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Parte 2: Contribuições da análise estética freudiana para a elaboração do conceito de

1.2.8 A arte e a ciência e suas relações com a sublimação

É de Laplanche (1989) a afirmação segundo a qual a sublimação é uma das cruzes da psicanálise, em todos os sentidos do termo: enquanto ponto de convergência, de cruzamento, mas igualmente o que põe na cruz a psicanálise e uma das cruzes de Freud. Como vimos, a história da sublimação na obra de Freud é confusa. Do início ao fim da obra a sublimação será mais citada do que desenvolvida ou analisada. Após identificarmos todas as referências ao termo sublimação, sobretudo nos textos metapsicológicos, partimos do modelo do sonho para demonstrar de que forma ele foi aplicado sistematicamente. As formações sintomáticas, os atos falhos, os esquecimentos e as recordações encobridoras foram seus primeiros objetos.

Em seguida mostramos os resultados da pesquisa dos chistes, e a razão pela qual Freud ampliou sua investigação para o domínio das relações intersubjetivas e culturais. O chiste é considerado uma mini-obra literária, pois dele Freud extraiu o modelo econômico do prazer estético, que inclui o tipo de prazer preliminar. O prazer sentido nas piadas será da mesma ordem do gozo genuíno da obra poética: ambos provêm da liberação de tensões no interior do psiquismo e da economia no gasto psíquico. Sobre a arte, na qual a intersubjetividade está igualmente pressuposta, o modelo de interpretação dos sonhos foi posteriormente estendido. Vimos que a obra de arte torna-se, para Freud, uma espécie de sonho compartilhado, um sonho conscientemente produzido. Trata-se de um processo deliberado que mostra os conteúdos internos do artista. E sabemos que não importa se o conteúdo representado foi vivido ou fantasiado, se o artista pensou consciente ou inconscientemente. A interpretação psicanalítica repousa sobre a realidade psíquica do artista, do mesmo modo que se apóia sobre a realidade psíquica do neurótico ou do sujeito que sonha.

Descobrimos, do percurso aqui traçado, que no campo das atividades ditas sublimadas a arte aparece como o objeto, por excelência, da atenção freudiana. Por isso pode ser considerada seu grande paradigma. Mediante a investigação dos processos envolvidos na criação artística, Freud oferece elementos elucidativos dos sentidos do conceito de sublimação. As análises das peças, das esculturas e narrativas literárias por ele realizadas têm como pano de fundo explicativo os jogos de forças das pulsões sexuais e destrutivas, e os grandes complexos em torno do qual esse jogo de força se dá privilegiadamente: o complexo de Édipo e o complexo de castração. São os conteúdos

desses complexos, por assim dizer, que são sublimados pelos artistas. Ao ativar em alguma medida esses complexos, o artista determina uma condição do gozo para o espectador; esta é a condição que o aproxima do neurótico. Loureiro (1994) atenta para uma espécie de prazer positivo que a arte favoreceria. O prazer estético é “improdutivo”, “inútil”, “mas ao mesmo tempo pode-se dizer que não há gratuidade alguma na fruição estética, o prazer ‘desinteressado’ obtido com ela é importantíssimo para a manutenção do bom funcionamento mental”.211

Uma breve retrospectiva do tipo de conteúdo extraído das interpretações de Freud das obras de arte revela que, em “Gradiva...”, ele situa a fantasia de Hanold, à qual denomina delírio, como o resultado de uma luta entre conteúdos eróticos reprimidos e a força da resistência que os impede de se tornarem conscientes. Do mesmo modo com a motivação de Zoé, atribuída a uma escolha amorosa infantil que tem como objeto um substituto do pai. A chave para compreender a personalidade de Leonardo da Vinci é a investigação do desenvolvimento de sua sexualidade infantil e a travessia pelo complexo de Édipo − a identificação com a figura materna, seguida da repressão de suas fantasias edipianas, que favorece uma escolha objetal de tipo narcísico e a orientação libidinal para a homossexualidade. O mergulho na vida sexual infantil de grandes personalidades continua com os comentários de Poesia e Verdade, de Goethe. Agora não são a hiperternura da mãe e uma escolha de tipo narcísico que orientam a interpretação de Freud, mas a rivalidade com o irmãozinho pelo amor integral da mãe.

