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2.1 Direito, capitalismo e estabilização social

2.1.3 O sistema da igualdade e liberdade

Uma das chaves para a compreensão do Estado moderno está numa consequência (que também é um pressuposto) da abstração do modo de vida por ele mediado: a posição que nele ocupam os privilégios. Em diversos momentos, nota-se que a vida no regime pré- capitalista era, ainda, marcada por uma certa identificação entre as coisas e sua determinidade objetiva, aspecto este que indicava, de certa forma, o devido lugar de cada coisa no mundo, e que por isto mesmo é tão caro aos conservadores e saudosistas. Já foi possível observar muito claramente que o capitalismo é capaz de profanar todo e qualquer aspecto da vida humana, o que, de certa maneira, representa um avanço a ser reconhecido na sociedade burguesa. O que não deve ficar de lado, contudo, é que este sistema o faz não sob uma forma que traz a vida sensível do homem – a saber, sua própria realidade objetiva e a realidade dos objetos que o cercam – para mais perto de si, mas procede de modo a proporcionar tão somente uma percepção estranhada da realidade humana. A própria literatura fornece riquíssimos exemplos de tal movimento, representando de uma maneira bastante palpável esta perda de referentes, que nas formas sociais anteriores se faziam presentes. Não é fortuito, portanto, que em obras como o Gattopardo, de Tomasi de Lampedusa (2007, p. 272), que tematizam a decadência da velha sociedade aristocrática e da ascensão do domínio da burguesia, se faça presente uma nota de profunda melancolia. Tal aspecto é notável quando, no baile em que eram pela primeira vez apresentados como noivos seu sobrinho Tancredi e Angelica, noivado este que constituía uma tentativa de evitar a ruína de sua família (já que Angelica era filha única de um rico e astuto burguês, de nome Calogero Sedàra e, portanto, portadora de um rico dote), Don Fabrizio, patriarca do clã Salina e protagonista do romance, ao se deparar com os doze candelabros de vermeil presenteados ao avô do anfitrião pela Corte espanhola, verdadeiras “peças de primeira ordem”, não pode deixar de imaginar, com certa tristeza, o que teria dito diante delas o “infeliz” Sedàra: “Imagina quantas salme de terra valem”. Para que não se acuse o presente trabalho de operar exclusivamente com o uso de obras estrangeiras, pode-se fazer a mesma indicação inclusive numa obra nacional de tom mais humorado, como é o caso de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho (2014). Neste romance, no

qual o espírito do picaresco Coronel Ponciano de Azevedo Furtado, um típico personagem da Primeira República brasileira, coronel poderoso e herdeiro de uma vastíssima quantidade de terras, narra em primeira pessoa os feitos e façanhas de sua vida, é praticamente impossível que o leitor deixe de se solidarizar, com uma ponta de tristeza, no momento a partir do qual o vozeirão, os dois metros de altura e a longa barba do coronel deixam de ser suficientes para desembaraçá-lo das teias da Justiça e garantir o sucesso de seus negócios mundanos – afinal, chegou-se o tempo em que nenhuma característica ou mérito pessoal pode suprir a falta de dinheiro. Com estes dois exemplos, está dada a representação de homens que percebem não apenas que perderam seu lugar no mundo, mas que perderam o próprio mundo no qual tinham seu lugar.

