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1.3 A Estética marxista: a arte como chave de compreensão do mundo

1.3.2 Aspectos econômicos da forma de produção capitalista

1.3.2.2 A suprassunção da propriedade privada e a libertação dos

Segundo uma leitura marxista da história, falar sobre o capitalismo significa tomar como objeto uma fase do desenvolvimento das forças produtivas em que só existem forças destrutivas, juntamente com uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens, classe da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical. As condições de produção, segundo esta concepção, são condições de dominação de uma determinada classe, pelo que toda luta revolucionária dirige-se contra uma classe que até então dominou. Assim, muito embora as revoluções em geral possam ser consideradas quase que uma constante histórica, em todas elas a forma da atividade humana permaneceu intocada, tratando-se apenas de instituir outra forma de distribuição dessa atividade; a revolução comunista, por sua vez, seria aquela que se dirige contra a forma da atividade até então desenvolvida, superando a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes, em razão de ser levada a cabo pela classe que já é, em si, a dissolução de todas as classes. Só um movimento prático – a revolução, portanto, é o movimento capaz de superar de vez este quadro (MARX; ENGELS, 2007, p. 41-42).

A teoria marxista indica, consequentemente, que há algo além. De maneira totalmente contraposta à propriedade privada enquanto expressão sensível de um processo simultâneo de efetivação e de negação da efetivação como uma e mesma coisa, o “jovem” Marx teria já indicado que a apropriação sensível da essência e da vida humanas, da obra humana para e pelo homem, não pode ser apreendida no sentido da fruição imediata, isto é, da posse, mas no sentido de uma apropriação omnilateral de sua essência omnilateral, a apreensão de si como um ser humano total (MARX, 2010a, p. 108). Cada uma das relações humanas do homem com o mundo e todos os órgãos da sua individualidade, assim como todos os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários são, no seu comportamento objetivo ou para com o objeto, a apropriação da efetividade humana, isto é, o acionamento da efetividade humana (MARX, 2010a, p. 108). A propriedade privada, por seu turno, rompe com esta omnilateralidade, fazendo dos homens seres tão “cretinos e unilaterais” que um objeto só

pode ser considerado propriamente “nosso” quando o temos, isto é, quando ele é por nós usado (MARX, 2010a, p. 108). Desta forma, o lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passa a ser ocupado pelo simples estranhamento de todos esses sentidos, pelo sentido do ter.

Desta maneira que a suprassunção da propriedade privada pode ser compreendida como a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos, o que só pode se dar pelo fato desses sentidos e propriedades terem se tornado humanos¸ tanto subjetiva quanto objetivamente: “O olho se tornou olho humano¸ da mesma forma como o seu objeto se tornou um objeto social, humano, proveniente do homem para o homem.” (MARX, 2010a, p. 109). Por isso que os sentidos, de acordo com o marxismo, se tornaram teoréticos, já que se relacionam com a coisa por querê-la, ao mesmo tempo em que esta coisa constitui- se como um comportamento humano objetivo consigo própria e com o homem, e vice-versa. Isso significa dizer que só podemos nos relacionar humanamente com a coisa se ela se relaciona humanamente conosco, pelo que a carência e a fruição perdem sua constituição egoísta e a natureza perde sua mera utilidade, já que esta utilidade se torna utilidade humana (MARX, 2010a, p. 109).

Formam-se, assim, além dos órgãos imediatos da sensibilidade, órgãos sociais, na forma da sociedade – que se recorde aqui de um pintor qualquer que, trancado em seu ateliê, produz obras artísticas: ao pintar, este indivíduo jamais atua unicamente como um pintor individual, isolado; quem pinta a tela também é a sociedade e sua história, ou seja, quem participa na criação da obra não é apenas o sujeito com sua vontade considerada abstratamente, mas tudo aquilo que o permitiu chegar onde está. Da mesma maneira, o espectador (palavra terrível!) que vislumbra a obra, sozinho em uma galeria, também o faz humanamente, e o faz para a humanidade. Do ponto de vista do sujeito, a atividade em imediata sociedade com outros se torna um órgão da “sua” externação de vida e um modo de apropriação da vida humana (MARX, 2010a, p. 109).

Marx (2010a, p. 109) diz: “Nós vimos. O homem só não se perde em seu objeto se este lhe vem a ser como objeto humano ou homem objetivo”. Aquele abandono hegeliano no objeto só rende frutos se de lá pode o sujeito voltar, e de lá só se pode encontrar o caminho de volta se algo houver que recorde ao homem sua própria natureza. Para Marx (2010a, p. 109), portanto, este movimento só é possível na medida em que o objeto vem a ser objeto social para o homem, no qual ele próprio se torna ser social, assim como a sociedade se torna ser para ele neste objeto. Uma consequência disso é que, quando para o homem em

sociedade a efetividade objetiva se torna por toda parte efetividade das forças essenciais humanas enquanto tais e, por isso, efetividade de suas próprias forças essenciais, todos os objetos tornam-se a objetivação de si mesmo para ele, realizando e confirmando sua individualidade enquanto objetos seus, tornando-se ele mesmo objeto (MARX, 2010a, p. 109-110). Cada objeto, dependendo de sua natureza, torna-se seu de modo diferente; na determinidade da relação entre a natureza do objeto e a natureza da força essencial que a ela corresponde que se forma o modo particular e efetivo da afirmação:

A peculiaridade de cada força essencial é precisamente a sua essência peculiar, portanto também o modo peculiar da sua objetivação, do seu ser vivo objetivo-efetivo [...]. Não só no pensar, portanto, mas com todos os sentidos o homem é afirmado no mundo objetivo. (MARX, 2010a, p. 110).