Na análise da estátua de Moisés, o psicanalista muda um pouco de direção: da pulsão sexual como fonte dos conflitos para o componente destrutivo da pulsão e seu incremento em um superego tirânico. Moisés consegue controlar sua raiva e renunciar à expressão de sua agressividade sobre o povo judeu. Ricardo III, de Shakespeare, sente- se no direito de praticar o mal pois acredita ser “exceção”; já que a natureza e o destino teriam afrontado seu narcisismo desde muito cedo. Em um caso, a pulsão destrutiva é reprimida; no outro, é exteriorizada sob o império de uma consciência moral violenta. A interpretação de Rosmersholm, de Ibsen, é buscada no conflito de ambas as pulsões: a pulsão agressiva, que estaria na base das maldades de Rebecca para conseguir casar com o pastor Rosmer, e a pulsão sexual infantil, que teria sido satisfeita na vida real por meio de relações sexuais com o próprio pai. Esse período da produção estética freudiana tem como temática principal os efeitos da consciência moral e sua relação com as pulsões

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destrutivas. O ódio e a culpa de Rebecca reaparecem, mas desta vez divididos em duas personagens de Shakespeare: Macbeth e sua esposa, Lady Macbeth, que enfermam após assassinarem Duncan, o rei da Escócia, e ocuparem o seu lugar.

Em Dostoievski e o parricídio (1927), Freud investiga o destino de sua pulsão

mortífera que, em parte é exteriorizada como traços sádicos, e em parte direcionada contra o próprio ego originando um funcionamento masoquista e culpabilizador. A interpretação é, no entanto, igualmente interpretação do complexo de Édipo: dos impulsos parricidas de Dostoievski oriundos do sentimento de ambivalência inerentes a esse complexo. A mesma equação repete-se na resumida interpretação de Édipo Rei,

Hamlet, e Vinte e quatro horas na vida de uma mulher. Na lenda de Édipo, os desejos

edipianos aparecem na sua expressão mais transparente; em Hamlet, na sua expressão indireta. Na novela de Zweig eles aparecem na relação mãe e filho. E na relação de Christoph Haizmann com o Diabo não é senão de forma oculta que ele está presente. Finalmente, O Homem de Areia põe em evidência o complexo de castração e as faces boas e más da figura paterna. Este são, por assim dizer, “os metais puros” das interpretações de Freud.212

O que estamos chamando de “metal puro” é a matéria-prima da criação artística e do processo de sublimação.213 Enquanto o psicanalista conhece a alma do homem observando o outro, o artista olha para dentro de si, para o próprio inconsciente, e submete suas fantasias a um tratamento deformador análogo aos processos da elaboração onírica sobre o pensamento onírico latente do sonho. Apenas de forma alusiva o espectador identificará as fantasias. O artista sublima o conteúdo dos seus complexos e os exterioriza, ultrapassando as barreiras psíquicas impostas pela censura. A técnica do prazer estético apóia-se na desfiguração, nos deslocamentos, nas condensações, nas insinuações, nas divisões do ego do personagem, na transformação para o contrário, no simbolismo, nas mesmas operações inconscientes presentes na formação dos sonhos. Estamos falando, nas palavras de Loureiro (1994), nos “dotes artísticos”, isto é, “na habilidade em elaborar/deformar os conteúdos inconscientes de modo a torná-los menos repulsivos”.214 Se não passarem pelo processo de maquiação,

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Convém observar que a mudança de direção da revelação de conteúdos sexuais para conteúdos agressivos sugerida por nós é harmônica com o movimento da teorização freudiana de considerar cada vez mais fortemente as diversas expressões da pulsão de morte, inclusive na participação da severidade do superego.

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Loureiro (1994) comenta que, apesar de referir que as fantasias subjacentes à obra são já constituídas, Freud indica a possibilidade de as fantasias se configurarem durante o processo de construção da obra.

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tais conteúdos não favorecerão a obtenção de prazer, mas sensações de nojo, raiva e repulsa.

A sublimação tem, portanto, uma via de mão dupla no processo de criação artística. Está presente no artista, no momento em que ele representa seus conteúdos mais arcaicos em uma obra, e no processo de fruição artística em curso no espectador. Nele é operada uma espécie de vivencia catártica. Do aspecto formal da obra, ele obtém a primeira gratificação. Somada a essa gratificação, ele sente um prazer mais forte, que mobiliza maior quantidade de afeto. Tem-se, assim, a economia da despesa psíquica mediante a suspensão das resistências e a conseqüente liberação de conteúdos reprimidos. A percepção de tais conteúdos pode não ser consciente, mas, de qualquer maneira, o desejo é liberado das forças da repressão e escoado.