Ao cabo, percebe-se que formas de existência fixas não podem ter lugar na vida burguesa. A modernidade, ao contrário de todas as fases históricas anteriores, está baseada na suspensão dos privilégios, isto é, na sociedade burguesa que deixa em liberdade os elementos vitais que, nos privilégios de outrora, ainda se achavam politicamente vinculados (MARX; ENGELS, 2011, p. 135). A “livre indústria e o livre comércio” superam a luta antes existente entre determinações privilegiadas, substituindo-as pelo homem isento de privilégios, num movimento que não o vincula aos outros homens sequer pela aparência de um nexo geral. Desse modo é que a sociedade burguesa constitui-se tanto como uma guerra geral de todos os indivíduos uns contra os outros, já apenas delimitados entre si por sua individualidade, quanto pelo “movimento geral e desenfreado” das potências elementares da vida, agora já livres das “travas” dos privilégios. O grande logro da vida moderna, portanto, consiste em cortar todas as amarras que ligavam os elementos da vida estranhada do homem à sua falta de humanidade, colocando-os, antes, como elementos que expressam o movimento de sua própria “liberdade”; assim, aquele “movimento geral” dos elementos estranhados da sua vida (como a indústria, a religião, a propriedade, etc.), não mais vinculados a nada e, portanto, livres para se movimentar de maneira desenfreada, aparece como a independência mais perfeita do indivíduo, o qual, por seu turno, toma este mesmo “movimento geral” como se fosse sua própria liberdade, quando, na verdade, ele constitui antes “sua servidão e sua falta de humanidade completas e acabadas”, ou seja, é o que expressa a condição de escravidão da sociedade burguesa. “O privilégio é substituído aqui pelo direito.” (MARX; ENGELS, 2011, p. 135, grifo do autor).

Por isso que no Estado moderno desenvolvido se torna possível observar as coisas ocorrerem de um modo inverso ao que na realidade são: declarando que os elementos burgueses da vida apenas começam a existir em toda a sua extensão apenas no instante em que são esclarecidos como apolíticos, deixando-os, portanto, largados a si mesmos, o Estado torna-se mediador de uma realidade na qual a vida mais poderosa do indivíduo torna-se esta na qual são obedecidas apenas suas próprias leis, sem que haja o estorvo de ninguém (MARX; ENGELS, 2011, p. 136). Se os elementos estranhados da vida humana deixam de existir politicamente – e unicamente politicamente –, isso se dá porque não existem mais quaisquer mecanismos que os liguem à vida política. Na própria leitura que Marx e Engels (2011, p. 136) promovem já n’A sagrada família, vislumbra-se, por conseguinte, a existência de um condicionamento mútuo entre o estado de coisas público moderno e a anarquia da sociedade burguesa, ou seja, o modo pelo qual ele se baseia nesta completa ausência de lastros e, ao mesmo tempo, atua no sentido de garanti-la.

Se, conforme a indicação de Marx (MARX, 2011a, p. 109-110), esta conexão coisificada, isto é, indiferente e independente entre os indivíduos não pode ser concebida como a conexão natural e espontânea, inseparável da natureza da individualidade, ou seja, se a conexão social deve ser entendida como uma conexão que é um produto dos indivíduos, consequentemente devem ser extraídos os fundamentos reais desta forma de conexão. Partindo do fato de que a sociabilidade moderna, operada por meio da universalização do princípio da alienação e alienabilidade, encerra em si a noção de igualdade, torna-se forçoso entender que sua a realização concreta deste princípio, que se dá na forma legalista-formal, está ligada ao caráter de exclusão em que implica o conceito de alienação, que por isso mesmo não comporta a universalização do conteúdo do princípio de igualdade. Relacionada, portanto, com os direitos de posse, a ideia de igualdade que floresce na era moderna é necessariamente transformada em um princípio abstrato formal de posse de direitos, caráter este determinado por uma contradição irreconciliável entre uma forma universal e um conteúdo parcial (MÉSZÁROS, 2006, p. 125-126).

Quando se pensa o direito, portanto, toma-se como objeto uma abstração objetivamente necessária, que expressa um descompasso entre forma e conteúdo. É desse modo que a natureza ideológica não só do direito, mas de outras representações deformadas, mistificadas, através das quais a sociedade concebe as relações de trabalho, tais como a mercadoria, o valor de troca, etc., não esgota a esfera total de sua

significação social; tais categorias surgem, de fato, como reflexo de uma relação social objetiva, abstrações graças às quais a realidade econômica objetiva pode ser elaborada teoricamente. Desse modo, o que se deve demonstrar não é que os conceitos jurídicos constituem processos e sistemas ideológicos, mas que a realidade social não pode ser descoberta por tais conceitos (PACHUKANIS, 1988, p. 38).

