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1.3 A Estética marxista: a arte como chave de compreensão do mundo

1.3.3 Determinando a posição do fenômeno artístico no

1.3.3.2 Realismo e valor: o problema do conteúdo

Da perspectiva lukacsiana, portanto, podemos extrair o princípio formal de uma estética marxista em sua forma mais impecável. Quando se adentra nos aspectos referentes ao seu conteúdo, contudo, as coisas mudam um pouco de figura. Primeiramente, é de se notar que, sob a forma acima concebida, a categoria da particularidade não permite uma leitura relativista do fenômeno artístico em relação a seu conteúdo; de forma muito contrária, Lukács salienta o modo pelo qual a compreensão da necessidade social de elementos como o estilo de uma obra, por exemplo, é algo muito diferente de fornecer uma avaliação estética dos efeitos artísticos desse estilo. “Em estética, não prevalece o princípio de que ‘tudo compreender é tudo perdoar’.” (LUKÁCS, 2010, p. 158). Se a arte é compreendida como um reflexo da realidade que expressa, por meio da particularidade, uma mediação entre um conteúdo universal e um singular que supera suas respectivas unilateralidades, para Lukács faz-se necessário compreender que o que o ser humano espera da arte é uma obtenção de uma imagem clara de sua práxis social, de modo que o postulado mais expressivo de uma estética marxista seria algo referente à sua concepção do realismo, uma afirmação de que a arte deve tornar sensível a essência humana (LUKÁCS, 2010, p. 28; 164). Desse modo, ainda que porventura se possa aceitar a existência de uma arte ou de

uma literatura não realistas no sentido lukacsiano, segundo esta perspectiva há que se concluir necessariamente que a arte verdadeira, a arte autêntica, a que perdura, é tão somente a realista. Assim, ao erigir um critério de valor a partir das condições que apenas o realismo pode satisfazer, a estética de Lukács acaba por converter-se numa estética fechada e normativa (VÁZQUEZ, 2011, p. 37).

Há, no entanto, a necessidade de se compreender que o real, tal como é recriado pelo artista, já não é a realidade tal como se apresenta no ponto de partida da experiência estética: opera-se uma passagem de um “primeiro real” (ou seja, a objetividade a que o sujeito chega) a um “segundo real” (alterado pela interferência do artista) que se constitui num processo cujo motor não costuma se deixar reduzir à “pura” busca da verdade, de modo a se tornar humanamente compreensível, conforme leciona Leandro Konder (2005, p. 65), que na experiência estética surjam também motivações prazerosas, sinais de uma humana disposição para agradar, e que se relacionam, enquanto tais, com uma necessidade humana específica. Na medida em que a pergunta sobre o valor especificamente estético de uma obra “nos desafia” (KONDER, 2005, p. 66), deve-se compreender que os juízos estéticos estão fundados em questões ou afirmações de valores, mas de valores que possuem sua base concreta: o homem. Há de se manter em vista que o conceito de valor pertence sempre a um sistema antropocêntrico – é por meio dos elos antropocêntricos que o conceito de valor adquire seu significado. Destarte, os valores tem seu fundamento último e natural nas necessidades humanas, ou seja, não se concebem valores sem que existam necessidades a eles correspondentes, aspecto este que não se resume ao tratamento do fenômeno artístico, como já foi possível observar. A arte também representa valor na medida em que há uma necessidade humana que encontra realização na criação e na apreciação de obras de arte. “Os valores estão, portanto, necessariamente ligados a seres que têm necessidades, e a natureza dessas necessidades determina o caráter dos valores.” (MÉSZÁROS, 2006, p. 174, grifo do autor).

Desse modo é que, na esteira de Marx, se explica o aparecimento dos valores pelo desenvolvimento histórico das necessidades humanas. Através de uma concepção dialética, Marx traz a gênese do valor como a “autoconstituição” humana, a qual existe simultaneamente como ser e como dever no homem – “A autorrealização34 autoconstituinte do