O espectador se emociona se acessar de alguma maneira o sentido subjacente ao conteúdo oculto da criação, se os desejos do artista ocultos na composição ativarem a mesma constelação psíquica em seu público. É o conteúdo que une o artista ao espectador pois, como atesta Loureiro (1994), “as fantasias de ambos se assentam em uma estrutura comum; o conteúdo é o responsável pelo prazer mais intenso e profundo que sentimos na fruição estética – prazer este derivado do levantamento das repressões ou da economia de energia utilizada para mantê-las”.215

A natureza da criação artística ocupa um espaço significativamente maior na reflexão de Freud que a elaboração científica. Como dissemos, a arte é, a nosso ver, o paradigma da sublimação. Isto significa afirmar que essa faculdade é mais bem desenvolvida no artista do que nos não-artistas, e também que a fruição estética vivenciada pelo espectador implica o processo de sublimação das pulsões. No entanto, vimos que em muitas passagens da obra freudiana a ciência é situada, ao lado das artes, como a atividade sublimatória por excelência. Leonardo da Vinci e Goethe, além de artistas, eram igualmente grandes pensadores e investigadores da natureza. Na discussão sobre Goethe, é revelada a origem do seu apetite de saber e o caminho que conduziu sua curiosidade infantil às descobertas cientificas da vida adulta. Compreendemos que inúmeras variáveis − como a hiperternura da mãe, uma aptidão constitucional para atividades sublimatórias, o abandono do pai, a transferência paterna com um substituto do pai, etc. – colaboraram para a aptidão particularmente desenvolvida de Leonardo nos domínios da investigação científica.

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Em A sublimação (1989), Laplanche considera que a atividade de investigação presta-se muito melhor ao esquema da sublimação do que a gênese da atividade plástica. Para tanto, retoma o conceito de pulsão de saber, identificado no texto sobre Leonardo da Vinci. Concordamos em que Leonardo era dotado de uma quota particularmente intensa da pulsão de investigar. Mas a razão pela qual a pulsão de investigar não foi reprimida e não resultou em fraqueza intelectual ou na sexualização do pensar não é explicada. Sabemos apenas que a pulsão de investigar do pintor escapou da repressão e foi sublimada em apetite de saber. Freud também não explica a segunda sublimação das pulsões na puberdade de Leonardo, que teria originado seu interesse e habilidade como artista. São escassas as informações sobre as minúcias envolvidas no processo sublimatório em ação nos cientistas.

Sobre um tipo particular de eleição de objeto no homem (1910) fornece-nos

algumas pistas acerca da economia psíquica em jogo nas investigações científicas. Estas, segundo Freud, favoreceriam menor obtenção de prazer que as produções artísticas. Em contrapartida, possuiria maior valor cognoscível. Os artistas, atados à condição de obter prazer intelectual e estético, não poderiam representar tal qual o material da realidade: isolariam fragmentos dela, dissolveriam os nexos perturbadores, introduziriam novos elementos no conjunto da criação e substituiriam o que falta. Em relação às artes, Freud considera as mãos da ciência mais toscas. Ele se explica: “É que a ciência implica o mais completo abandono do princípio do prazer de que é capaz nosso processo psíquico”.216

Observação número um: tendo em vista que a arte e a ciência são descritas como atividades sublimatórias, a sublimação favorece tanto uma grande obtenção de prazer – caso da arte – como uma obtenção de prazer menos expressiva – caso da ciência. Observação número dois: a sublimação é uma atividade por meio da qual se mergulha em dois domínios, o domínio do inconsciente e o domínio da realidade. O poeta dispõe de uma sensibilidade fina para revelar o mundo da fantasia, das forças psíquicas inconscientes. O cientista também envereda pelo mundo exterior. “Leonardo dissecava cadáveres e seres humanos, construía aparelhos de voar, estudava a nutrição das plantas e sua reação frente a alguns venenos”.217

Se depende do total abandono do princípio do prazer, é no domínio do princípio da realidade que a ciência opera. Tal princípio, como revela Freud em Formulações

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S. Freud, Sobre um tipo particular de eleição de objeto no homem (1910), AE XI, 1989, p. 159. 217Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci, AE XI, p. 61.

sobre os dois princípios do trabalho psíquico (1911), retarda a obtenção imediata de

prazer em nome de um prazer mais seguro. Inclui as funções da memória e do juízo. Opera com a energia ligada e com as funções do pensamento, que possibilitam ao aparelho suportar quantidades de estímulos elevados sem recorrer à descarga imediata.218 A religião tenta subordinar o princípio do prazer ao princípio de realidade, mas fracassa. “A ciência foi a primeira a conseguir este triunfo, [...] ela oferece um prazer intelectual e promete uma obtenção prática ao final”.219 O cientista seria dotado de particular aptidão à investigação e extrairia prazer dos seus processos de pensamento.

1.2.9 Para uma metapsicologia da sublimação: o estatuto do “valorizado