A forma jurídica, baseada no princípio de igualdade, reflete uma relação específica: a relação dos proprietários de mercadorias entre si (PACHUKANIS, 1988, p. 45). Voltemos à discussão sobre o sistema de produção e reprodução capitalista abordado no primeiro capítulo. Se não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, e se elas tampouco se trocam por decisão própria, devemos concebê-las sempre em conexão com seus donos. Seu relacionamento enquanto mercadorias – isto é, como objetos universalmente intercambiáveis entre si, cujo valor não guarda nenhuma relação com tudo aquilo que a constitui como objeto singular, imediato – só é possível, portanto, quando seus “donos” comportam-se reciprocamente como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de maneira que a troca entre mercadorias deve aparecer sempre por meio de um ato voluntário comum, do qual tomam parte indivíduos que se reconhecem reciprocamente como proprietários privados (MARX, 2012, p. 109). Esta relação de direito, portanto, é uma relação de vontade que reflete a relação econômica, de modo que as pessoas aqui só existem como donos de mercadorias, ou seja, na função de representantes de mercadorias (MARX, 2012, p. 109-110). É neste sentido, portanto, que Pachukanis (1988, p. 47) afirma que as relações sociais se revestem do caráter de relações jurídicas: através do sentido da normatividade que a partir daqui é gerado, mas que aparece como gerador destas relações, compreendem-se os sujeitos reais como seres que não existem fora da definição fornecida pela norma, ou seja, o vínculo social passa a ser concebido como sendo constituído por esta vida civil, e não por uma vida econômica. Não devemos nos esquecer de que os homens, afinal, são agora “livres”.

No desenvolvimento desta relação, a propriedade se torna uma determinação do sujeito, de modo que o sujeito de direito – denominação que passa a receber o indivíduo moderno – é concebido enquanto tal na medida em que se constitui como um proprietário em potência (EDELMAN, 1976, p. 25), mesmo naqueles casos em que o sujeito efetivamente não tenha sequer onde cair morto. Na verdade, pode-se afirmar que é justamente para estes que uma determinação enquanto proprietário guarda a maior importância, já que, por meio desta sua nova determinação, o sujeito de direito obtém um poder

concreto, que lhe permite uma prática concreta: sendo sujeito de direito, o sujeito torna-se capaz de adquirir e, ainda, não só de vender, mas de vender a si mesmo (EDELMAN, 1976, p. 34).

De tal forma pode ser concebido o conceito de sujeito de direito que o indivíduo posto sob tal determinação se torna capaz de conter em si a determinação de uma livre propriedade sobre si próprio; em outras palavras, a Forma “sujeito de direito” apresenta um caráter, inteiramente extraordinário, de produzir em si a relação da pessoa com ela própria, a relação do sujeito que se toma a si mesmo como objeto, de maneira que o sujeito de direito é proprietário de si mesmo (EDELMAN, 1976, p. 93; 95). Desse modo, o sujeito existe apenas a título de representante da mercadoria que ele possui, o que, neste caso, significa dizer que ele existe a título de representante de si próprio enquanto mercadoria. A liberdade deste homem consiste no fato dele vender-se, e vendendo-se ele realiza a sua liberdade.

Desse modo, portanto, que a origem da compreensão da forma pela qual esta subjetividade peculiar se constitui conduz à análise da forma da mercadoria. As relações sociais tomam uma forma “coisificada” nestes produtos do trabalho que se relacionam entre si como valores, valores os quais, portanto, constituem a expressão de uma simples qualidade da coisa (e não de uma potência da atividade que cria a coisa) (PACHUKANIS, 1988, p. 70). Se a vontade está na coisa, e as coisas precisam se relacionar entre si para que a vida humana seja possível – afinal, graças à divisão social do trabalho é unicamente por meio da troca de mercadorias que as necessidades humanas básicas podem se satisfazer –, tal movimento só é possível, do ponto de vista do capitalismo, se estiver plenamente de acordo com a vontade de seus proprietários; para que a mercadoria seja portadora de valor, o homem deve ser portador de direitos, ou seja, um sujeito jurídico, de sorte que o vínculo social passa a ser expresso como a capacidade do homem de ser sujeito de direito (PACHUKANIS, 1988, p. 71-72). Importa notar, aqui, que enquanto na visão hegeliana do direito a propriedade surge como expressão de um sujeito e sua vontade, isto é, surge como sua exteriorização, sua afirmação no mundo das coisas, na visão marxiana é o movimento das coisas que exige o aparecimento de um sujeito dotado de uma vontade livre (KASHIURA JR., 2014, p. 175). Já se evidenciou, anteriormente, a forma pela qual a transfiguração da atividade humana na forma de um trabalho abstrato, no qual se diluem as qualidades concretas do trabalho humano, é responsável por engendrar um valor abstrato em que é diluída a diversidade natural das propriedades úteis de um produto, de modo que se pode agora compreender esta

