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Parte 2: Contribuições da análise estética freudiana para a elaboração do conceito de

1.2.3 A arte em cena

A revelação dos desejos reprimidos é a condição sine qua non para a obtenção de prazer em todas as formas de manifestações artísticas. Caracteres psicopáticos no

cenário (1906) e O poeta e a fantasia (1908) partem dessa premissa, extraída dos

estudos dos chistes, para examinar as fontes do prazer em jogo na representação teatral e nas narrativas literárias, entre as quais o conto, a novela e a poesia. Após retomar a teoria aristotélica do drama que diz que a finalidade do teatro reside em “provocar terror e pena e produzir uma “purificação {expurgar} dos afetos”,118 Freud acrescenta afirmando que ela visa a abertura de fontes de prazer ou de gozo em nossa vida afetiva e a produção de uma sensação de alívio possibilitada pelo escoamento de afetos.119

Em Caracteres psicopáticos no cenário (1906) uma espécie de raio x afetivo do

espectador do teatro é elaborada. A representação teatral para o adulto é comparada ao significado do jogo para uma criança: ambas seriam formas de obter prazer satisfazendo a expectativa de ser “gente grande”. Freud observa que, ao longo da vida, o espectador se vê obrigado a renunciar a seu papel de herói, desfazendo-se de seu orgulho, conscientizando-se de que não é o centro do universo e do fato de que não pode controlá-lo a seu bel prazer. Pela via da identificação, o teatro permitiria o reencontro do espectador com a figura do herói. Ou, melhor dizendo, o encontro apenas com os elementos positivos dessa identificação. O fato de ter sua segurança pessoal protegida

117

Mezan, Freud: pensador da cultura, p. 229.

118

S. Freud, Caracteres psicopáticos no cenário (1906), AE IX, 1989, p. 277.

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“Portanto, o tema do teatro são todas as variedades de sofrimento; o espectador tem que extrair delas um prazer, e daí resulta a primeira condição da criação artística: ela não deve fazer o espectador sofrer, ela deve saber compensar o sofrimento que excita mediante as satisfações que daí podem ser extraídas”. Idem.

conduziria o espectador a não vivenciar o sofrimento e os problemas que a vida real do herói poderia proporcionar, nem os riscos para sua vida. Por isso a premissa do seu gozo é, nas palavras de Freud, “a ilusão”.

“Caracteres psicopáticos...” compara a representação teatral para o adulto ao jogo infantil. O poeta e a fantasia (1908) baseia-se no mesmo modelo de obtenção de prazer: o paradigma das brincadeiras infantis. “Toda criança que joga se comporta como um poeta, pois cria um mundo próprio, ou, melhor dizendo, inclui as coisas de seu mundo em uma nova ordem que lhe agrada”.120 E, mais adiante, lemos: “A criação poética e o sonho diurno são continuações e substitutos dos antigos jogos infantis”.121O

poeta e a fantasia acrescenta elementos relevantes a essa explicação a partir da noção de

fantasia e de sua forma de atuação nos processos de criação.

Faz-se necessário esclarecer, em breves parênteses, que a literatura é a arte preferida de Freud.122 Loureiro (1994) observa que é o campo no qual sua formação é mais ampla e consistente. A literatura, diz a comentadora, “[...] é o paradigma que orienta todo o pensamento de Freud sobre a arte”.123 O termo “poeta” designa escritor de modo geral: o dramaturgo, o romancista, o escritor de ficção, de poesia, etc. Ditchter é a tradução em alemão desse termo, que reúne essas várias acepções. O poeta é, assim, o artista por excelência, uma vez que o modelo da reflexão freudiana da arte é a literatura. Ainda com Loureiro (1994), os termos “poeta”, “artista” e “autor” são quase totalmente intercambiáveis, bem como “público”, “espectador” e “leitor”.

Voltemos um instante para Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905), que descreve a essência do prazer estético, atribuindo a ela a suspensão das repressões e a “bonificação de incentivo” − oriunda de um tipo de prazer puramente formal propiciado pelo “prazer preliminar”. O “prazer preliminar” oferece a fruição puramente estética, facilita o surgimento de um prazer mais intenso, oriundo de fontes mais profundas. Loureiro (1994) assim resume essa idéia: “A beleza formal, favorecida pelo

120

S. Freud, O poeta e a fantasia (1908), AE VII, 1989, p. 127.

121O poeta e a fantasia, AE VII, p. 134. 122

Em O Moisés de Michelangelo (1914), Freud nos diz: “As obras de arte exercem sobre mim uma poderosa influência, em particular as criações poéticas e esculturais, mas raramente as pinturas”. S. Freud

