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A Argumentação em Língua Brasileira de Sinais e as possíveis semelhanças e

Antes de apresentarmos as possíveis semelhanças e contrapontos existentes entre a argumentação em língua portuguesa e a argumentação em LIBRAS, iremos apresentar algumas semelhanças e particularidades existentes entre a língua portuguesa e a LIBRAS. A partir de então iremos apresentar quais são as características que devemos levar em consideração para identificar a existência da argumentação em LIBRAS, apresentando confluências e contrapontos desta com a argumentação em língua portuguesa.

Conforme mencionamos na seção anterior, a LIBRAS é considerada uma língua que possui as mesmas características de uma língua oral, em termos de organização estrutural e de prática social. Sendo assim, os surdos conseguem desenvolver conversas e encetar diálogos, levando em consideração estratégias semelhantes aos ouvintes durante uma exposição, diálogo ou interação.

As línguas humanas estão organizadas e categorizadas em níveis hierárquicos, cujas frases são compostas por uma sequência de palavras e estas constituídas por uma sequência de sons, correspondendo, respectivamente, à sintaxe, morfologia e fonologia de uma dada língua. Apesar de ainda existir um desconhecimento grande em relação às línguas de sinais, é bom deixarmos claro que estes sinais não são gestos holísticos, isto é, não constituem um todo indivisível.

Os surdos procuram a composição da subjetividade com a identidade surda por meio da língua. Desse modo, buscam o reconhecimento da própria imagem através das relações sociais entre surdos, constituindo a significação do próprio eu. Assim, a

aquisição da linguagem é essencial para que o indivíduo surdo possa configurar-se por meio da interação cultural, social, científica e política (QUADROS, 2004).

Quando observamos os diálogos empreendidos entre surdos usuários da LIBRAS, conseguimos perceber a presença constante do discurso argumentativo, seja por meio de uma conversa corriqueira entre amigos, seja durante o diálogo estabelecido entre seus pares, que dominam a LIBRAS, no contexto escolar ou no contexto do ensino de Ciências. Conforme afirma Santos (1996), esse movimento tão natural nas línguas orais também o é na LIBRAS.

Santos (1996) ressalta que duas condições são imprescindíveis para a ocorrência do discurso argumentativo. Primeiramente, é necessário que exista diferença de opinião sobre determinado tema ou conteúdo entre falante e ouvinte; em segundo lugar, que o argumentador se sinta capaz de convencer seu interlocutor. Contudo, para se ter capacidade de convencer o outro, é necessário que os dois compartilhem, com igual competência linguística, a mesma língua, de modo que lhes seja possível transitar nos sentidos e compreender conceitos, formais ou não formais, estabelecendo assim uma teia dialógica.

Jiménez-Aleixandre e Bustamante (2003) ressaltam que existem algumas questões teóricas e metodológicas inerentes aos discursos empreendidos em sala de aula que podem auxiliar o entendimento dos conceitos científicos e os processos de aprendizagem de Ciências. A partir desta análise, eles afirmam que o discurso introduzido pelo professor de Ciências na escola, como um sistema de comunicação, em que a linguagem, oral ou de sinais seja considerada relevante no processo de ensino e aprendizagem, desempenha um papel essencial para o entendimento de conceitos científicos, trabalhados em sala de aula.

Jiménez-Aleixandre e Bustamante (2003) complementam que a comunicação deve favorecer a elaboração de significados que podem ser compartilhados em nível social e cognitivo, entretanto isso nem sempre ocorre, pois a linguagem científica pode apresentar distintos significados para diferentes pessoas, visto que perpassa pelo seu papel interpretativo. Eles complementam que a análise do discurso assume um importante papel para a análise desse tipo de questão, na medida em se relaciona ao processo de aprendizagem. Além disso, a argumentação sobre conteúdos científicos pode contribuir para a aprendizagem, não ficando esta restrita a compreensão de teorias, modelos e conceitos, mas abrange também destrezas e atitudes, que

envolvem pensar na aprendizagem como participar de uma comunidade, seja de surdos, no caso da comunidade surda, como também de ouvintes, e consequentemente, da cultura surda e da cultura científica.

Desse modo, no contexto comunicativo do ensino de Ciências, em LIBRAS e em língua portuguesa, é fundamental o desenvolvimento do raciocínio e da argumentação, visto que o ensino de Ciências deve desenvolver a habilidade nos alunos de justificar ações e enunciados, na língua natural destes, com o objetivo de promover uma melhor compreensão dos processos da Ciência, ou melhor, deve fazer o aluno raciocinar e argumentar em sua língua natural, utilizando todos os aspectos linguísticos que a sua língua pode oferecer. Essa é uma maneira de ter acesso à forma como o aluno pensa e, consequentemente, temos indícios de sua aprendizagem.