transfiguração como algo que se dá graças à existência do trabalhador, isto é, o seu engendramento, enquanto sujeito jurídico, o qual, sendo a diluição das particularidades concretas do indivíduo, apenas pode possuir uma vontade abstrata que, não dizendo respeito à relação concreta com o objeto, pode plasmar-se num objeto que é ele mesmo a ausência de determinações, ou seja, que existe enquanto mercadoria. Desta forma é que, se por um lado a coisa, o objeto, a mercadoria sobrepõe-se economicamente ao homem, por outro o homem reina juridicamente sobre a coisa (PACHUKANIS, 1988, p. 72). Este aspecto é sintetizado brilhantemente por Pachukanis:

Depois de ter caído numa dependência de escravidão diante das relações econômicas que nascem atrás de si sob a forma da lei do valor, o sujeito econômico recebe, por assim dizer, como compensação, porém agora enquanto sujeito jurídico, um presente singular: uma vontade juridicamente presumida que o torna absolutamente livre e igual entre os outros proprietários de mercadorias. (PACHUKANIS, 1988, p. 72).

A ironia torna-se a marca fundamental da liberdade que se afirma sob o capitalismo. É quando perfuramos esta compreensão abstrata que podemos visualizar que a esfera de domínio, que envolve a forma do direito subjetivo, nada mais é do que um fenômeno social que é atribuído ao indivíduo do mesmo modo que o valor, outro fenômeno social, é atribuído à coisa, enquanto produto do trabalho; ou, como enuncia Pachukanis (1988, p. 75): “O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico”.

Esta leitura que permitiu a Bernard Edelman indicar os principais aspectos da atuação do direito na sociedade capitalista: fixando o conjunto das relações sociais tais como elas surgem na esfera da circulação, o direito acaba por tornar possível, ao mesmo tempo, a produção. Neste movimento, a esfera da circulação é retomada pelo direito como um dado natural, pelo qual o valor de troca representa os sujeitos e estes representam o valor de troca (EDELMAN, 1976, p. 130- 131). O processo do valor de troca, que cria a liberdade e a igualdade, produz assim, num mesmo movimento, a ilusão necessária de que a liberdade e a igualdade são realmente efetivas; melhor ainda: esta “ilusão” nada mais é do que o reflexo das contradições reais do sistema do valor de troca, que não pode realmente “produzir” uma verdadeira

liberdade nem uma verdadeira igualdade. (EDELMAN, 1976, p. 133). Desse modo, garantindo e fixando como dado natural a esfera da circulação enquanto mediação essencial da reprodução do capital, o direito torna possível a própria produção (EDELMAN, 1976, p. 145- 146).

Tal aspecto pode ser ainda melhor esclarecido. Marx (2011a, p. 184-185) faz notar muito claramente que entre os sujeitos que são determinados simplesmente como trocadores, ou seja, proprietários de mercadorias que as colocam em circulação, não existe absolutamente nenhuma diferença enquanto são consideradas apenas a determinação formal (econômica) em que se encontram reciprocamente na relação de intercâmbio. Cada um dos sujeitos é um trocador, e por isso sua relação como trocadores é a relação de igualdade: é impossível detectar qualquer diferença ou mesmo antagonismo entre eles, ainda mais ao considerarmos que as mercadorias por eles trocadas são, como valores de troca, também equivalentes. Considerada a forma pura, o lado econômico da relação, Marx (2011a, p. 185) nela destaca três momentos: o dos sujeitos (trocadores), o dos objetos de sua troca (valores de troca, equivalentes) e o do próprio ato da troca, a mediação pela qual os sujeitos são postos como iguais e seus objetos como equivalentes. Eles são, assim, indiferentes uns aos outros. O conteúdo concreto da troca, a saber, a necessidade individual do sujeito, que precisa ser satisfeita por um objeto, e a qualidade particular da mercadoria, objeto que pode satisfazer aquela necessidade, se encontram completamente fora de sua determinação econômica, de modo que, antes de ameaçar a igualdade social dos indivíduos, fazem de sua diferença natural o fundamento de sua igualdade social: a diversidade de sua necessidade e de sua produção fornece unicamente a oportunidade para a troca e para sua igualação social; ela é, portanto, pressuposto de sua igualdade social no ato de troca (MARX, 2011a, p. 185-186).