Desta maneira, Marx (2010a, p. 110) pode dizer que “Para o homem faminto não existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência abstrata como alimento [...]. O homem carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo”. Por isso, a objetivação da essência humana é necessária não apenas para fazer humanos os sentidos do homem, mas para também criar um sentido humano correspondente à riqueza inteira do ser humano e natural (MARX, 2010a, p. 110).

Para Marx, portanto, Feuerbach estava certo: a sensibilidade tem de ser a base de toda ciência; apenas quando esta parte daquela ela se torna ciência efetiva. Vê-se, pois, que a resolução das oposições teóricas só é possível de um modo prático, sensível, de maneira que “a sua solução de maneira alguma é apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma efetiva tarefa vital que a filosofia não pôde resolver, precisamente porque a tomou apenas como tarefa teórica.” (MARX, 2010a, p. 111). Segundo Mészáros (2006, p. 78), o ideal de uma “transcendência positiva” da alienação é formulado como uma superação sócio-histórica das “mediações” (propriedade privada – intercâmbio – divisão do trabalho) interpostas entre o homem e sua atividade, que o impedem de se realizar em seu trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas (criativas), e na apropriação humana dos produtos de sua atividade. Assim, a crítica formulada por Marx é uma rejeição de tais mediações, que Mészáros (2006, p. 78) designa como mediações de segunda ordem;

em outras palavras, o que Marx combate como alienação não seria a mediação em geral, mas aquela série de mediações de segunda ordem, historicamente específicas, que se interpõe àquela mediação ontologicamente fundamental do homem com a natureza (o trabalho). Esta “mediação de primeira ordem”, enquanto fator ontologicamente absoluto, deve ser distinguida, assim, da forma historicamente específica do trabalho assalariado. Unicamente pelo fato de aquelas mediações de segunda ordem aparecerem como fatores ontológicos absolutos que também a forma capitalista da atividade produtiva do ser humano como trabalho assalariado também surge como absoluta, de maneira que a negação das manifestações alienadas dessa mediação pode apenas assumir a forma de “postulados moralizantes nostálgicos” (MÉSZÁROS, 2006, p. 79), na qual o dever cumpre a função de suprir uma deficiência do ser.

Se é tomada, a exemplo, a crítica abstrata do egoísmo individual, verifica-se que ela se aplica a todos, inclusive às massas de oprimidos que opõem seu direito a um bem-estar material ao “egoísmo” das classes privilegiadas. Esta ideia antes revolucionária de supressão dos interesses particulares se torna então reacionária quando se volta às “massas” e sua “devoção” aos interesses materiais. Similarmente se dá a ressignificação da negação rousseauniana da arte como algo que não pode ser separado dos problemas puramente materiais da existência (LIFSHITZ, 1938, p. 48). Pode-se ver como, a certa altura da revolução alemã, em que se anunciava a possibilidade de recuperação da unidade da vida humana, abre-se inicialmente um caminho pelo qual a resolução da cisão entre carne e espírito se daria por meio da reconciliação. Com Schiller, portanto, temos a combinação do espiritual com o sensorial para reconciliar o revolucionário “cidadão” com o egoístico burguês: se a vida material é dominada pela ganância e pelo conflito de interesses e se a vida ideal, ao demandar o autossacrifício, é por demais severa para ser capaz de produzir felicidade, o problema está em como unir a ideia com a forma sensorial, a vida espiritual com a existência corpórea, o que é resolvido, por Schiller, com o “Estado Estético”. Hegel também segue a mesma via; contudo, ele não consegue proceder a uma superação dialética quando do retorno do ideal ao material, de forma que para ele a negação é declarada abstrata e esta transição do abstrato ao concreto se torna não mais que um retorno ao material, à sociedade burguesa; no fim das contas, a verdadeira transformação não é por ele vislumbrada (LIFSHITZ, 1938, p. 48-50).