A partir desta análise, ressaltamos que o processo de elaboração do discurso em língua natural, seja ele oral, em LIBRAS, escrito, visual, gráfico, etc. é imprescindível para a compreensão dos processos inerentes à ciência, e estão intimamente relacionados ao discurso argumentativo. Ressaltamos ainda que a aprendizagem dos aspectos e conceitos da Ciência perpassa pela essencialidade da argumentação, pois, como ressaltam Sasseron e Carvalho (2014), todo e qualquer discurso em que professor e aluno exibam suas opiniões em aula, apresentando hipóteses e evidências, descrevendo ideias, justificando suas conclusões ou ações, explicando os resultados obtidos, constitui um processo argumentativo. Desse modo, acreditamos que, tanto surdos como ouvintes, apresentam capacidades semelhantes para a construção de argumentos, visto que os aspectos linguísticos da LIBRAS e da língua portuguesa são semelhantes, conforme mostramos na seção anterior.

Além disso, ressaltamos que a prática argumentativa no ensino de Ciências não emerge sozinha, sem ser provocada pelo professor ou pela natureza da atividade proposta. Desse modo, acreditamos que as propostas de natureza investigativa, tais como a resolução de situações-problema, júris simulados, situações conflitantes, dentre outras, contribuem enormemente para a promoção da argumentação e da aprendizagem, desde que, quando bem elaboradas, envolvam aspectos inerentes à Natureza da Ciência e ao trabalho científico. Tais ações ocorrem de maneira semelhante nos surdos e nos ouvintes, uma vez que, os dois grupos supracitados, quando provocados, conseguem questionar, elaborar e testar hipóteses, explicar e

justificar evidências e informações, deduzir, comunicar e debater ideias científicas e tomar decisões, enfim, argumentar, desde que utilizem a sua língua natural.

Neste ponto, ressaltamos que o uso de imagens, vídeos e escrita representam importantes formas de apresentação de ideias e de comunicação, que podem ser integrados à LIBRAS e à língua portuguesa como forma de promover a elaboração de sentidos e significados nas aulas de Ciências, podendo ser cooperados e especializados no intuito de reforçar um significado ou trazer uma informação nova ao discurso viso-espacial, oral ou escrito. Viso-espacial e escrito, no caso dos surdos, uma vez que, praticamente todos os surdos, quando são escolarizados, utilizam a LIBRAS como primeira língua (L1) e a língua portuguesa como segunda língua (L2) e oral e escrito, no caso dos ouvintes, que utilizam a língua portuguesa como língua natural.

Neste sentido, ressaltamos que o entendimento e o uso dos processos argumentativos no ensino de Ciências devem ser trabalhados para além da simples exploração dos fenômenos, uma vez que um maior aprofundamento acerca dos modos de significação, seja por parte dos surdos como por parte dos ouvintes, pode contribuir para o desenvolvimento de um elo entre o conhecimento concreto e as representações abstratas do conteúdo científico trabalhado em sala de aula.

Em virtude disso, compreendemos que é essencial que os professores de língua portuguesa como L2 para surdos, juntamente com os professores de Ciências, conheçam e utilizem estratégias de argumentação na LIBRAS, de forma que os surdos passem a lançar mão de estratégias que lhes permitam desenvolver a argumentação escrita, em língua portuguesa, além da argumentação viso-espacial, em LIBRAS. Tais estratégias poderiam tornar o ambiente escolar mais inclusivo, visto que acreditamos que a utilização de tais estratégias podem contribuir para a melhora da aprendizagem dos surdos. Além disso, poderia ser mais fácil a compreensão de alguns aspectos do discurso argumentativo, pelos surdos, em textos predominantemente escritos, em português, além da compreensão dos aspectos argumentativos em LIBRAS.

Quando avaliamos a argumentação em LIBRAS, devemos levar em consideração que os surdos utilizam estratégias argumentativas que são estabelecidas nos níveis gramaticais da LIBRAS, que são: a expressão facial, que compreendemos como um recurso que contribui para avaliação do posicionamento

argumentativo; a intensificação do sinal através da repetição e o uso da estratégia de referenciação.

As autoras Máximo e Souza (2014), ao realizarem um estudo com professores surdos, identificaram que as estratégias mais utilizadas por estes no desenvolvimento da argumentação foram: a) expressão facial, que elas identificaram como a estratégia que os surdos utilizam para o posicionamento argumentativo; b) intensificação do sinal, que os surdos desenvolvem por meio da repetição; c) perguntas retóricas; por fim, d) uso do espaço, que elas denominaram de role-play. Por conta de tais estratégias, as autoras conseguiram mostrar que surdos conseguem desenvolver a atividade argumentativa tão quanto os ouvintes conseguem.

Ressaltamos que, para isso ser possível, as atividades desenvolvidas devem propiciar que os surdos argumentem em LIBRAS, visto que esta é a sua língua natural. Caso a atividade não favoreça que os surdos argumentem em LIBRAS, possivelmente, estes não irão desenvolver a argumentação, uma vez que a língua portuguesa pode não ser dominada por todos eles, além disso, mesmo que eles a dominem, ela não é a sua língua natural, mas sim uma segunda língua (L2). Estes dois fatores seriam limitantes para o desenvolvimento da argumentação.