34 Autorrealização que, cabe lembrar, não é algo oposto à natureza, mas sim

homem no curso de sua confrontação histórica com a natureza e consigo mesmo é tanto a necessidade quanto o valor do homem: e não pode haver nenhum tipo de valor acima dela.” (MÉSZÁROS, 2006, p. 175). Nessa acepção que o próprio “desdém pela arte”, tão característico da sociedade burguesa, acaba por tornar-se um forte fator revolucionário; o próprio niilismo do modo de produção burguês (ou seja, o modo pelo qual ele desconstitui ou dessacraliza os valores e relações sociais anteriores) é ao mesmo tempo seu grande mérito histórico (LIFSHITZ, 1938, p. 80). A própria indiferença do trabalhador para com o seu trabalho demonstra este aspecto, esta faceta dialética do modo de produção burguês, já que agora o trabalhador pode agir desta forma; ele não é mais um “servo”, no sentido medieval do termo, do trabalho que executa, isto é, ele não toma uma atitude servil, não sendo tão ligado assim ao seu trabalho determinado, diferentemente de um contexto em que estaria fadado a realizá-lo até sua morte, sem esperanças de algo melhor. Através do desenvolvimento do modo de produção capitalista, tudo o que era “sagrado” é profanado, definido nos termos de seu valor comercial. Os trabalhos “de respeito” não são mais vistos com tanta estupefação, já que não passam de mais um trabalho que se vende e se compra, como qualquer outro. Os homens são, então, impelidos a encarar com sobriedade as suas condições de vida e suas relações com os demais. A erradicação destes nós que atavam os homens das antigas formas sociais é, portanto, extremamente necessária para que se estabeleça uma verdadeira e universal cultura humana (LIFSHITZ, 1938, p. 80-81). “Consequentemente, tão paradoxalmente quanto possa parecer, o declínio da arte na sociedade capitalista é progressivo até mesmo do ponto de vista da própria arte.” (LIFSHITZ, 1938, p. 81, tradução nossa, grifo do autor).

Claro que se pode problematizar este ponto destacado por Mikhail Lifshitz, no sentido de que verifica-se também que os homens são também impelidos, de forma contrária, a não encarar sua realidade. Na verdade, na medida em que a arte é anunciada como uma forma privilegiada de encarar o real, ela apenas pode permanecer enquanto privilégio. A princípio, inclusive, podemos perceber, segundo o procedimento de Sérgio Ferro (FERRO, 2015, p. 15), a arte como algo que até certo ponto não guarda uma relação com o trabalho social, mas que, de certa forma, a ele se contrapõe de tal modo que os artistas “não espiam pelas frestas das fábricas para decidir o que não fazer” – disto

desenvolvimento humano que possui uma base natural, física, concreta, efetiva, objetiva (MÉSZÁROS, 2006, p. 176).

eles não têm qualquer necessidade, uma vez que a prática artística está desligada inclusive materialmente da realidade efetiva do trabalho assalariado. Esse aspecto, que Ferro (2015, p. 16) salienta no desenvolvimento das artes plásticas, e que configura o fazer artístico como um trabalho “livre”35, coloca a prática artística como um privilégio de seres superiores – e que por isso merece respeito –, no mesmo passo em que demonstra, por tabela, que os trabalhadores subordinados são naturalmente inferiores.

Tal movimento do fazer artístico deve, no entanto, ser lido não como um ataque à classe trabalhadora, mas como uma reação à subordinação do trabalho através do sistema de produção capitalista, um movimento efetivo de resistência que põe o fazer artístico como também um trabalho, talvez sobretudo trabalho, como os outros – mas um trabalho que é, de alguma forma, livre, insubordinado (FERRO, 2015, p. 23). Tal perspectiva obriga a reconhecer também a contrapartida de que os outros trabalhos poderiam, do mesmo modo, ser arte se fossem livres, consequência esta que seria extremamente desagradável aos sócios e coadjuvantes do capital. Deve-se inclusive salientar que a concentração do talento artístico num número reduzido de indivíduos é algo que mantém o princípio da divisão do trabalho numa esfera que, por essência, deveria ser universal, ou seja, a esfera da livre criação (VÁZQUEZ, 2011, p. 263). É interessante, assim, o modo pelo qual a valorização da marca, isto é, do vestígio do gesto produtivo, “índice do fazer” admitido enquanto tal a partir da metade do século XVI no campo das artes plásticas (FERRO, 2015, p. 33; 101), apresenta uma representação que transborda os limites do quadro para inserir seu responsável, devolvendo-nos à produção e, com ela, ao produtor enquanto fundamento, a condensação do processo produtivo artístico como mostra da liberdade que nele se inscreve (FERRO, 2015, p. 113). A arte configura-se assim como exemplo, como uma amostra, uma ocorrência concreta, atual, efetiva, de um trabalho livre, o que, necessariamente, representa um contraponto à forma do trabalho ssalariado.

