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2.1 Direito, capitalismo e estabilização social

2.1.1 O problema da emancipação

Num primeiro momento, observa-se que a compreensão marxiana do Estado é extremamente influenciada por Hegel. Marx ainda não compreende o “Estado racional”, como a ele se refere, como manifestação de um conflito de classes; no entanto, sua percepção acerca do tema revela-se extremamente consequente, na medida em que ele é capaz de confrontar uma concepção elevada do Estado, típica dos pensadores neohegelianos de esquerda, e a contradição que se perfaz diante do seu comportamento real (MILIBAND, 1969, p. 51). Partindo, portanto, daquela crítica da filosofia especulativa, a qual, segundo Marx, abstrai a realidade concreta e autonomiza determinadas formas das relações sociais, que o pensamento marxiano começa a estruturar sua compreensão do fenômeno político. Desde muito cedo, na Judenfrage, Marx (2010b, p. 37-38) já contempla a necessidade de se pensar a questão da emancipação política em sua relação com a emancipação humana, no sentido de que a última não se esgotaria na primeira, ao mesmo tempo em que, no entanto, a emancipação humana ainda é compreendida na sua relação com a realização de um Estado como Estado, o Estado em sua realização plenamente política, no qual ele se professa Estado enquanto tal. Pelo Estado,

[...] o homem se liberta de uma limitação, [...] colocando-se em contradição consigo mesmo, alteando-se acima dessa limitação de maneira abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial. [...] O Estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. (MARX, 2010b, p. 39, grifo do autor).

Nesse primeiro momento, a emancipação política é, portanto, já apresentada como abstrata, limitada em relação a uma verdadeira emancipação humana: “a emancipação política não é por si mesma a emancipação humana” (MARX, 2010b, p. 46, grifo do autor); ao mesmo tempo, esta ainda não se apresenta, em Marx, como emancipação das condições adversas das relações de produção da sociedade capitalista.

Ainda assim, já se poderia com isto compreender que quando o Estado moderno confere1 “liberdade”, trata-se tão somente da liberdade política. Nos termos postos no texto de Marx acima referido, o homem é desintegrado entre cidadão religioso e homem privado religioso, o que não contradiz, de forma alguma, a constituição do Estado moderno, que está plenamente realizado no próprio Estado cristão. Por meio desta desintegração o indivíduo se emancipa da religião, na medida em que seu comportamento em relação a ela não se dá mais como se ela fosse um assunto público, mas sim como privado (MARX; ENGELS, 2011, p. 130).

A realização da liberdade no Estado, portanto, se manifesta como emancipação meramente política, que faz abstração de todas as determinações e motivações egoísticas existentes na sociedade burguesa (identificada com a sociedade civil da Filosofia do direito de Hegel), e afirma a realização de uma liberdade paralelamente à paradoxal não- supressão dos privilégios, motivações, determinações e desigualdades relacionais que existem objetivamente nesta sociedade. Nesse sentido que, para Marx (2010b, p. 49), a liberdade no Estado é meramente formal, permanecendo, em relação ao conteúdo, a relação entre homens como limitação recíproca (e conflituosa) de liberdades individuais, e nenhum dos direitos afirmados transcende “o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo

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Devemos destacar que o estado, nestes termos, surge como um ente autônomo, capaz de um agir próprio; é apenas assim que ele poderia, afinal, conferir alguma coisa aos homens.

recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade” (MARX, 2010b, p. 50).

O reconhecimento da humanidade livre do homem, assim, não é nada mais do que o reconhecimento do indivíduo burguês egoísta e do movimento desenfreado dos elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de sua vida burguesa atual. É tal compreensão que permitirá a Marx e Engels (2011, p. 132) afirmarem que os direitos humanos não liberam o homem da religião, mas apenas lhe outorgam a liberdade religiosa; não o liberam da propriedade, mas apenas lhe conferem a liberdade da propriedade, e assim por diante.

Marx (2010b, p. 52, grifo nosso) não deixa de reconhecer os méritos desta emancipação levada a cabo na revolução burguesa, em que “a questão pública como tal se tornou, antes, a questão universal de cada indivíduo”. Contudo, tal reconhecimento não pode deixar de lado o fato de que a realização plena do idealismo do Estado, em termos hegelianos, também representou a realização plena do materialismo da sociedade burguesa, a emancipação das determinações egoísticas em relação à política, “até em relação à aparência de um teor universal” (2010b, p. 52, grifo do autor). A sociedade é dissolvida no seu real fundamento, o homem egoísta, cuja liberdade é a liberdade unilateral, natural, centrada no egoísmo, e que está como dada nessa sociedade: “a revolução política decompõe a vida burguesa em seus componentes sem revolucionar esses mesmos componentes nem submetê-los à crítica” (MARX, 2010b, p. 53, grifo do autor). O homem se encontra, assim, num mundo social naturalizado, cujas determinações (necessidades, trabalho alienado, interesses privados) se apresentam como fundamentos de seu próprio existir; a natureza do homem é uma natureza conforme este ser egoísta. Contraposta à realidade do indivíduo, a perspectiva idealista da emancipação política apresenta como o verdadeiro homem aquele que se apresenta sob a forma do cidadão, abstraído de todas as suas determinações objetivas. Diante disso, Marx afirma:

[...] a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na

forma da força política. (MARX, 2010b, p. 54, grifo do autor)

Decorre daqui a conclusão de que, se devemos encontrar, portanto, um fundamento para esta emancipação política, isto é, desta emancipação peculiar promovida no interior do Estado moderno, que a diferencia da emancipação humana (MARX; ENGELS, 2011, p. 129), devemos buscá-lo na realidade. Se, conforme Marx e Engels (2011, p. 132) já estabeleceram n’A sagrada família, o Estado moderno possui como base natural a sociedade burguesa e o homem da sociedade burguesa, isto é, o homem independente, que está “preso” aos demais apenas pelo vínculo do interesse privado e da necessidade natural inconsciente, o escravo do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta (tanto da própria quanto da alheia), deve ser aprofundada a compreensão de tal “natureza” de modo a situar adequadamente suas contradições. Afinal, de acordo com a perspectiva pachukaniana, é importante entender que o direito, considerado como forma, não existe somente na cabeça das pessoas ou nas teorias jurídicas, mas possui também uma história real, que possui um desenvolvimento não como um “sistema conceitual”, mas como um particular sistema de relações, ou seja, enquanto produto da mediação real das relações de produção, constituído com o objetivo de garantir a marcha da produção e reprodução social no sistema capitalista (PACHUKANIS, 1988, p. 12- 13). Isto transcende uma compreensão calcada em termos referentes à realização de uma liberdade, apreendida em sentido abstrato. Se a liberdade possível no seio do Estado moderno é operada através da abstração da realidade concreta e de todas suas determinações objetivas, será justamente através da retomada das relações efetivas de produção, troca e consumo que se poderá entender a normatividade jurídica como um rompimento completo com a facticidade daquilo que existe (PACHUKANIS, 1988, p. 18).