Mas isso ainda não é tudo: a satisfação mútua das necessidades individuais prova que cada um, como ser humano, vai além de sua necessidade particular e se comporta em relação ao outro como ser humano, sendo sua essência genérica comum conhecida por todos (MARX, 2011a, p. 186). Em decorrência disso que aqui entra, portanto, o momento jurídico da pessoa e da liberdade, pois nenhum desses sujeitos se apodera da propriedade do outro pela força: cada um a cede voluntariamente. Cada um serve ao outro para servir a si mesmo, ou seja, cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio (MARX, 2011a, p. 187). O suposto “interesse comum”, portanto, atua apenas por

detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do interesse singular contraposto ao do outro. Surge a consciência reconfortante de que o exercício do interesse egoísta constitui, em sua troca com outro interesse egoísta, o interesse comum – “O interesse universal é justamente a universalidade dos interesses egoístas.” (MARX, 2011a, p. 188, grifo nosso). Daqui se depreende que, se por um lado a forma econômica, isto é, a troca, dissolve as determinações concretas do trabalho e seu produto e põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, por outro lado a matéria que impele a esta troca, e que é tanto individual como objetiva, é o que põe a liberdade. Dito de outra maneira, quando a troca de mercadorias, isto é, a troca que se baseia unicamente em valores de troca, dissolvendo completamente os valores de uso dos objetos, toma lugar na vida humana, a sua realização não é um processo que simplesmente “respeita” a liberdade e igualdade humanas tais quais afirmadas nas declarações de direitos e instituições afins; mais do que respeitá-las, a troca de mercadorias é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade, ou seja, é ela que as cria (MARX, 2011a, p. 188). Assim, como ideias puras, a liberdade e a igualdade são simples expressões idealizadas dessa base, de maneira que a teoria jurídica burguesa que glorifica a igualdade e a liberdade jurídica não faz senão glorificar a circulação mercantil. A filosofia do direito que toma a igualdade e a liberdade como pressupostos toma com isso, conscientemente ou inconscientemente, a circulação mercantil como pressuposto real (KASHIURA JR., 2014, p. 170).

Com todas as palavras, Marx (2011a, p. 191) afirma que o valor de troca, ou, mais precisamente, o sistema monetário é, de fato, o sistema da igualdade e da liberdade, sendo que as perturbações que enfrentam a liberdade e a igualdade no ulterior desenvolvimento do sistema são algo a este imanentes, ou seja, as perturbações são justamente a efetivação da liberdade e igualdade, que se patenteiam como desigualdade e ausência de liberdade. É apenas na representação que os indivíduos são mais livres sob a dominação da burguesia do que eram antes dela, já que suas condições de vida lhes são contingentes. Quando se olha para sua realidade, percebe-se que eles são menos livres, porque estão mais submetidos ao poder das coisas (MARX; ENGELS, 2007, p. 65). Se a relação monetária torna possível o “rompimento” dos laços de dependência pessoal, tudo não passa de ilusão. Já se falou brevemente sobre a obra-prima de Tomasi di Lampedusa, o Gattopardo; nesta mesma obra, logo no início, o autor coloca na boca de Tancredi – que por ser um jovem rapaz está bem mais apto que seu tio, Don Fabrizio, a tomar parte nos novos tempos que se

anunciam – estas proféticas palavras que, permeando todo o romance, demonstram por si só o elevado valor artístico que ele representa: “Se