pela atividade sensível dos homens, ou seja, por sua atividade produtiva material, pelo modo de produção e reprodução da vida em sociedade. Ao se reconhecer que o ser humano forma todos os seus conhecimentos acerca do mundo sensível e da experiência dentro deste próprio mundo em que vive (e não apesar dele), compreende-se também que o que importa, no fim das contas, é organizar aquele “mundo do espírito” de tal modo que o homem assimile aí o “hábito daquilo que é humano de verdade, que se experimente a si mesmo enquanto homem” (MARX; ENGELS, 2011, p. 149). “Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 150, grifo nosso).

Como estes pensadores muito claramente elucidam no Manifesto comunista, não há dificuldades em se compreender que, ao se transformarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, muda também a sua consciência; a produção material transforma consigo a produção intelectual, de modo que para se falar de “ideias que revolucionam uma sociedade inteira” há que se compreender o significado histórico aí inserido, ou seja, o fato de que seu surgimento nada mais significa senão que no seio da “velha sociedade” se formaram os elementos de uma “sociedade nova”, e que a “dissolução das velhas ideias” acompanha a “dissolução das antigas condições de existência” (MARX; ENGELS, 1998, p. 56-57).

O importante, portanto, é compreender as razões pelas quais a práxis humana sofre, nas condições da divisão social do trabalho vigente no período moderno, um processo inevitável de fragmentação que induz os sujeitos, como indivíduos mais ou menos isolados, a pensar que entendem concretamente o mundo, quando, como bem pontua Leandro Konder (2005, p. 73), se trata, de fato, de uma pseudoconcreticidade. Nem a filosofia nem a economia política podem chegar à raiz da questão enquanto uma forma particular da atividade, expressa pela divisão do trabalho no sistema capitalista, for concebida como a forma universal e absoluta da atividade produtiva; enquanto a propriedade privada for concebida como um fator absoluto, a esfera do natural e do humano permanecem em uma contradição insolúvel, mesmo que essa contradição esteja oculta sob a suposição retórica de uma relação harmoniosa entre uma “natureza humana” e o modo capitalista de produção (MÉSZÁROS, 2006, p. 87). É assim que a filosofia hegeliana, incapaz de distinguir entre a forma “exteriorizada” da atividade humana

(trabalho) e suas manifestações “alienadas” (que possuem caráter histórico), teria operado uma suprassunção que não passa de uma negação abstrata da alienação como objetivação em geral (MÉSZÁROS, 2006, p. 88).

A consciência que sob tal forma é concebida expressa um aspecto importante da estrutura de classes pela qual opera o sistema capitalista: “a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47). Na medida em que uma determinada classe dispõe dos meios de produção espiritual a que estão submetidos também os pensamentos daqueles que não os possuem, as ideias dominantes de uma época histórica nada mais são do que a expressão ideal, ideológica, da relações materiais dominantes naquela época. São elas, consequentemente, as ideias da dominação da classe dominante (MARX; ENGELS, 2007, p. 47), as ideias que a classe dominante faz de sua própria dominação, que aparecem, contudo, não como manifestações de seu interesse de classe, mas sob uma forma eminentemente autônoma, desvinculada de qualquer vontade ou interesse particular. Contraposto à sociedade como um interesse de tipo mais elevado, geral, e que por isso é subtraído à atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade governamental, todo e qualquer interesse comum é imediatamente desvinculado da sociedade, e em seu lugar são afirmados os interesses da burguesia.

Seria assim possível observar um contraste gritante quando, segundo Marx (2011a, p. 40), empreende-se uma retomada da história para constatar que o indivíduo aparece mais e mais como membro de um todo maior na medida em que se volta no tempo. Apenas no século XVIII, com a “sociedade burguesa”, que as diversas formas de conexão social passariam a confrontar o indivíduo como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior – o que ocorre justamente na época que possui as relações sociais mais desenvolvidas até o presente. O que mais importa, sob tal lógica, é a representação da produção como algo que se enquadra em leis naturais e eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade in abstracto (MARX, 2011a, p. 42). O mesmo ocorre na esfera da distribuição, na qual deve ser possível extinguir todas as diferenças históricas em leis humanas gerais, cujos pontos fundamentais identificados pelos economistas são a propriedade e sua proteção pela justiça, pela política, pela moral, etc. (MARX, 2011a, p. 42-43).