Quando se toma em consideração o pensamento daqueles que se anunciavam como os herdeiros da filosofia hegeliana, percebem-se

claramente as implicações de tais limites. Edgar Bauer, por exemplo, conforme ensinam Marx e Engels n’A sagrada família, toma de Feuerbach a opinião de que a filosofia seria “a expressão abstrata da situação existente”. Ao fazê-lo, todavia, ela não é caracterizada (tal qual em Feuerbach) como “um empirismo especulativo e místico”, ou seja, não é retomada para concluir que a filosofia “tem de descer do céu da especulação para as profundezas da miséria humana”. A conclusão de Edgar Bauer é a de que a filosofia é excessivamente prática. Para a opinião de Marx e Engels (2011, p. 52), o seu caráter excessivamente “prático” decorre muito mais do fato de que a filosofia pairava excessivamente acima da prática: ela não pôde intervir praticamente em razão de não distinguir-se realmente do mundo, satisfazendo-se com uma práxis in abstracto. Aos olhos da especulação, os homens reais aparecem infinitamente pequenos. Vislumbrando a realidade apenas por categorias, torna-se extremamente fácil alcançar a “superação” e a “suprassunção” das categorias do ter e do não ter; Marx e Engels (2011, p. 54) fazem lembrar, contudo, que o não ter é mais que mera “categoria”: ele é também uma realidade totalmente desconsoladora, uma vez que “o homem que não tem nada não é nada hoje em dia, [...] [existe] à margem de uma existência humana”.

O não ter é o espiritualismo mais desesperado, uma irrealidade total do humano, uma realidade total do desumano, um ter assaz positivo, um ter fome, ter frio, ter doenças, crimes, humilhações, hebetismo, um ter todas as coisas desumanas e antinaturais. (MARX; ENGELS, 2011, p. 54). “Os grandes só nos parecem grandes,/porque nós estamos de joelhos./Levantemo-nos!”: tudo isto é muito bonito, mas o marxismo indica que, para levantar-se efetivamente, não basta ao homem oprimido fazê-lo apenas em pensamento, “deixando que sobre a cabeça real e sensível permaneça flutuando o jugo real e sensível, que nós não logramos fazer desaparecer por encanto através das ideias.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 100). Enquanto este caminho se delineia como uma tentativa de transformar todas as lutas externas e sensíveis em lutas puramente mentais, o marxismo propõe uma trajetória totalmente oposta. Os trabalhadores são perfeitamente capazes de saber, assim, que a propriedade, o capital, o dinheiro, o salário e coisas do tipo não são, de nenhuma maneira, “quimeras ideais de seu cérebro”, mas criações deveras práticas e objetivas de sua própria autoalienação, e que,

portanto, só podem e devem ser superadas de uma maneira também prática e objetiva, a fim de que o homem se torne um homem não penas no pensamento e na consciência, mas também na sua vida efetiva (MARX; ENGELS, 2011, p. 66).

É de tal modo que a propriedade privada impulsiona sua própria dissolução: ela engendra “a desumanização consciente – e, portanto, suprassunsora – de sua própria desumanização” (MARX; ENGELS, 2011, p. 48). A consciência desponta, assim, como um pressuposto indispensável à suprassunção revolucionária das relações produtoras da miséria, da alienação e da desumanização, não esgotando, no entanto, a esfera de tal dissolução. É a dissolução efetiva que se manifesta como a única possibilidade de vitória verdadeira do proletariado, e é por isso que esta vitória não representa uma nova forma de dominação:

Se o proletariado vence, nem por isso se converte, de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade, pois ele vence de fato apenas quando suprassume a si mesmo e à sua antítese. Aí sim tanto o proletariado quanto sua antítese condicionante, a propriedade privada, terão desaparecido. (MARX; ENGELS, 2011, p. 48- 49).

É em razão do que foi exposto que, de todas as classes que se opõem à burguesia, apenas o proletariado é considerado, por Marx e Engels (1998, p. 49), uma classe verdadeiramente revolucionária, “produto mais autêntico do desenvolvimento da grande indústria”. Deve-se compreender este reconhecimento, portanto, não como ponto de partida propriamente dito, mas como um ponto de chegada, uma constatação que, entretanto, já estava anunciada ao princípio. Como bem se pontua no Manifesto, as camadas médias combatem a burguesia não por serem revolucionárias, mas por serem conservadoras, reacionárias, ou seja, porque a burguesia compromete sua existência como camadas médias, de modo que só se tornam revolucionárias na defesa de seu interesse futuro, isto é, na sua iminente passagem ao proletariado. Já o lúmpen-proletariado, “putrefação passiva” das camadas mais baixas da velha sociedade, pode até ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária, mas suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação (MARX; ENGELS, 1998, p. 49). É nas condições de existência do proletariado que as condições de existência da velha sociedade (propriedade, família, nacionalidade, leis, moral, religião)

estão já destruídas – elas são, para eles, meros preconceitos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses particulares da classe dominante (MARX; ENGELS, 1998, p. 49). Assim, nada têm eles a salvaguardar; o proletariado não pode fazer como todas as classes que no passado conquistaram o poder, isto é, consolidar uma situação adquirida pela conquista submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação, pois eles não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, todo modo de apropriação até então existente (MARX; ENGELS, 1998, p. 49-50). Sua missão é apenas destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes (MARX; ENGELS, 1998, p. 50). Desta forma que se pode apreender a seguinte assertiva: “O comunismo não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 54).

1.3.3 Determinando a posição do fenômeno artístico no pensamento