A ocorrência de um critério de valor, portanto, é algo que não pode ser simplesmente negado de antemão. É certo que a aparência (e, da mesma maneira, a forma) constitui-se como algo essencial não apenas no campo da arte; no entanto, o que se entende por essência é,

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“[...] o fato é que, talvez até hoje, somente as artes plásticas fornecem o exemplo concreto de um trabalho material livre, por isso mesmo somente ‘livre’.” (FERRO, 2015, p. 61, grifo nosso).

por assim dizer, ainda mais essencial. O artista, o ser humano que trabalha com a aparência, inevitavelmente se afeiçoa a ela; o que cabe a ele, entretanto, é estabelecer uma luta para colocá-la a serviço da essência. Para ele, ela não se reduz à natureza, ao mundo exterior, mas é a práxis, é a atividade criadora e “desvendadora” que, por meio de “totalidades intensivas”, vai sendo reconhecida como chave de acesso ao “real”, ideal do realismo (KONDER, 2005, p. 70). Se a arte é práxis, a discussão sobre ela e sobre o realismo, que Lukács ressalta, com certeza envolve problemas de teoria do conhecimento, mas envolve também, talvez até mesmo em maior medida, a realidade, o ser, de modo que o que quer que seja o realismo ou o não realismo em arte depende sempre do que é a realidade e de como se concebe a própria realidade (KONDER, 2005, p. 73). De tal modo é que, para Lukács, uma grandiosa concepção do realismo, fundada histórica e dialeticamente, constitui ao mesmo tempo uma adequada formulação de que a arte reflete a realidade objetiva e, portanto, que ela pretende possuir valor de verdade objetiva (LUKÁCS, 2010, p. 44).

Quando Marx e Engels (2010, p. 66; 67) se debruçam sobre as questões atinentes à tipicidade como um aspecto fundamental ao realismo no campo da literatura36, situa-se aqui uma concepção capaz de reconhecer a existência de um objeto que pode representar algo mais amplo e significativo do que ele próprio, do que seu destino individual tomado isoladamente. Assim, quando Lukács retoma esta categoria, trata-se de nomear um articulação em personagens individuais da realidade de base, do material trabalhado, que constitui a substância ou o conteúdo da obra de arte (JAMESON, 1985, p. 150-151).

A questão da tipicidade, portanto, longe de seu desvirtuamento prático que reduz o “típico” a mero símbolo idealizado do ponto de vista de uma classe, diz respeito à noção de situação histórica peculiar, única, à qual Lukács sempre fora fiel (JAMESON, 1985, p. 151). Aquela má compreensão deste aspecto fez com que, historicamente, a estética do realismo socialista, ao deixar de postular um tratamento infinitamente diversificado do real, estabelecesse normas e fixasse modelos, convertendo-se numa estética normativa, incompatível com as posições

36 Ou seja, destacam, para além da veracidade dos detalhes, a reprodução de

“caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas”, de modo a refletir com veracidade as relações reais, romper com as ilusões convencionais que existem sobre estas, ferindo o otimismo do mundo burguês e fomentando dúvidas acerca da imutabilidade das bases em que repousa a ordem existente.

marxistas em que pretendia se fundar (VÁZQUEZ, 2011, p. 21). Como verdadeiro postulado desta estética, portanto, manifesta a exigência de que, na obra de arte realista, todo objeto representado, natural ou feito pelo homem, deva ser humanizado, ou seja, a atenção deve ser focalizada sobre a sua significação humana, de um ponto de vista social e historicamente específico; dito de outra maneira, o que a arte realista revela artisticamente são tendências e conexões importantíssimas para compreendermos o que ocorre à nossa volta, tendências estas que estão frequentemente ocultas sob aparências enganosas. Assim, o que determina se um artista é ou não realista seria a seleção que se faz das experiências particulares para representar a realidade, não se detendo, tal qual o naturalismo, simplesmente naquelas aparências que existem para ludibriar (MÉSZÁROS, 2006, p. 177-178).