Além das características que servem para qualificar a LIBRAS como uma língua (nível fonológico, nível morfossintático e nível semântico), não podemos deixar de fora da análise da argumentação em LIBRAS os aspectos extremamente importantes, geralmente presentes no núcleo do argumento, que, conforme mencionamos anteriormente, são: a expressão facial, a intensificação do sinal através da repetição e o uso da estratégia de referenciação8.

Na LIBRAS, as expressões não manuais envolvem as expressões corporais e faciais, como elementos que pertencem ao nível fonológico dessa língua. Estas expressões são equivalentes aos recursos prosódicos9 de alguns sinais. No caso

específico da argumentação, compreendemos que algumas expressões faciais são extremamente importantes para a compreensão de um discurso argumentativo, visto

8 A referenciação constitui uma atividade discursiva que resulta na construção de objetos de discurso por meio da relação de correspondência entre as palavras e as coisas (KOCH, 2004).

9 Recursos prosódicos correspondem aos momentos em que ocorrem a segmentação gramatical por meio das pausas. Nas línguas orais, na prosódia ocorre a ausência de vocalização. Na língua de sinais, esse recurso ocorre por meio da ausência de movimentos nas mãos, que é percebido quando as mãos retornam do espaço de sinalização para uma posição de repouso (WINSTON, 2000).

que estas servem para direcionar o posicionamento argumentativo dos surdos. Já a intensificação do sinal, quando analisamos o nível morfológico, serve para intensificar a força de um verbo, sendo equivalentes aos advérbios de intensidade, como temos na língua portuguesa. A repetição destes sinais, quando antepostos aos verbos, funcionam, portanto, como modificadores destes verbos. Além disso, a própria intensificação do verbo por meio da repetição possui um importante papel na argumentação, pois marcam o posicionamento do argumentador no discurso argumentativo, desde que sejam analisadas em conjunto com as expressões faciais.

Desse modo, para a avaliação da argumentação na LIBRAS é imprescindível a identificação das estratégias mencionadas anteriormente, visto que tais estratégias são sempre utilizadas por surdos para a constituição do discurso argumentativo. Por conta disso, antes de avaliarmos o teor e a qualidade dos argumentos elaborados é necessário compreender a estrutura da LIBRAS que, conforme discorremos na seção anterior, perpassa pela compreensão de seus aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e pragmáticos. Por conta da existência de tais aspectos, a LIBRAS é compreendida como uma língua, tal como a língua portuguesa.

Desse modo, acreditamos que os recursos argumentativos presentes na LIBRAS se fazem presentes tal como na língua portuguesa. Isso poderá ser confirmado quando analisarmos a argumentação sobre Cinemática, construída pelos surdos, em LIBRAS e pelos ouvintes, em língua portuguesa, uma vez que iremos realizar uma análise comparativa dos argumentos produzidos pelos dois grupos para que seja possível avaliarmos a qualidade da argumentação produzida pelos surdos e pelos ouvintes na realização das atividades propostas em nossa intervenção.

Ressaltamos ainda que, em nossa pesquisa, buscaremos avaliar os argumentos viso-espaciais e orais, produzidos, respectivamente em LIBRAS, pelos surdos e em língua portuguesa, pelos ouvintes. Optamos por este tipo de coleta, pois, geralmente, os surdos apresentam irregularidades morfossintáticas na escrita, em decorrência da relação que fazem entre a estrutura de LIBRAS e a estrutura da escrita em língua portuguesa. Por conta disso, os surdos acabam utilizando regras de uma língua para outra, o que pode levar a ocorrência de algumas construções que seriam próprias LIBRAS na escrita em Português (SOUZA; SANTOS; LENDL, 2017).

Desse modo, ressaltamos que é imprescindível que o professor de Ciências reconheça a capacidade argumentativa dos surdos e dos ouvintes no contexto do

ensino de Ciências. Por conta disso, buscamos levar em consideração estes aspectos na elaboração de nossa sequência didática, uma vez que pretendemos avaliar não somente a qualidade da argumentação construída pelos alunos, em LIBRAS e em língua portuguesa, mas também os indícios de seus entendimentos acerca do conteúdo Cinemática, para que seja possível avaliarmos se existem correlações entre os níveis de entendimento explicitados pelos alunos e a qualidade da argumentação, construída no momento da realização das atividades propostas e de nossa intervenção.

Desse modo, para melhor compreendermos a perspectiva teórica que utilizamos para avaliação do entendimento dos surdos e ouvintes, iremos apresentar no capítulo seguinte uma discussão sobre a Teoria de Habilidades Dinâmicas.

CAPÍTULO 3

A CONCEPÇÃO DE ENTENDIMENTO E A TEORIA DE HABILIDADES

DINÂMICAS

Neste capítulo, apresentaremos o conceito de entendimento adotado em nossa pesquisa. Para isso, apresentaremos a Teoria de Habilidades Dinâmicas, que corresponde à lente teórica que utilizamos em nossa pesquisa para avaliar a aprendizagem da Física, por parte de surdos e ouvintes, no decorrer de nossa intervenção.