O Moisés de Michelangelo (1914), AE XIII, 1989, p. 217. 123

Loureiro (1994) realiza um trabalho minucioso em “A preferência de Freud em matéria de arte”, capítulo de sua dissertação de mestrado intitulada A arte do pensamento de Freud. Uma tentativa de

sistematização da estética freudiana. Entre os autores clássicos prediletos de Freud destacam-se

Shakespeare, Goethe, Sófocles, Virgílio, Cervantes, Schiller, Ibsen e Dostoievski. Sem contar com as leituras de Schitzler, Thomas Mann, Stefan Zweig, Balzac, Anatole France e Zola, etc. I. Loureiro, A arte

do pensamento de Freud. Uma tentativa de sistematização da estética freudiana. Dissertação de Mestrado

“prazer preliminar”, serviria como isca de atração – termo utilizado por Freud - que proporciona um prazer preliminar; este abre caminho para um prazer mais profundo decorrente da liberação de energia correspondente a um afrouxamento das repressões, que tem a ver com o conteúdo da obra”.124 Há, para Freud, uma preeminência do conteúdo em relação à forma na medida em que promove um tipo de satisfação mais intensa proporcionada pela obra.

Nas técnicas das ars poéticas o artista submeteria suas fantasias a um trabalho de figuração – semelhante ao que o trabalho do sonho faz, favorecendo a obtenção do prazer estético. Tal prazer é a condição para a emergência de um prazer ainda maior oriundo de fontes psíquicas mais profundas. Tomando como exemplo a literatura, Freud faz um comentário que pode ser estendido às demais manifestações artísticas: “Opino que todo prazer estético que o poeta nos propicia inclui esse tipo de prazer preliminar, e que o gozo genuíno da obra poética provém da liberação de tensões no interior de nossa alma”.125

No trabalho dedicado aos chistes, as modalidades do cômico são usadas pelos adultos com a finalidade de reavivar um prazer que obtinham quando crianças dos jogos infantis e dos gracejos. Neste pequeno texto de 1908, o foco da explicação recai sobre os sonhos diurnos ou as fantasias.126 Diferentemente das brincadeiras, que são fantasias compartilhadas e aceitas pelas crianças, as fantasias dos adultos lhes causam vergonha e o ímpeto a escondê-las. Os sonhos diurnos servem à realização de desejos inconscientes. Porque dos adultos é esperado que eles ajam no mundo real e obedeçam à faculdade crítica, diz Freud, eles escondem seus desejos infantis e proibidos. “Os desejos insatisfeitos são as forças pulsionais das fantasias, e cada fantasia individual é uma realização de desejo, uma rectificação da insatisfatória realidade”.127

Os conteúdos da fantasia se transformam dependendo da época da vida. No entanto, toda fantasia oscila, segundo o autor, entre três tempos; três momentos temporais de nossa forma de representar. O primeiro tempo é marcado pelas impressões psíquicas do presente, que despertam os grandes desejos da pessoa e que remontam à recordação de uma vivência anterior, infantil na maior parte das vezes, na qual aquele desejo se realizara. Em seguida, o trabalho psíquico cria uma situação referida ao futuro,

124

Loureiro, A arte do pensamento de Freud..., p. 63.

125O poeta e a fantasia, AE VII, p. 135. 126

Em A novela familiar dos neuróticos (1909), Freud examina a atitude fantasiosa na neurose e observa que ela está presente nos jogos infantis e, na da puberdade, nos sonhos diurnos.

que se apresenta como a realização desse desejo; esses são os sonhos diurnos ou as fantasias, nas quais são impressas as raízes de sua origem na ocasião e na recordação. Os três momentos temporais de nossa forma de representar são a base do processo de criação. O modelo subjacente a ele é o sonho: a realização de desejos inconscientes que tem o caráter de uma formação de compromisso.

Freud conta a história de um jovem que recebeu uma proposta de trabalho. No conteúdo do sonho diurno ele é recebido pelo novo chefe e torna-se indispensável para o negócio, é aceito pela família do chefe e casa-se com sua filha, passando a administrar o negócio como proprietário e, depois, como herdeiro. Segundo o psicanalista, o jovem substituiu o que possuía na infância feliz: a casa protetora e os pais, primeiros objetos de suas moções ternas. Baseando-se na hipótese dos três tempos da fantasia, Freud resume o que estaria na essência da expressão poética: “uma intensa vivência atual desperta no poeta uma recordação passada, referida à sua infância, da qual extrai o desejo a ser realizado na criação poética”.128

Esta hipótese é a base para praticamente todas as interpretações das obras de arte realizadas por Freud − novelas, peças de teatro, contos, esculturas, pinturas, etc. Observaremos que ao sublimar os conteúdos de suas fantasias infantis o artista deforma, condensa, desloca e representa as relações lógicas de conteúdos inconscientes semelhantemente ao trabalho da elaboração onírica sobre os sonhos. No espectador, por sua vez, a sublimação se dá por meio da reação por identificação. Diante da obra o espectador acessa e revive o afeto dos desejos que, impossibilitados de serem expressos devido à censura psíquica, permanecem reprimidos.