Um verdadeiro realismo seria, portanto, um realismo aberto, profundo e rico, isto é, um realismo tão amplo e diverso como a própria realidade, um realismo que vê no marxismo a perspectiva ideológica mais adequada para captar a riqueza e o movimento do real (VÁZQUEZ, 2011, p. 21). A tese marxista de que o artista se acha condicionado histórica e socialmente, e de que suas posições ideológicas desempenham certo papel, não conduz à necessidade de reduzir a obra a seus ingredientes ideológicos. A arte transcende a definição de um fenômeno unicamente ideológico na medida em que as ideias por ela expressas devem se integrar numa estrutura artística dotada de legalidade própria, de modo que a obra artística revela-se como possuidora de certa coerência interna e autonomia relativa (VÁZQUEZ, 2011, p. 24). Neste sentido que pode ser encarada, com mais profundidade, a seguinte afirmação de Lukács:

Ora, se não cremos que o sujeito artístico “crie” ex nihilo algo radicalmente novo, se reconhecemos que ele descobre uma essência que existe independentemente dele (e que não é acessível a todos e permanece por muito tempo oculta até para o maior dos artistas), nem por isso a atividade do sujeito cessa ou é minimamente diminuída. Portanto, se a estética marxista identifica o maior valor da atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir em suas obras o processo social universal e torná-lo sensível, experimentalmente acessível; e se, nessas obras, cristaliza-se a autoconsciência do sujeito, o despertar da consciência do

desenvolvimento social, nada disso implica uma subestimação da atividade do sujeito artístico, mas, ao contrário, temos assim uma legítima valorização desta atividade, mais elevada do que a de qualquer outro critério precedente. (LUKÁCS, 2010, p. 29).

Dessa forma, enquanto uma concepção unicamente ideológica aduz que o artista dirige-se para a realidade a fim de expressar sua visão do mundo, e com ela sua época e sua classe, quando, do plano ideológico, se passa para o cognoscitivo, torna-se possível sublinhar, antes de qualquer coisa, sua aproximação à realidade. O artista aproxima-se dela a fim de captar suas características essenciais, a fim de refleti-la, mas sem dissociar o reflexo artístico de sua posição diante do real, isto é, de seu conteúdo ideológico; nesse sentido, portanto, que a arte é meio de conhecimento (VÁZQUEZ, 2011, p. 29).

Por conseguinte, quando se fala a respeito da “verdade” artística ou do “reflexo da realidade” na arte, há que se transplantar estes termos de um plano filosófico geral para outro propriamente estético (VÁZQUEZ, 2011, p. 29), uma vez que a verdade filosófica, afinal, não constitui aquilo que determina a criação artística, questão esta que já ficara evidente quando se analisou a obra de Schiller, por exemplo. A busca por uma forma específica de reflexo artístico da realidade não se resume, portanto, a uma diferenciação em relação ao conhecimento científico ou filosófico; ela deve ser caracterizada também pelo seu objeto, pelo seu conteúdo, e não unicamente por sua forma, para que a arte possa ser compreendida, como conhecimento, em sua total peculiaridade (VÁZQUEZ, 2011, p. 30):

Assim, se a arte como forma de conhecimento corresponde a uma necessidade que não é uma mera duplicação – mediante imagens, parábolas ou símbolos – do que a ciência e a filosofia – mediante conceitos – já nos dão, ela só se justifica se tiver um objeto próprio e específico [...] que condiciona, por sua vez, a forma específica do reflexo artístico. Esse objeto específico é o homem, a vida humana. (VÁZQUEZ, 2011, p. 31, grifo nosso).

A consequência, de uma maneira geral, consiste em que o homem constitui o objeto específico da arte, ainda que nem sempre seja o objeto

da representação artística, já que todo e qualquer objeto representado (mesmo quando a representação abre mão da figuração, como no caso da arte abstrata) é portador de uma significação social, de um mundo humano, encarado não em sua generalidade, mas em suas manifestações individuais, particulares (VÁZQUEZ, 2011, p. 31-32). O surgimento da sensibilidade estética, portanto, situa-se naquele processo de afirmação do homem no mundo, o qual se torna possível no ponto em que a sensibilidade e os sentidos humanos são enriquecidos de tal modo que o objeto se torna, primária e essencialmente, realidade humana, ou seja, quando ele é captado sem uma significação utilitária direta (como valor de uso natural ou como valor de troca, monetário), mas como expressão da essência do próprio homem. Nesse sentido, esta sensibilidade pode ser afirmada não apenas como uma forma específica da sensibilidade humana, mas também como uma forma superior dela, na medida em que expressa – em toda sua riqueza e plenitude – a verdadeira relação humana com o objeto como confirmação de suas próprias forças nele objetivadas (VÁZQUEZ, 2011, p. 74-75).