Fica claro, portanto, o modo pelo qual que a “efetiva riqueza espiritual do indivíduo” depende inteiramente da “riqueza de suas relações reais” (MARX; ENGELS, 2007, p. 41). É em razão disso que todas as revoluções burguesas são obrigadas a recorrer a memórias históricas, a “símbolos fulgurantes” de épocas passadas para se insensibilizar em relação ao seu próprio conteúdo, isto é, para esconder por trás destas formas inflacionadas a pobreza vergonhosa de seu próprio conteúdo social (MARX, 2011, p. 29; EAGLETON, 1993, p. 158).

Considerando-se igualmente que em todos os séculos anteriores, em qualquer forma que tenha sido a assumida, a exploração de uma parte da sociedade por outra é uma forma comum, Marx e Engels (1998, p. 57) assumem que não causa espanto o fato de que a consciência social de todos os séculos passados tenha se movido sempre sob certas formas comuns de consciência, as quais só poderiam ser dissolvidas completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classes.

Nesse sentido que, para o marxismo, simples ideias não podem executar absolutamente nada: para sua execução são necessários homens que ponham em ação uma força prática (MARX; ENGELS, 2011, p. 137). Faz-se necessária, portanto, uma rebelião contra o “império dos pensamentos”, criaturas estas que se tornam independentes e fazem curvarem-se seus criadores (MARX; ENGELS, 2007, p. 523). À filosofia hegeliana faltaria, portanto, um critério capaz de fornecer a cada categoria lógica uma necessidade ontológica, critério este que só poderia ser encontrado na realidade empírica, e não no interior do próprio pensamento (ENDERLE, 2005, p. 21). Em razão desta limitação que o “dever” (Sollen) ocuparia ainda, no pensamento hegeliano, um papel central na superação da alienação, na medida em que permanece em falta uma demonstração concreta das contradições econômicas que apontam para a sua superação (MÉSZÁROS, 2006, p. 75).

A contraposição de Marx e Engels ao pensamento hegeliano ocupa, assim, lugar de destaque na gênese do marxismo. Quando estes autores dedicam-se à análise e crítica dos textos daqueles que se consideravam os herdeiros do pensamento hegeliano, a exemplo da “crítica vulgar” de Bruno Bauer e Max Stirner, há uma oposição clara contra uma atitude “arrogante” diante da realidade empírica, que expõe as contradições do existente apenas para desprezá-las como algo pertencente à “massa”, ao “mundo humano”, o mundo da prática sensível, sobre o qual “paira a esfera puramente teorética do Espírito” (ENDERLE, 2005, p. 13). Uma crítica nestes termos é algo que

permanece como uma crítica dogmática, que luta contra seu objeto, ao passo que uma crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado seria aquela capaz de compreender a gênese e a necessidade de suas contradições (ontogenética) (ENDERLE, 2005, p. 14).

Uma crítica exterior ao mundo não poderá jamais constituir uma atividade essencial do sujeito humano real, que vive na sociedade presente, sofrendo e compartilhando “suas penas e seus gozos”. Para aquela perspectiva, o indivíduo real constitui apenas um “acidente”, um “receptáculo terreno da Crítica crítica”. “O sujeito não é, aqui, a crítica do indivíduo humano, mas sim o indivíduo inumano da Crítica. Não é a crítica que é uma manifestação do homem, mas o homem que é uma manifestação da crítica [...]”(MARX; ENGELS, 2011, p. 182-183).