Freud observa, em Caracteres psicopáticos no cenário, que a fonte de sofrimento da qual participamos e extraímos prazer no drama psicológico não é o conflito entre duas moções dotadas de um grau de consciência aproximadamente igual, senão entre uma moção consciente e uma reprimida. “A condição do gozo é, aqui, a de que o espectador seja também um neurótico”.129 O primeiro drama moderno desse tipo teria sido Hamlet, no qual um homem normal torna-se neurótico pelo traço particular de uma tarefa que lhe é encomendada.130 O tema do herói examinado em “Caracteres...” é

128O poeta e a fantasia, AE VII, p. 133.

129Caracteres psicopáticos no cenário, AE IX, p. 278. 130

Uma moção até então reprimida procura se impor. Hamlet obedece a três características importantes para caracterizá-lo neste tipo de drama: o herói não é um psicopata mas se torna um na ação considerada; a moção reprimida nele é a mesma que está em todos, e o que a situação põe em questão é essa repressão da qual todos nós compartilhamos e que é condição de nosso desenvolvimento.

recuperado na análise de alguns tipos de narrativa em O poeta e a fantasia. Nas narrativas egocêntricas, Freud observa que o que vem acompanhado na identificação com o personagem é o sentimento de segurança com que o espectador acompanha o herói nas suas azaradas peripécias. O sentimento heróico funda-se sobre a sensação de invulnerabilidade, à qual a expressão “isso nunca pode acontecer com você” ilustraria.

Caracteres psicopáticos no cenário e O poeta e a fantasia são os primeiros

textos psicanalíticos sobre arte e as primeiras tentativas de interpretação psicanalítica no campo estético. Os principais pilares que Freud utilizará para as demais interpretações artísticas que empreende são apresentados desde já. A explicação econômica da obtenção de prazer nos chistes é aplicada à fruição do prazer nas artes dramáticas e poéticas. A noção de fantasia entra em cena para explicar de que maneira o prazer das brincadeiras infantis é prolongado pelo contato com a criação artística. Na verdade, essa noção tem o mérito de articular os desejos infantis que um dia foram realizados à repetição dessa experiência de satisfação na vida do adulto. As narrativas e representações teatrais estariam, com efeito, a serviço da realização de desejos infantis – eróticos e agressivos – que a realidade não permite que se expressem sem deformação.

Em relação a algumas diferenças entre o sonho e a obra de arte, Kris (1947) afirma: “No que no sonho é explicado em termos de sobredeterminação, aparece na obra de arte como uma multiplicidade de significações, que estimula tipos diferenciados de reações no público”.131 De qualquer modo, vemos a operação do trabalho do sonho reaparecendo nas produções artísticas. Deforma-se o conteúdo reprimido para a obtenção do prazer preliminar. Com um plus de prazer suspendem-se as resistências que mantêm os conteúdos inconscientes, permitindo um prazer ainda maior. Esse prazer é expresso nos chistes pela gargalhada e nas demais expressões artísticas pela liberação de afetos variados: o terror, a repugnância, a excitação sexual, a raiva, etc. É de Mezan (1997) a afirmação de que, para Freud, “[...] a obra de arte obtém o que a neurose não é capaz de realizar, isto é, a liberação do registro fantasmático pela liberação controlada dos processos primários (no autor) e pela diminuição da tensão psíquica resultante da eliminação provisória de determinadas repressões (no leitor)”.132

Por ora, nos contentaremos apenas em afirmar que a sublimação aparecerá como uma alternativa à neurose justamente por suspender as repressões e, por conseguinte, diminuir as tensões psíquicas. Mas antes de desenvolvermos essa idéia e articularmos o

131

E. Kris, Psicoanalisis e arte. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1947, p. 33. 132

conceito de sublimação às teses freudianas sobre a criação artística, examinaremos um texto que nos fornecerá um exemplo interessante de interpretação psicanalítica da arte, neste caso, da literatura. Com ele compreenderemos de que maneira Freud é capaz de analisar uma criação artística desconsiderando os dados biográficos dos artistas e suas associações. Trata-se de “Gradiva...”, de Jansen, publicada em 1903.