A arte só pode ser conhecimento quando há uma transformação da realidade exterior, que dela parte para fazer surgir uma nova realidade. Já que o conhecer artístico é fruto de um fazer, temos que o artista não converte a arte em meio de conhecimento copiando uma realidade, mas criando outra nova. “A arte só é conhecimento na medida em que é criação; apenas assim pode servir à verdade e descobrir aspectos essenciais da realidade humana.” (VÁZQUEZ, 2011, p. 32). Nessa acepção que o caminho para o conhecimento que a arte fornece vai do “concreto real” ao “concreto artístico”, ou seja, configura-se como um movimento pelo qual se parte daquilo que é imediato, dado – a exemplo da aparência sensível das coisas –, mas que não se contenta em permanecer nesse plano, ou seja, com limitar-se a reproduzi-lo. A sociedade humana só lhe revela aqui seus segredos na medida em que partindo do imediato, do individual, a prática artística eleva-se ao universal para, depois, voltar novamente ao concreto. É esta forma de conhecer que Saramago tão brilhantemente ilustra quando descreve sua própria obra como uma tentativa de conhecer, de penetrar, a partir da estátua, a pedra:

O que é uma estátua? a estátua é a superfície da pedra, a estátua é só a superfície da pedra, é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra à pedra, toda a escultura é isso, é a

superfície da pedra e é o resultado dum trabalho que retirou pedra da pedra. (SARAMAGO, 1998). Quando se alarga o conceito de realismo é que se torna possível escapar às limitações de uma concepção meramente ideológica, sociológica ou cognoscitiva. Reconhece-se, assim, que a obra de arte, sob um ponto de vista verdadeiramente estético, não vive apenas da ideologia que a inspira nem de sua condição de reflexo da realidade, mas vive por si, com uma realidade própria, na qual se integra o que ela expressa ou reflete; antes de tudo, ela é, portanto, uma criação do homem, que vive graças à potência criadora que encarna esse ponto de vista, que estabelece esta realidade (VÁZQUEZ, 2011, p. 40).

Tomando essa configuração, um realismo não dogmático, sublinhando a presença do humano na arte – seja ela realista ou não –, torna-se capaz de destacar o seu extrato mais profundo e originário: o de ser uma forma peculiar do trabalho criador (VÁZQUEZ, 2011, p. 41). Marx, tendo sido o primeiro a conceber claramente a relação entre a arte e o trabalho através de sua natureza criadora comum, consequentemente concebeu também este último não apenas como uma categoria econômica (fonte de riqueza material), mas como categoria filosófica ambivalente (fonte de riqueza e de miséria humanas). Nessa acepção do fazer artístico proporcionada por este realismo não-dogmático está presente, assim, uma concepção da arte como atividade que, prolongando o lado positivo do trabalho, evidencia a capacidade criadora do ser humano (VÁZQUEZ, 2011, p. 42). A partir desta fecunda contribuição de Adolfo Sánchez Vázquez (2011, p. 100-103), a estética marxista torna-se capaz de apreender propriamente a arte enquanto esfera essencial do ser humano, atividade em que o sujeito pode elevar a um nível superior sua capacidade específica de humanizar tudo o que toca, de conferir sua marca a objetos sensíveis, pelo que o realismo pode ser melhor compreendido como a transformação do real e criação de uma nova realidade. Neste sentido, a estética passa ao largo de qualquer proposição acerca do que deve ser a arte ou o seu objeto, mas busca tão somente conceitualizar aquilo que é.

2 A venda que oculta: os atos de criação dos operadores do direito de acordo com o discurso jurídico

“Nos pergaminhos, podemos facilmente proclamar constituições, o direito de todo