Deste modo, como Hegel substitui, na Fenomenologia, o homem pela autoconsciência, a diversidade da realidade humana aparece apenas como uma forma determinada (ou como uma determinabilidade) da autoconsciência. Mas, como tal18, a diversidade é concebida, então, como um mero pensamento, capaz de ser superado também através do pensar puro. A Fenomenologia, portanto, “deixa em pé” todos os fundamentos objetivos das diferentes “formas estranhadas” da autoconsciência (ou da existência ideal) humana. Toda “obra destrutiva” descrita na Fenomenologia teria como resultado “a mais conservadora filosofia”, pois uma filosofia que não atinge tais fundamentos, mas que acredita ter superado o mundo objetivo sensivelmente real através de sua dissolução na sua forma transfigurada de uma determinabilidade da autoconsciência, acaba por, efetivamente, não superar nada (MARX; ENGELS, 2011, p. 215). Torna-se importante observar o modo pelo qual tal perspectiva acaba por implicar numa rejeição da sensoriedade, o que impossibilita uma adequada compreensão do real:

Hegel faz do homem o homem da autoconsciência, em vez de fazer da autoconsciência a autoconsciência do homem, do homem real, e que, portanto, vive também em um mundo real, objetivo, e se acha condicionado por ele. Ele vira o mundo de ponta-cabeça, o que lhe permite dissolver também na cabeça todos os limites, e isto os faz, naturalmente, manter-se de pé para a má sensoriedade, para o homem real. Além do mais, para ele vale como limite tudo o que denuncia a limitação da autoconsciência

geral, toda a sensoriedade, a realidade e a individualidade do homem e de seu mundo. A “Fenomenologia” inteira quer provar que a autoconsciência é a única realidade e toda a realidade. (MARX; ENGELS, 2011, p. 215). O abandono das “ilusões a respeito de sua condição”, deste modo, significa também o abandono de uma “condição que precisa de ilusões” (MARX, 2005, p. 145-146). A manutenção destas condições acaba por fazer presente uma luta entre a filosofia e o mundo real, o que denota a impossibilidade de ligação ente a “história onírica” dos homens e as condições presentes na sociedade (MARX, 2005, p. 150).

Neste trajeto, o marxismo certamente parte de determinados pressupostos, mas que não são, em nenhum caso, pressupostos arbitrários, antes constituindo-se unicamente como pressupostos reais, constatáveis por via puramente empírica. Seu ponto de partida é o conjunto dos indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto as que eles encontram quanto aquelas que criam por meio de seu próprio agir. Destarte, a economia marxista deriva as categorias do ser econômico a partir de suas formas reais, isto é, como relações entre homens e homens e, através destas, como relação entre sociedade e natureza. Ao mesmo tempo, segundo Lukács (2010, p. 18-19), Marx manifestaria também a preocupação em se demonstrar que, no capitalismo, todas essas categorias aparecem necessariamente numa forma reificada, que oculta sua verdadeira essência de relação entre os homens, de um modo que, na consciência humana, o mundo aparece completamente diverso daquilo que na realidade ele é: aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas efetivas conexões. Enuncia-se, portanto, o fundamento das armadilhas do pensamento puro.

A essência humana aqui concebida não é, por conseguinte, uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado, mas é, em sua realidade, o conjunto das relações sociais (MARX; ENGELS, 2007, p. 534). Torna- se possível perceber que a individualidade abstrata é ela mesma um produto social, da mesma forma que o caráter humano pode passar a ser encarado não como uma generalidade interna, mas externa. Toda a vida social e todas as representações que dela são feitas são essencialmente práticas, de maneira que sua solução racional está na prática humana e na compreensão dessa prática.

Deste modo, a produção da vida humana possui o caráter tanto de relação natural como de relação social. Desde o princípio, portanto, há

uma conexão materialista dos homens entre si, que depende das necessidades e do modo de produção – ou seja, há um vínculo entre os homens que os possibilitam gerar uma “história”. Em outras palavras, os homens têm história porque precisam produzir sua vida, o que deve sempre ser feito de um modo determinado tanto por sua organização física quanto por sua consciência, o que significa que a história da humanidade deve ser então estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas (MARX; ENGELS, 2007, p. 34). Somente através da comprovação de uma conexão entre a estrutura social e a produção é possível promover uma verdadeira observação empírica da formação das relações sociais. Afinal, a estrutura social e o Estado provém constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas não da forma como eles podem aparecer na imaginação, e sim de como eles realmente são, tal como atuam, como produzem materialmente, e logo tal como desenvolve suas atividades sob determinadas condições materiais, de sorte que as representações que os indivíduos fazem destas relações constituem uma expressão consciente que pode ser real ou ilusória19 em relação a suas verdadeiras relações (MARX; ENGELS, 2007, p. 93). Em princípio, portanto, a produção de ideias e representações da consciência está imediatamente entrelaçada com a atividade material dos homens, isto é, com a linguagem da vida real (MARX; ENGELS, 2007, p. 93). Se os homens concretos, tal como condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas, são os verdadeiros produtores de suas representações, não se pode conceber a consciência como algo diverso do ser consciente; ao mesmo passo, não há como não se compreender que o ser dos homens nada mais é que o seu processo de vida real. Se na ideologia a vida humana aparece distorcida, trata-se apenas de um resultado do seu processo histórico de vida.

