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2.1 Direito, capitalismo e estabilização social

2.1.2 Forma jurídica e dominação burguesa

O modo pelo qual as relações jurídicas se fazem aparecer é fundamental para o adequado cumprimento de suas funções na sociedade em que vivemos. Na medida em que o desenvolvimento não só do direito, mas de sua própria compreensão a partir de determinados conceitos jurídicos é expresso por meio de lugares-comuns de caráter geral que se referem a uma regulamentação autoritária externa e que são postas como necessárias, tem-se na verdade um reflexo de relações

sociais precisas e complexas que se integram na evolução histórica real, cujo fundamento deve ser corretamente investigado (PACHUKANIS, 1988, p. 27). Se, conforme já ficou estabelecido no primeiro capítulo2, as ilusões surgem de acordo com determinadas condições que dela necessitam, a compreensão das categorias jurídicas deve abordá-las como expressão de um determinado aspecto da existência de um determinado sujeito histórico: a produção mercantil da sociedade burguesa. Trata-se, assim, de uma forma pertencente a um regime social determinado, edificado sobre a oposição de interesses privados (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).

Seguimos, portanto, a indicação da teoria jurídica de Evgene B. Pachukanis (1988, p. 28; 34), buscando a definição da forma do direito na forma da troca entre equivalentes, que permite à forma jurídica sua libertação e consequente autonomização enquanto tal: verifica-se que a relação jurídica constitui-se como uma relação abstrata, unilateral, mas que jamais aparece nesta unilateralidade como o resultado do “trabalho conceitual” de um “sujeito pensante”, mas sempre como o produto (quase que natural) da evolução social. Nestes termos é que o direito pode cumprir uma dupla função necessária: por um lado, ele deve tornar eficazes as relações de produção, enquanto, por outro, deve refletir corretamente e sancionar as ideias que os homens fazem das suas relações sociais; é desse modo que as categorias jurídicas dizem, sem dizer, a realidade das relações das quais são a expressão (EDELMAN, 1976, p. 17).

Não apenas na teoria jurídica, mas também na teoria econômica, no pensamento filosófico, e assim por diante, a denúncia marxiana serve para mostrar que o que mais importa em tais campos é estabelecer uma representação da produção capitalista como se ela estivesse enquadrada em leis naturais e eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade in abstracto (MARX, 2011a, p. 42). Na distribuição, da mesma forma, deve-se ser possível extinguir todas as diferenças históricas em leis humanas gerais, cujos pontos fundamentais identificados pelos economistas são a propriedade e sua proteção pela justiça, política, etc. (MARX, 2011a, p. 42-43).

Justamente porque a burguesia domina como classe que, para Marx e Engels (2007, p. 77), deve ela fornecer na forma da lei uma expressão geral de si mesma: já que o Estado, supostamente “sintetizando” a sociedade civil inteira de uma época, nada mais seria

que a forma pela qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus interesses comuns, motivo pelo qual todas as instituições coletivas são por ele mediadas, seu papel em relação às instituições coletivas consiste em mediar sua existência como forma política, situando-se aqui a ilusão de que a lei se baseia na vontade separada de sua base real, isto é, numa vontade livre, ao que é reduzido todo o direito (MARX; ENGELS, 2007, p. 76).

Conforme ensinam Marx e Engels (2007, p. 76-77) n’A ideologia alemã, o desenvolvimento do direito privado se dá simultaneamente ao da propriedade privada; nele, as relações de propriedade existentes são declaradas como o resultado da vontade geral, de maneira que, sempre que a indústria e o comércio permitiram o surgimento de novas formas de intercâmbio, estas foram admitidas pelo direito entre os modos de adquirir a propriedade. Deve ser notado, portanto, que esta propriedade, quando surge tanto na explicação jurídica quanto na explicação econômica da produção e reprodução material da vida humana, aparece justamente sob a forma determinada de propriedade privada, como esta forma específica fosse uma consequência lógica de toda e qualquer apropriação da natureza empreendida por um indivíduo; na verdade, afirmar a necessidade da propriedade privada, identificada com a propriedade em geral, como requisito indispensável à existência da produção social e, por conseguinte, da sociedade, é, para Marx (2011a, p. 43), uma tautologia, já que falar “produção” social é o mesmo que dizer “apropriação” social, a qual pode conhecer, no entanto, formas diversas da propriedade privada. Isto é importante porque permite observar o modo pelo qual uma forma de produção é capaz de forjar suas próprias relações jurídicas de tal modo que elementos que são, de fato, organicamente conectados podem ser relacionados casualmente, isto é, reduzidos a uma mera conexão da reflexão, como se o fato de se produzir melhor com determinadas instituições e estruturas, como o exemplo marxiano da polícia moderna, não decorresse justamente pela razão de tais instituições serem um produto de tal modo de produção.

São duas coisas totalmente distintas, portanto, a fixação de determinações comuns a diferentes estágios da produção como determinações universais e a correta compreensão das condições universais de toda produção, as quais podem ser qualificadas como momentos abstratos sem os quais nenhum estágio histórico efetivo da produção pode ser compreendido (MARX, 2011a, p. 44). A partir da aplicação deste que é um preceito metodológico do marxismo se poderá, portanto, empreender uma leitura adequada daquela emancipação em sentido político que acima foi indicada, e que, colocada como

pressuposto efetivo da produção capitalista, aparece totalmente desvinculada das determinações materiais da vida dos sujeitos.