Consequentemente, a concepção do trabalho como atividade engendradora do ser humano deve ser calcada na consideração concreta desta atividade, cujo produto constitui a extensão objetiva de uma existência subjetiva. O produto do trabalho pode ser encarado, assim, como a forma pela qual a apropriação natural constitui uma apropriação humana, ou seja, objetivação da atividade do sujeito. Como mediação entre o homem e natureza, o trabalho determina também o conjunto da vida humana, ou seja, satisfaz necessidades que tornam o gênero humano, na sua apropriação da natureza, cada vez mais um gênero para

19 Neste caso, em razão de seu modo limitado de atividade material e das

si mesmo. Não somente o objeto do trabalho, mas o próprio trabalho que funciona como uma mediação torna-se responsável tanto por satisfazer necessidades como por, igualmente, criá-las. Tem aqui lugar a interação (e não oposição) entre sujeito e objeto: a produção como incorporação social, a complexificação que é tornada possível graças à sociabilização primeira do elemento natural (RANIERI, 2001, p. 30).

Neste sentido, manifesta-se a possibilidade de se afirmar, em prol de um postulado de unidade no pensamento marxista, que o componente ideológico da economia política já teria sido vislumbrado pelo “jovem Marx” dos Manuscritos de 1844, na medida em que o lugar da mediação efetiva do trabalho como “elemento universal da socialização da humanidade” era substituído pelo imperativo da atividade produtiva capitalista como uma lei absolutamente natural, pelo que o trabalho humano era então igualado a qualquer outro elemento da produção de mercadorias (RANIERI, 2010, p. 12). O movimento empreendido por Marx seria o de uma extração, a partir da concepção filosófico- especulativa de atividade, de um princípio crucial para entender os elementos da composição “trabalho-propriedade privada-troca”: a distinção (e similitude) entre alienação ou exteriorização (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung).

Pode-se compreender que a filosofia de Hegel, ainda que se baseie exclusivamente numa “perspectiva mística” de historicidade determinada aprioristicamente por uma finalidade lógica que, uma vez realizada, se estranha quando se exterioriza (entäusserte) na esfera do mundo finito, deixa bastante claro que a aceitação do “jogo de contradições” não aparece somente como mero recurso metodológico, mas principalmente como percepção de que o núcleo da própria realidade se movimenta em termos de forte oposição e alteridade, perspectiva pela qual se estruturariam em Marx, graças à descoberta da contradição interna da propriedade privada, todos os desdobramentos do estranhamento do trabalho (RANIERI, 2010, p. 13).

Ora, o estranhamento (Entfremdung) é um conceito histórico: se o homem é alienado, estranhado, ele o é com relação a alguma coisa, como resultado de certas causas que se manifestam num contexto histórico. Sua transcendência se apresentará, da mesma maneira, como um conceito iminentemente histórico (MÉSZÁROS, 2006, p. 40). É nesse aspecto que a superioridade de Marx diante de seus antecessores fica evidenciada: a historicidade dialética de sua teoria não precisa abandonar o terreno real da história em favor de alguma solução imaginária das contradições percebidas (MÉSZÁROS, 2006, p. 45). Seria, pelo contrário, em razão dessa compreensão unilateral da vida

humana que “A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 95).

“Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94). Partindo-se, assim, dos homens realmente ativos e do seu processo de vida real, a teoria marxista torna-se capaz de expor também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de